A Última Chance escrita por Caroline Oliveira


Capítulo 23
A aflição ressurge


Notas iniciais do capítulo

Oii gente!! Mais um capítulo para vocês! O anterior terminou de maneira bem tensa, ne?! Aguenta coração!



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Pedro Pevensie

— Você não pode estar falando sério, Lu! - Ralhei e Lúcia revirou os olhos e cruzou os braços - Eu tolerei que você visitasse o garoto, tentasse convencê-lo de sua culpa e se arrependesse, mas não me peça para permitir que ele vá com você e Liliandil!

Eu estava farto de discutir sobre este assunto. O garoto quase matou Susana, como Lúcia quer que eu confiasse nele? Além de ela ser rainha de Nárnia, é minha irmã, minha responsabilidade! E Liliandil, além de ter sido noiva de Caspian e ser uma estrela, é nossa amiga e estava com os poderes limitados! Colocar Rilian junto delas fora das vistas de todos era colocá-las em perigo!

— Pedro, confie em Aslam! - Ela respondeu séria - Eu não inventaria uma história dessas, sabe disso! Todas as vezes que disse algo fantástico, era verdade e você sabe! - Ela se referia à existência de Nárnia e sobre ter visto Aslam no Bosque Trêmulo.

— Eu sei, Lúcia, eu sei! - Assegurei, ciente dos meus erros em não acreditar nela - Acontece que esse rapaz ameaçou a vida de Susana e por pouco ela não foi assassinada! Se Aslam mandou que eu arranje o exército, não vou poder destacar muitos homens para acompanhar vocês! Se esse garoto tentar alguma coisa, quem garante que vou conseguir protegê-la?

— Pedro, eu não preciso da sua proteção porque Rilian mudou! - Retrucou - Fale com ele! Teste sua índole, você vai ver que falo sério!

— Sem querer interromper, mas estamos nos esquecendo de outras coisas mais importantes - Hiandra entrou na conversa - Se o rei Edmundo foi capturado, como estão o rei Caspian e a rainha Susana?

Gelo percorreu minha espinha.

— Pela juba do Leão, eu não tinha pensado nisso - Meus nervos se agitaram o dobro de vezes.

— Calma, se Aslam não os mencionou, provavelmente estão bem e continuarão a missão - Liliandil se interpôs, trazendo a nós sua sabedoria - Acredito que a rainha Lúcia tem razão, rei Pedro. Destaque alguns homens de confiança para nos acompanhar, então! A viagem não será longa.

— Você sabe onde fica esse lugar da "luz concentrada"? - Lúcia perguntou. 

— Edmundo e eu chegamos à conclusão que pode se tratar do Ermo do Lampião - Explicou a estrela - Apesar do bosque escuro e denso, o lampião permanece aceso para sempre. Não consigo pensar em outro lugar. - Fez uma pausa - Mas rei Pedro, longe de mim piorar suas preocupações, mas calormanos em Arquelândia é um mau sinal.

Assenti. 

— Por isso agora temo ainda mais por Caspian e Susana! Se Aslam nos deu uma estratégia para salvar Edmundo, essa é a esperança de que o resgataremos com vida, mas o que acontece se Susana e Caspian morrem nas montanhas de Arquelândia?

— E estou com outra preocupação - Lúcia levantou outra questão - Como os calormanos sabiam exatamente onde encontrá-los?

E o que eu temia aconteceu. Não queria pensar na possibilidade de termos traidores entre nós, entretanto a passagem do tisroc e sua comitiva pelo castelo pode ter corrompido alguns de nós, por ambição ou rebeldia. Não houve tempo hábil para Ahadash estar tão inteirado assim das coisas em Arquelândia, por mais que ele a tenha conquistado. Alguém o devia ter advertido.

— O que vamos fazer se não pudermos confiar uns nos outros aqui dentro? - Os olhos de Liliandil marejaram, o desespero fazendo as emoções da estrela aflorarem. - Não quero nem pensar em alguém interceptando nossa tentativa de salvar Edmundo!

— Concentre-se em recuperar sua magia - Aconselhou Lúcia - Seja lá qual for a estratégia que Aslam usará para ajudá-la, precisa acreditar que vai dar certo. - Olhou para mim - Posso contar com você sobre cumprir a missão de Aslam?

Suspirei. Não estava nada confortável em deixar o delinquente seguir com Lúcia e Liliandil para um lugar tão deserto quanto o Ermo, sem falar que ele próprio podia ser o traidor que procurávamos. 

Confie em Aslam uma vez na sua vida, Pedro.

Eu me arrependera amargamente de não ter confiado em Aslam e nas palavras de Lúcia antes. Apoiei-me na força dos meus braços e falhei miseravelmente.

— Organize sua partida com Liliandil - Pedi e ela sorriu - Vou acionar o conselho de guerra e destacar Theodor e Windren para acompanhar vocês.

— E quanto ao rapaz? - Hiandra perguntou, ansiosa assim como Lúcia e Liliandil para me ouvir dizer o que decidi sobre ele.

— Vou pedir que o tragam a mim quando a reunião com o conselho acabar. E então tomarei minha decisão. - Declarei por fim. Ainda não tinha pensado em que perguntas faria a Rilian, mas não era possível que em anos de experiência interrogando narnianos suspeitos de fidelidade à Jadis não fossem servir para avaliar as intenções do garoto.

— Obrigada, Pedro - Lúcia agradeceu sinceramente, apesar de eu não ter dito "sim" ainda. Ela tinha esperança de que eu seria convencido. 

Lúcia se levantou do nosso acampamento em frente à lareira e Liliandil a acompanhou para fora da sala, não sem antes vestirem seus robes para cobrir as roupas de dormir.

Levantei-me também, em silêncio. Evitei olhar para Hiandra a fim de esconder meus pensamentos a respeito dela. Eu gostaria de não desconfiar, afinal ela estava imensamente grata por termos tratado suas feridas e a protegido dos maus-tratos da rainha calormana. Apesar disso, eu temia que a desconfiança de Susana e de Caspian antes de partirem se concretizarem. Tinha medo de ter sido ingênuo todo esse tempo em acreditar que ela era diferente do restante do seu povo e que lutaria por nós.

— Não está desconfiando de mim, está? - Seu tom era hesitante, a dor se pronunciando em sua voz. Questionei-me se eu era tão ruim assim em esconder meus pensamentos.

Senti meu coração acelerar e por alguns instantes o único som ouvido era o crepitar do fogo sobre a madeira. Tomei coragem para olhar em seus olhos, de frente para ela, separados por um monte de almofadas coloridas. Seus olhos castanhos refletiam o fogo das velas e ela esperava ansiosa pela minha resposta.

— Eu gostaria de poder dizer que não - Confessei - Eu gostaria de conseguir não julgá-la por suas origens, pois suas atitudes só têm demonstrado a sua boa vontade conosco.

— Eu sou grata pelo que fizeram por mim! - Assegurou, o tom veemente quase se revelando uma súplica - Ninguém do meu povo me fez sentir tão acolhida quanto vocês de Nárnia! - Ela desviou das almofadas para se aproximar de mim - Por favor, não desconfie de mim! Eu não o trairia dessa forma!

— Você jura que não foi você? - Tive que pedir uma confirmação. Tentei pensar logicamente, captar em sua voz qualquer falha que denotasse culpa ou mentira, mas não consegui. Hiandra havia se tornado especial demais para mim para que eu conseguisse ver nela algum mal, por mais que minha razão a acusasse.

— Se minha palavra vale algo para você… - Encarou meu olhar ao dizer - Eu juro que não fui eu. O traidor deve estar no castelo disfarçado, procure por entre os servos, alguém deve saber! - O desespero tomou sua voz - Só por favor… não me julgue mal… não você.

Ela retraiu o olhar ao terminar e então percebi o que suas palavras queriam dizer. Embora tivesse medo do que uma suspeita de um rei pudesse significar para o seu destino, havia algo de mais especial na preocupação de Hiandra. E havia algo mais na minha relutância em crer que ela pudesse ser culpada.

— Eu acredito em você - Minha voz soou pouco mais de um sussurro e ela voltou a me olhar. Meus olhos se direcionaram aos seus lábios com o desejo impetuoso de tomá-los nos meus para pedir perdão pela desconfiança e consolidar o sentimento que vinha se formando desde a primeira vez que a vi.

Para minha surpresa, foi Hiandra quem deu o passo que nos separava, estreitando nossa distância e selando o beijo que fez meu peito arder. Logo tomei seu rosto em minha mão e ela entrelaçou a minha outra entre seus dedos. Os lábios de Hiandra eram macios e me vi desesperado em não permitir que aquele beijo terminasse.

Após alguns momentos, no entanto, o ar se fez necessário, obrigando-nos a nos separarmos. Ela encostou sua testa na minha e eu percebi que ela se mantinha um pouco de ponta de pé para alcançar meus lábios. Sorri singelamente com isso.

— Eu preciso ir - Falei - Ficará bem sozinha?

— Não se preocupe comigo. - Pediu - Precisa comunicar as ordens de Aslam aos seus conselheiros. Ficarei aguardando por notícias.

Custou-me deixar Hiandra no aposento. Eu mal podia acreditar no que estava sentindo, nem no que tinha acontecido. Deixei as desconfianças de lado. Hiandra não me trairia.

 

Ao amanhecer

Caverna nas montanhas de Arquelandia

Susana Pevensie

Mal percebi que Caspian e eu havíamos caído no sono abraçados depois de termos conversado a respeito da situação de Sorien e de Edmundo. Nossa sorte foi que algum soldado gentil trouxe um pequeno monte de madeira e fez fogueira para nós no canto em que eu havia me reservado.

Caspian e eu tínhamos dormido encostados na parede da caverna e apesar de eu ter adormecido, vencida pelo cansaço, despertara com torcicolo e com a ferida na lateral do corpo incomodando. O corte no rosto doía quando eu falava ou mexia a boca no geral e eu tratei de colocar mais remédio nela a fim de que cicatrizasse rápido.

— Majestade - Trumpkin veio até mim, devia ter acordado fazia mais tempo. Já estava equipado com seu arco, talvez tivesse ficado de guarda durante a madrugada - O rei Caspian comentou algo sobre nossas ordens para hoje?

Era até engraçado ver Trumpkin tão solícito e respeitoso nos últimos tempos. Seu jeito ranzinza foi apaziguado com o encontro com Aslam, embora ele conservasse o sarcasmo e a impaciência, prova disso é estar perguntando aquilo quando eu acabara de acordar.

— Receio que ainda não, NCA - Recordei o apelido que Lúcia havia lhe dado. Eu o utilizei poucas vezes, apenas quando estávamos entre nós - Estamos cogitando a possibilidade de retornar a Nárnia, ou de seguir viagem com os soldados ainda saudáveis. Acho que teremos que conversar com todos para decidir.

— Já está perturbando minha rainha com sua impaciência, Trumpkin? - Eu teria rido das palavras de Caspian ao acordar se a expressão "minha rainha" não tivesse feito minhas bochechas arderem. Embora ele tivesse deixado claro que, sim, sua intenção era me fazer sua rainha, ouvi-lo falar daquela forma me fazia sentir uma sensação até gostosa que misturava vergonha e orgulho.

— Se o senhor não dormisse tanto, eu já teria as respostas e não incomodaria a rainha com isso - Trumpkin alfinetou e Caspian e eu rimos.

— Vá fazer sua ronda, anão insolente! - Caspian brincou. Eu podia vê-lo jogar uma almofada na cara do amigo anão se estivéssemos em Nárnia - Diga aos outros que logo mais falaremos - Avisou mais seriamente.

Trumpkin saiu com um meio sorriso, ainda contente com o momento de descontração. Caspian se acomodou melhor no chão e eu me arrastei para perto dele novamente a fim de verificar a ferida na perna.

— Você está melhor? - Sua pergunta era relacionada não só aos meus ferimentos, mas ao estado emocional também. - Você…  chorou enquanto dormia.

Sua observação me surpreendeu, afinal eu não me lembrava de ter sonhado ou coisa parecida. Talvez eu tenha sonhado com Edmundo, mas o sonho não tenha sido lúcido o bastante para que eu me recordasse.

— Eu não queria preocupar você - Assegurei - A angústia a respeito da situação do Ed ainda me atormenta. É a mesma sensação de quando ele foi preso pela feiticeira e parece que ele está prestes a cair nas garras dela outra vez! 

— Pedro disse que a viu na tenda, não foi? - Recordou ele. Assenti pesarosa - Estive pensando antes de dormir que é melhor retornarmos para Nárnia.

— E desistir da missão? - Ergui a sobrancelha - Não derrotaremos a serpente do deserto sem a lança!

— Não chegaremos vivos ao desfiladeiro do jeito que as coisas andam. Os soldados estão feridos e Ahadash mandará nos perseguir até sermos mortos. - Fez uma pausa - Realmente não sei o que fazer a respeito da lança, mas com o sequestro de Edmundo, as coisas mudaram mais uma vez.

Ponderei. Eu gostaria muito de continuar, porém passaria o resto da missão angustiada pela vida de Edmundo. Precisava saber como ele estava, precisávamos resgatá-lo.

— Se acha que é o melhor jeito, eu apoio você - Assegurei. Desamarrei a faixa que estancava seu ferimento. Após limpar a ferida, retirando resquícios do unguento e fragmentos de sangue seco, pude ver que estancou bem e me permiti sentir alívio. - Vou pedir a Trumpkin que faça mais unguento. Se cuidar bem, logo vai sarar.

— E os seus ferimentos? - Perguntou preocupado.

— Por enquanto, tudo em ordem - Grunhi ao levantar, sentindo a ferida da lateral do corpo fisgar - Ainda dói, mas não infeccionou.

Ele assentiu em resposta, seu semblante transparecendo o alívio de que apesar de tudo eu estava bem.

 

Arredores de Anvard, Arquelandia

Edmundo Pevensie

Os sons que se ouviam eram de uma carroça sendo puxada sem a mínima delicadeza pelo terreno acidentado. Parecia que uma orquestra batia tambores na minha cabeça, tamanho era o martelar que eu sentia. 

Abri os olhos com dificuldade, sentindo a claridade incomodar. O céu aberto abobadado com algumas árvores foi a primeira visão que tive. Senti as pernas e os pés amarrados, até que percebi que também estava amordaçado.

— Idish, o reizinho acordou - Um soldado calormano avisou a alguém que andava à frente da espécie de carroça em que eu estava. Ela não tinha bordas, era apenas uma série de madeiras pregadas umas nas outras com rodas em baixo, sendo puxadas por um homem de pele escura, tão grande quanto o homem com quem eu lutara.

Não lembrava de muita coisa desde o confronto com o brutamontes. Recordava a voz de Sorien me chamando pouco depois de eu ser atingido por alguém covardemente pelas costas. Como eu queria uma aspirina naquele momento!

Reconheci o brutamontes cujo nome era Idish. Reparei que ele tinha um uniforme um pouco diferente dos demais, coisa que não tinha notado na adrenalina do combate. Ele devia ter uma patente mais alta.

— Ahadash vai me dar dez mil talentos de prata pela sua cabeça, moleque! - Ele agarrou meus cabelos, obrigando-me a olhar para sua cara feia - Seu reino está com dias contados!

Eu teria cuspido em sua face se a mordaça não me impedisse, nem que eu levasse uma surra como recompensa depois. Precisava encontrar um jeito de escapar dali, nem que eu rolasse da carroça até o chão e saísse pulando como na brincadeira de corrida com o saco.

As árvores deixaram a paisagem à minha volta, dando início a uma planície aberta onde ao longe surgia a montanha do castelo de Anvard. À esquerda da montanha, um grande assentamento do exército de Calormânia estava acomodado. Arregalei meus olhos. Com certeza tinham conquistado Arquelândia e somente Aslam sabia o que tinha acontecido com Naim e Neriah.

Os soldados que me transportavam percorreram todo o assentamento e muitos dos que estavam no local urraram, vitoriosos. Provavelmente sua missão era do conhecimento de todos.

Perguntei-me onde e como estavam os outros. Implorei mentalmente a Aslam que estivessem vivos e que se não tivessem vencido o confronto, que pelo menos tivessem conseguido escapar. Aslam não podia permitir que Caspian e Susana estivessem mortos!

Minha atenção se voltou ao presente quando os soldados deixaram o assentamento e me levaram para mais além. O imbecil que transportava parou de repente e largou a carroça, fazendo-me rolar por ela e cair no chão. Fechei os olhos e ouvi a risada de escárnio dos calormanos. Agradeci mentalmente por não ter caído de boca ou de queixo.

Os calormanos agarraram minhas pernas para tirar as cordas que as prendiam, passando a me puxar pelas cordas que amarravam meus braços. Puxavam bruscamente de propósito, querendo me fazer cair, mas me concentrei em não dar a eles aquele gostinho e tentar compreender para onde me levavam, até que eu vi a maldita tenda.

Meus pés pararam com a lembrança da serpente que inoculou sua peçonha em minha perna, fazendo-me agonizar por horas até que parasse de vomitar e ingerir o elixir de Lúcia. Recordei também quando Pedro foi lançado para fora dela e acordou dizendo ter visto Jadis em seu interior.

O infeliz que me arrastava puxou bruscamente a corda e eu fui puxado para frente, mas felizmente não caí. Os soldados voltaram a rir e um deles me deu um empurrão para que eu andasse mais rápido.

Quando nos aproximamos na entrada da tenda, a sacerdotisa calormana Katrizia saiu de seu interior, o vestido laranja destacando-se à luz do sol. Ela tinha os olhos pintados, afiando ainda mais a expressão maldosa e os lábios pintados de rubro. Coberta de joias e por um véu bordado em ouro, a sacerdotisa colocou as mãos na cintura ao ficar de frente para nós.

— Parece que obteve êxito em sua missão, capitão - Cumprimentou ela a Idish, a quem eu acabava de descobrir que era capitão. - E os outros?

— Receio que ainda estejam vivos, senhora - Lamentou e eu me senti aliviado. Conseguiram me pegar, mas pelo menos Susana e Caspian estavam seguros - Não sei como os desgraçados conseguem, mas venceram nossa investida! Felizmente eu fui mais esperto, sequestrando o reizinho aqui enquanto o combate ainda acontecia.

— O tisroc, que ele viva para sempre, não ficará nada feliz com isso - Alertou, cruzando os braços - Ele queria a cabeça do rei Caspian e de sua amada numa bandeja.

— Preciso reportar a ele o meu relatório - Idish anunciou, indicando que iria se ausentar - Vim apenas deixar a oferenda com a senhora.

E me empurraram de novo, dessa vez em direção à sacerdotisa, não deixando obviamente de segurar a corda para me manter sob seu domínio. A palavra “oferenda” me deixou apreensivo. Pretendiam me oferecer a Tash em troca de sua proteção?

— Pode ir, eu assumo daqui - Katrizia o dispensou. Ela fez um movimento com os dedos, as unhas afiadas estavam pintadas de um vermelho sangue.

Um par de guardas me seguraram pelos braços, obrigando-me a entrar na tenda logo atrás da sacerdotisa. 

Quando entramos, o tecido que fazia a porta da tenda se desenrolou para fechá-la, transformando-se literalmente numa porta de madeira. Evitei demonstrar a estranheza. Que tipo de magia cercava aquele lugar?

Como eu havia pensado na primeira vez que vi a tenda, ela parecia uma cabana de acampamento bem singela do lado de fora, mas dentro era muito ampla. Parecia uma biblioteca de castelo, porém os objetos e móveis dentro dela estavam surrados, desgastados e empoeirados. Havia uma poltrona cujo estofamento estava rasgado e a espuma pulava para fora, com livros fechados e abertos.

Estantes com objetos velhos, relógios que não funcionavam, rolos de papel envelhecido amontoados, castiçais sem velas e mesas empoeiradas acumulavam-se, restando apenas um corredor estreito em direção aos fundos da tenda. Não vi cama, nem guarda roupa, nem nada que sinalizasse que alguém realmente vivia ali.

O vestido de Katrizia sibilava à minha frente como a cauda de uma cobra e eu olhava de um lado para o outro pelo chão a fim de evitar uma nova picada, trauma resultante da primeira vez que eu havia visto a tenda.

— Está prestes a se reencontrar com seu passado, majestade - Ela usou o pronome de tratamento de maneira debochada.

Ao andar um pouco mais, uma sala se abria, inicialmente muito escura até que uma luz gélida se pronunciava para revelar o temido paredão de gelo, que se ergueu imponente à minha frente.

— Não… - Sussurrei, sentindo o desespero se pronunciar. Fui forçado a caminhar mais um pouco, até que Katrizia parou de andar em frente e se dirigiu a uma parte menos iluminada do salão.

Ao prestar mais atenção ao meu redor, vi que fui colocado no maldito círculo do ritual e o pedaço da lança que quebrei um dia estava fincado bem no meio dele.

— De todas as possibilidades que o destino poderia me dar de retornar - A voz afiada e irritantemente familiar se pronunciou. - Não esperava que tivesse a chance de que fosse você.

Ergui os olhos para a figura de Jadis dentro do gelo. Seus cabelos loiros quase brancos flutuavam dentro do paredão transparente como se ela estivesse dentro d'água. Ela parecia um espírito ali, as vestes brancas eram um paradoxo perfeito com sua alma cruel.

Senti a respiração e o coração acelerar. Neguei a mim mesmo aquela visão, não era possível, aquilo de novo não. O ar expirado por mim e pelos soldados viraram fumaça branca à nossa frente.

— Não estava com saudades? - Debochou ainda mais, a voz cantarolando em meus ouvidos. Senti minhas pernas se enrijecerem, como se algo as prendesse ao chão, porém não havia nada além de magia. A voz de Jadis era como as garras de um felino arranhando as paredes do meu coração como se quisesse me enfeitiçar - Sabe que sempre foi meu favorito.

— Por que esperou tanto tempo para retornar se o sangue de qualquer filho de Adão serve? - Eu precisava ganhar tempo. Tinha que me livrar das cordas, matar os soldados, matar Katrizia e achar uma forma de abrir a tenda para escapar. Mais do que isso: eu precisava manter a lucidez.

— Eu não achava que teria oportunidade de voltar - Confessou - De obter minha vingança de Aslam e de todos os seus aliados infelizes. Até que a serpente do deserto me convenceu de que seria uma ótima oportunidade unir gelo e seca para destruir aquele país!

Aquela era a minha chance.

— E onde está a serpente? - Eu tinha que ter sorte pelo menos nisso. Não tínhamos nem ideia de que era a tal Cietriz. Se eu estava no ninho das cobras, eu precisava pelo menos saber quem era a dona do ninho!

— É em mim que você tem que manter suas atenções - Ela maneou a cabeça para Katrizia e ela tirou um punhal da manga do vestido, caminhando até mim - Eu exigi que só seria libertada com o sangue de um daqueles que me derrotaram!

Katrizia entrou no círculo enquanto Jadis falava. Eu não conseguia mover os pés e a voz da feiticeira parecia ressoar dentro de mim naquele círculo. Minha cabeça martelava muito, não somente por causa da pancada, mas pelo esforço para não cair na tentação de deixar a feiticeira livre.

— Pensei na possibilidade de ter Pedro em seu lugar - Ela continuou. Katrizia agarrou meus cabelos da nuca, bem no local onde haviam me golpeado e eu grunhi de dor. - Mas foi por sua causa que Aslam me enganou na Mesa de Pedra e eu não perderia a oportunidade de desdenhar de seu sacrifício ridículo e colocar seus irmãos em desespero.

Os soldados se afastaram e a sacerdotisa me fez andar para frente, em direção ao paredão. Fui obrigado a olhar nos olhos de Jadis. A frieza que ela emanava veio sobre mim como o nevoeiro esverdeado que enfrentamos a bordo do Peregrino e me paralisou como veneno. O efeito da magia do círculo havia funcionado e embora em meu íntimo eu quisesse fugir dali, meu corpo já não era mais meu.

— O destino do seu sangue é ser meu, Edmundo - Jadis alertou. Senti a sacerdotisa calormana cortar as cordas que me prendiam, já que agora era o círculo do ritual que me aprisionava.

— Não, não! - Exclamei quando ela segurou a minha mão com a palma para frente e abriu um corte para que o sangue escorresse, tal qual fizeram com Caspian no Monte de Aslam. Lágrimas de desespero começaram a descer dos meus olhos.

— Venha! - Sua ordem era um chamado irresistível. Relutei com todas as forças, mas meus pés se moviam até ela, mesmo trêmulos com a minha força contrária.

— Aslam, se estiver me ouvindo, não permita isso! - Implorei e foi a vez de Katrizia rir.

— Seu destino está selado, reizinho! - Ouvi sua voz atrás de mim e senti sua mão me empurrar para frente.

O frio que o paredão de gelo emanava chegou à minha pele e senti os pelos dos braços, pernas e nuca se eriçarem. Comprimi os lábios ao ver Jadis tão de perto e me vi como o Edmundo assustado logo após descobrir que tudo o que ela queria era me ver morto.

Sua mão saiu do gelo, os dedos brancos com cristais de gelo cravados na pele. Meu desejo era fechar os olhos, não ver a terrível cena de Jadis tocando minha mão ensanguentada, aniquilando o selo que a mantinha detida. Mas era impossível não olhar para aqueles olhos verdes ferrenhos, a hipnose do círculo não permitia.

A sede de sangue de Jadis se expressou em seus olhos fixos na minha mão e seus lábios trêmulos. Apesar de ela rir do meu medo e da minha resistência, era como se nem mesmo ela acreditasse ser possível escapar de sua prisão. Seus dedos tocaram a minha mão e o corte pareceu queimar com seu toque frio, fazendo-me urrar diante do paradoxo que nos unia ali.

Ela se retraiu dentro do gelo e luz gélida se tornou cada vez mais intensa. De repente, a intensidade da magia ali dentro fez com que o paredão explodisse, jogando a mim e aos guardas para trás e atirando gelo para todos os lados. Caí, rolando em direção aos móveis velhos, sentindo o impacto contra a madeira nas costas.

Quando abri os olhos, vi que o gelo havia se desfeito. O resquício da luz azul agora repousava sobre uma Jadis de carne e osso, em pé no centro do salão, viva e revigorada.

Seus pés descalços caminharam até mim e eu fui impedido de me arrastar para trás por causa da mobília. Ela me ergueu pela camisa e me forçou a olhar dentro de seus olhos novamente.

Um sorriso maldoso acompanhou seu tom de voz suave e afrontoso. A aflição havia retornado, ressuscitado das cinzas como previra a profecia.

— Onde está o Grande Leão agora?


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Notas finais do capítulo

Capítulo cheeeio de emoções, hein gente? A vilã mais cruel de As Crônicas de Nárnia está de volta! O que acham que ela vai fazer?
E sobre a Hiandra? Acham que o Pedro pode confiar nela, ou ela é uma espiã?
Espero que tenham gostado do capítulo!



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