Vampires will never hurt you escrita por manasama677


Capítulo 2
Capítulo 2 - Give'm hell, kid




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— Onde ele está?

— Foi naquela direção que o vi!

— Em frente?

— Sim!

— Vejam! Ali está ele! Atirem!

 

Os caçadores naquela noite estavam em polvorosa. Um raro exemplar de meio-vampiro havia acabado de escapar das mãos de um curador de museu, que pretendia acumulá-lo em sua coleção particular de monstros. Como só um nicho bem específico da sociedade, no caso os caçadores e colecionadores, conheciam a essência dos vampiros, era impossível conduzir a luta para os lados da cidade sem arriscar a vida de todos os habitantes da zona urbana. As autoridades acreditavam que, se vazasse a notícia de que vampiros circulavam em meio aos cidadãos comuns, haveria um grande pandemônio. Por isso, o único argumento cabível para justificar aquela perseguição, era a de que havia um perigoso ladrão à espreita.

 

— Tranquem suas casas, senhores e senhoras! Não permitam que o mal adentre sua porta! - esgoelava-se um mensageiro, quase rouco.

 

Ruas inteiras foram fechadas para isolar o suposto ladrão. Helena, na sua carroça, reconhecia o caminho, e percebia que estava a duas ruas de casa. Depois do que o menino mensageiro repassou, ela achou melhor descer logo e voltar para casa antes que sofresse um assalto. Ademais, com a via bloqueada, ela não ia poder acessar o resto do trajeto indo de carona. Tomou sua pesada mala e, contrariando tudo o que considerava seguro, avançou andando.

 

A poucos metros dali, os caçadores praguejavam a fuga da caça. O garoto era, de fato, muito veloz. Tinha ainda correntes presas aos pés e, apesar disso, voava por cima das cercas e muretas como se tivesse asas nos pés.

 

— É aquele ali! Atirem!

— Bastardos! Vão se arrepender por isso! - rosnou a criatura, um espécime pálido com voz de adolescente.

— Parado, maldito! - um dos caçadores bradou em resposta, ao ver que, mesmo crivado de flechas, o teimoso vampiro não parava de correr - Vermes como você nem deveriam estar neste mundo!

— Aqueles que estão comigo acabarão com vocês! - ameaçou o jovem novamente - Eles virão me resgatar!

— Esse desgraçado não desiste! Continuem, ele está a poucos passos de nós! - disse o líder da perseguição.

 

Um arqueiro alimentou novamente sua besta e disparou mais algumas setas.

 

— É o seu fim! Renda-se!

 

Ao correr mais alguns passos, o vampiro se viu encurralado pelo encontro dos muros de três casas. Não havia mais saída.

 

— Não há para onde escapar! - foi o coro vitorioso dos caçadores.

— Fique quietinho. Iremos matá-lo bem lentamente...

— Nem pensar - interrompeu um sujeito de cartola, cavalgando lado a lado com os caçadores.

— O monstro deverá ser levado vivo - explicou o líder dos caçadores - Temos compradores para ele.

— Compradores? - perguntou uma caçadora, abismada.

— Isso mesmo, Angela. Compradores!

— Antes de discutirem meu destino como se eu não estivesse aqui, era melhor verificarem se realmente têm condições de me capturar! - esbravejou a criatura.

 

Helena, que arrastava sua mala, verificou a multidão que se concentrava naquele ponto entre três casas.

 

— Tragam o ladrão para cá, para que receba o tratamento adequado! - gritou uma dona de casa, da sua janela, com uma panela em riste.

— Ladrão? - Helena instintivamente colocou a mala atrás de si, até que alguém passou por ela correndo e ela foi arrastada vários metros para a frente - Cuidado! Cuidado! Minha mala!

— Essa voz... - disse o caçador.

— Tio Karl?!

— Helena!!

— Helena, cuidado! - alertou um dos caçadores - Estamos cercando um alvo!

— Exatamente - explicou Karl Lee Rush - Vamos dispensar a parte da emoção pelo reencontro. A postos! - gritou aos demais - Não o deixem escapar!

 

Helena espichou o pescoço e, por cima de todas as cabeças que bloqueavam sua visualização dos acontecimentos, notou um garoto aparentemente normal com duas setas crivadas no corpo, uma no braço e outra na coxa. Ele arquejava de dor, mas também rilhava os dentes de forma ameaçadora, revelando caninos pontiagudos como os de um animal. Helena respirou fundo e se sua boca se comprimiu numa linha fina. Seu peito foi golpeado de uma única vez por aquela agitação fervente e conhecida demais por ela: o ódio. Ela deu um passo para a frente, mas foi afastada pelo tio.

 

— Afaste-se - ele orientou.

— Nada disso - disse ela - Se não foi para ajudar, por que me escreveram?

— Não tínhamos mais dinheiro para cumprir a última vontade de Richard. Para poupá-la da humilhação de ser expulsa por falta de pagamento, nós a chamamos de volta.

— Eu já ia ser expulsa de qualquer maneira, por ter cometido uma infração.

— Que infração?

— Não importa! Depois falaremos disso!

— Senhor meu pai! Ele está fugindo! - gritou Bernard, apontando para o caminho aberto na multidão de populares curiosos que desviaram-se para não colidir com o monstro.

— Desgraçado sanguessuga! - Karl Lee Rush xingou, sem poder fazer nada.

— Não me diga que meu circo vai ficar sem este espécime raro! - queixou-se um dos possíveis compradores da caça foragida.

— Acaso perdeste o juízo, homem? Ele irá para o meu museu, para uma urna secreta que já preparei! Será exposto a uma elite de pagantes após eu empalhá-lo!

 

Enquanto os homens discutiam, Helena empurrou sua mala na direção de Vincent e Angela, deixando a orientação de que protegessem suas coisas de furto, agarrou as saias na altura das coxas e saiu correndo.

 

— O que aquela desajuizada pretende fazer? - inquiriu a filha do caçador.

— O que mais, senão meter-se em encrenca? - respondeu o noivo dela, contrariado, seguindo o futuro sogro, que o chamou com um aceno de cabeça.

 

(...)

 

Vincent não estava errado. Desarmada e sem ideia do que fazer para capturar o vampiro, Helena avançou assim mesmo. Correu por ruas inteiras, até que a última pessoa desapareceu do alcance de sua vista e ela se viu sozinha, diante de uma rua mal iluminada e deserta, e a certeza de que havia por ali um monstro bebedor de sangue.

 

— Onde está você? - sibilava a moça, como o caçador que chama para a armadilha uma besta inominável - Apareça...

 

Olhando em volta, ela se deu conta de que não havia a mais remota cavalaria ou multidão no horizonte. Sequer ouvia barulho de passos. Assustada, tomou de um meio-fio quebrado um pedaço de pedra do tamanho de um coração humano. Tinha certeza de que a criatura só poderia ter ido para aquele lado, pois viu precisamente a direção que ele debandou. A não ser que ele tivesse a habilidade de correr por cima dos telhados das casas, ela não tinha se enganado. No entanto, sem ninguém para interceder por ela ali, Helena era uma presa fácil. Quase estava desistindo de suas impressões e voltando para perto de sua família quando percebeu que havia colidido com alguém.

Sua reação natural foi gritar. Depois, quase conseguiu rir ao olhar para o motivo de seu susto: era um rapaz imberbe, muito jovem, talvez mais novo que ela. Era descorado, tinha uma palidez berrante que lembrava muito a maquiagem circense. Seus cabelos eram castanhos e ele tinha os olhos de uma cor caramelada quase amarela que claramente não eram humanos. Olhando melhor, Helena notou que havia nele os itens que comprovavam sua identidade: uma flecha no braço, outra na coxa, e mais uma, ela viu agora, nas costas. A criatura recuou um passo, mostrando as presas e fazendo um ruído semelhante ao de um gato arisco. Helena elevou a mão armada, dando passos laterais estudados como um lutador no ringue. Os dois se estudavam mutuamente, como se qualquer atitude fora do lugar fosse desencadear uma onda de violência.

 

— Encontrei você!... - ela tentou afetar alguma confiança, mas sua voz trêmula a traía.

 

Helena se sentiu tentada a olhar para o lado para verificar a proximidade de uma terceira pessoa naquele embate, mas não o fez, pois testemunhou o quanto o vampiro poderia ser veloz e desarmá-la em um instante.

 

— Vá embora. Não tenho a intenção de lutar - disse o jovem.

 

A moça analisou as roupas dele. Estavam em frangalhos, mas pareciam, outrora, ser peças de fino trato. Alguma coisa na presença daquele rapaz a conectou ao incidente que vitimou seu noivo, e sua ira acendeu novamente.

 

— Você deve ser um dos filhos daquele miserável que matou Richard, ou estou enganada?

 

Em vez de responder sua pergunta, o vampiro arrancou de si uma das flechas. Helena mostrou mais uma vez a pedra, de forma ameaçadora:

 

— Quieto!

 

Não muito longe dali, os caçadores e os compradores discutiam algo durante a perseguição:

 

— Temos que ser rápidos! Aquele ali é diferente dos outros e deve reunir os melhores elementos de ambas as raças!

— Como assim?

— Dizem que um meia espécie como aquele pode até andar sob a luz do sol! Água benta não surte neles o mesmo efeito que em um vampiro normal! Fora outros dons que sequer fazemos ideia!

— Estamos com sorte! - disse o homem do museu - Os meia-espécies custam mais caro no mercado negro por sua raridade!

— E obviamente, ele será nosso! - retrucou o dono do circo - Meia-espécies são perfeitos para servir aos humanos como atrações principais de grandes espetáculos! Seu rendimento físico superior deve originar números formidáveis!

— És estúpido - disse o dono do museu - Vulgarizar a presença de uma criatura do mal perante os incautos só servirá para espalhar o terror! A cidade virará um caos! Quiçá o país!

— Mas tu mesmo disseste que tens planos para ele!

— E tenho! Mas com ele morto!

— Quem acreditará que se trata de um autêntico vampiro e não uma farsa quando o virem mumificado ou empalhado?

— Se acreditarem ou não após tê-lo visto, é o de menos! O importante será que, até isso acontecer, o dinheiro já estará em minhas mãos!

 

Karl Lee Rush finalmente se manifestou, mas apenas para ignorar os dois:

 

— Helena já deve tê-lo encontrado. Se isso for verdade, já deve estar trabalhando para distraí-lo...

— Se não estiver servindo de caça para o sanguessuga - observou Angela, indiferente.

— Não creio - disse Bernard - Helena é habilidosa e veloz.

— Ainda assim, não é páreo para um vampiro, ainda que seja um meia-espécie - Vincent opinou - Sejamos breves! Acredito que foram por aquela direção! Separemo-nos aqui! Sigam por aquele lado e então o cercaremos!

 

Helena resolveu apostar todas suas fichas na pedra que tinha na mão, mas, ao contrário de Davi, não acertou seu Golias. O monstro, que havia coberto o próprio rosto usando os braços como se fosse uma criança indefesa, correu em disparada assim que viu oportunidade de escapar.

 

— Volte aqui! Não se atreva a ir embora! - ordenava a menina, colérica, correndo atrás dele - Logo os outros estarão aqui, e eles terão recursos para capturá-lo!

 

Após correrem por mais algumas ruas, Helena conseguiu encurralar o rapaz em mais uma rua sem saída.

 

— Por que está fugindo? Acho que já entendi...você não tem os poderes completos de um vampiro, não é mesmo?

 

A criatura apontou a flecha que tinha na mão para a caçadora.

 

— N-não se aproxime!!

 

Só para contrariá-lo, Helena deu um passo adiante.

 

— Nem mais um passo! - o vampiro ameaçou. Não havia uma só parte de seu corpo que não tremesse.

 

Confiante de sua suposição, Helena sorriu e meneou a cabeça. Mais um passo a aproximou dele.

 

— Está com medo? Está sozinho e ferido, sua situação é realmente desesperadora! Se tiver um pouco de inteligência, use-a para esperar pacientemente pelos caçadores! Eles acabarão com o seu sofrimento de forma indolor, eu garanto.

— Deixe-me em paz - o garoto implorou, forçando-se a permanecer em pé.

 

Não aguentou a posição por muito tempo, e caiu de joelhos.

 

— Maldição...!

 

Helena agarrou a barra de sua saia e, forçando um furo no tecido com as unhas, conseguiu extrair uma considerável faixa de pano. Agarrou um dos pulsos do vampiro, tentando não fazer observações espantadas de principiante sobre sua temperatura. Era a primeira vez que ela tocava em um meio vampiro e, embora ele não fosse quente como um humano, não tinha também a temperatura gélida de um morto. Era um estranho ponto de equilíbrio entre as duas coisas. Helena chegou realmente a duvidar se estava diante de um sanguessuga. Notou também que o suposto vampiro parecia um tanto limitado de entendimento, pois apenas olhava enquanto ela amarrava a corda em volta de seus pulsos.

 

— Por que não resiste? - ela por fim perguntou, indignada e desconfiada de tanta facilidade - Não é a sua vida? Por que não luta por ela?

 

O vampiro, de olhos baixos, nada respondeu. Helena golpeou o muro onde ele se encostava, fazendo-o saltar de medo.

 

— Responda!!

— A senhorita disse...

— Eu disse o quê? Fale!

— ...que os seus companheiros caçadores não me causariam dor. Isso é verdade?

 

A caçadora balançou a cabeça, sem acreditar.

 

— Você é um monstro e está com medo de nós? Não faz sentido! Afinal, és um humano ou um vampiro?

— Levem-me embora, mas deixem minha família em paz. Parem de nos perseguir, ou se arrependerão!

 

Helena riu.

 

— A sua família acabou com a minha, acabou com a família de várias pessoas! É meu dever matá-los um a um, a começar por você!

— Eu já disse que nenhum de vocês é páreo para aqueles que me enviaram!

— É mesmo? Isso só torna as coisas mais interessantes, vampiro. Qual é o seu nome?

— Fez muito bem em distraí-lo - disse Karl Lee Rush, avançando na direção da sobrinha - Avante - ele guiou os demais - Ele é nosso!

 

Quando viu a quantidade de armas diferentes apontadas para ele, o vampiro imediatamente recuou da ideia de se entregar pacificamente.

 

— Não o deixe escapar!

 

Helena já pretendia não fazer isso mesmo.

 

— Peguei! - ela anunciou a todos, sem dar espaço para fuga.

 

O vampiro tentou em vão fugir por alguns segundos que na cabeça de Helena pareceram a eternidade. A vitória da caçadora foi decidida no momento em que ela montou por cima do corpo dele, imobilizando-o. A flecha que perfurava as costas do ser maligno foi aprofundada ainda mais, colocando-o em um suplício maior.

 

— Amarrem-no! - pediu.

— Não serei derrotado por você! - rosnou o monstro, arquejando as palavras.

 

Helena, com a ajuda de Bernard, saiu de cima dele, e então ele foi atacado de todas as formas, por todos os lados. Não resistiu mais, ficando ao chão. A caçadora, tonta pelo esforço do embate, teceu um comentário de alívio:

 

— Parece, afinal, que o monstro acabou sendo derrotado por mim.

 

E, dito isto, chutou o corpo do vampiro desacordado como forma de expressar repúdio pelos minutos que se obrigou a acompanhá-lo.

 

— Omarion, ajude-me com isto - Lee Rush ordenou a um dos homens ao redor, sobre a carregar a criatura.

— Ele tem correntes nos pés - observou Helena - Por que estava preso, e não morto?

— Porque este daqui será vendido - Vincent respondeu, para surpresa da garota.

— Quer dizer que antes nós matávamos vampiros, e agora os vendemos? Parece que o segmento de nossos negócios mudou um pouco na minha ausência!

— Do que te queixas? - inquiriu o tio da moça - Com a venda de um desses, conseguiremos o suficiente até para montar uma vida fora daqui.

— Isso é verdade?

— Sim, perdemos tempo e dinheiro. Mas os tempos mudaram. A caça aos monstros já não se trata mais de reles patrulhamento, mas de um rentável negócio! - riu-se Vincent.

— Mesmo depois de um deles ter morto Richard? - Helena engrossou, agarrando a lapela do casaco do caçador - Mesmo assim, vocês têm a audácia de deixar pragas como essa vivendo em nosso meio?

— Solte-me, Helena. Falo a sério.

— Se nada entendes de negócios, cala-te! - retorquiu Angela.

— Tu o amavas! - ela apontou para a prima - Infernizaste-nos a vida porque o amavas! Ficaste feliz pela morte dele, pois assim eu e ele fomos separados! E a todos vocês, lhes falta honra!

— Calada! - o tio a golpeou no rosto com tanta força que Helena rolou pelo chão.

— Não sabes o que estás dizendo! - Angela quis avançar, mas foi contida pelo próprio noivo - Vais pagar por esta calúnia, perdida!

— Não te desperdices, minha irmã - pôs-se a dizer Bernard - Helena está louca!

— Assentem-se, todos! Sem escândalos aqui!

 

Como era a ordem do soberano líder da família, todos se calaram. Uma bonita mocinha de vestido bufante, cabelos artificialmente encaracolados e ruivos, a cara branca de pó de arroz e os lábios tintos de carmim se aproximou de Helena, e lhe estendeu a mão para que a prostrada caçadora se levantasse.

 

— Estás bem, querida?

 

Helena assentiu com a cabeça, mas estava ferida de morte. Por ter colaborado na caça, imaginou que pela primeira vez seria considerada pelos outros, mas se enganou.

 

— Ele será a atração principal do circo de papai! - disse a moça recém chegada, sorrindo - Não teremos o mesmo descuido deste mau curador que o permitiu fugir.

— Ora, mas é uma atrevida! Ele será exposto no meu antiquário secreto!

 

A ousada garota, que se juntou à comitiva dos caçadores acompanhada de sua família circense, mostrou-lhe a língua.

 

— Pois agora que lhe vi as fuças, faço questão de tê-lo conosco! Veja, papai! Como é belo o vampirinho!

— Toca-te para perto de mim! Não a quero mordida, menina! - o pai da garota a puxou para si.

— Pois acho uma pena que ele seja um vampiro! - continuou a artista circense, cruzando os braços e acompanhando o traslado do objeto cuja venda estava sendo discutida - Ou meio vampiro - ela deu de ombros, saltitando ao caminhar.

 

Ao chegarem em casa, Karl e os demais homens da família se isolaram em uma sala para discutir a venda do vampiro. Helena e a garota do circo se ocuparam de cuidar das feridas dele.

 

— Acho que teremos que mudar as roupas dele. Estão em péssimo estado - comentou a ruiva.

 

Helena, desinteressada dessa questão, tomou ataduras e unguentos diversos para fazer um curativo. Com a ajuda da nova amiga, postou o vampiro sentado enquanto removia a flecha das costas, que afinal ela percebeu que não estava assim tão profundamente afincada.

 

— Não parece ter sido nada grave.

— Será? Ele está sangrando muito.

— Não se aproxime muito. Irá sujar suas roupas.

— Deveria haver um homem nesta sala para garantir nossa segurança! Mesmo ferido, ele pode tentar nos atacar, ou mesmo fugir.

— Esta flecha, com esse modelo de identificação - Helena apontou para uma pequena parte da flecha destacada em vermelho - Ela está benzida. Um vampiro normal estaria morto, ou seriamente ferido.

— Será que ele não é um garoto comum?

— De forma alguma. Eu vi seus olhos, e ele me expôs suas presas.

— Será que vampiros como ele também se interessam em sangue?

— Não o posso dizer. Eu nunca estive diante de um meia-espécie.

— Acho que ainda não me apresentei devidamente! Eu me chamo Margarida!

— Helena.

 

Helena apertou a mão da outra, que lhe foi ofertada.

 

— Lamento pelo que houve lá fora, Helena.

— Não houve nada fora da normalidade. Não se aflija por isso.

 

A outra ficou pensativa a essas palavras.

 

— Confesso que estou com pena do vampiro. Parece-me jovem demais. Longe dos seus, deve ter ficado com muito medo.

— Essas coisas têm plenos poderes para se defenderem sozinhas - Helena respondeu, em um tom alto e até grosseiro.

— O medo e a solidão são universais. Mesmo os animais mais selvagens parecem tristes e temerosos dentro de uma jaula. Digo isso com propriedade; trabalho em um circo.

 

Helena, sem lhe prestar atenção, apenas atava as mãos do vampiro no encosto da cadeira.

 

— Não aperte tanto! Irá machucá-lo! - a circense intercedeu.

 

Sem ligar para isso, Helena amarrou o outro lado do punho do monstro, e nesse momento ele levantou a cabeça levemente, demonstrando ter acordado.

 

— Ele acordou! Uau! - comemorou Margarida, que tomou ligeiramente uma pequena flanela para enxugar o sangue que o meia-espécie tinha pelo rosto.

— Não se aproxime tanto! - Helena a advertiu, pois a espevitada Margarida se postava diante do garoto amarrado como se aspirasse botar o decote em sua cara.

 

O vampiro imediatamente baixou a cabeça.

 

— Que gracinha...ele é tão tímido. Parece que temos algo bem raro mesmo para o mundo dos humanos. Um rapaz com essa idade, virgem!

— Deixe de brincadeiras - Bernard, que havia acabado de chegar ao quarto onde o vampiro era cuidado, bronqueou - Não seja tão irresponsável com a própria segurança, moça. E se fores atacada?

— Se ele me atacar, descobrirei a fonte da eterna juventude!

— Não diga isso nem brincando - ele a tomou pelo braço - Vamos para fora.

— É claro que eu não falava a sério! Não quero morrer na primeira vez que entro em contato com um ser do outro mundo! Mas deixe-me ficar!

— Angela, por favor - Bernard indicou a irmã para ajudar na cura do vampiro ferido.

— De forma alguma - ela, que acompanhava o irmão, deu meia volta e saiu.

 

Helena investiu na direção do vampiro para remover sua roupa e limpá-lo.

 

— Parece que perdi minha ajudante - comentou, e mesmo estando a sós, o vampiro se deu conta de que a caçadora não falava com ele.

 

Ela, aliás, dava prosseguimento à atividade como se ele não fosse algo vivo.

 

— Isso parece doer - comentou a moça, assim que viu as feridas que ele trazia por todo o tórax - Perfurações, queimaduras...não parecem obra nossa. Afinal, que inferno percorreste antes de chegar às nossas mãos?

— Não se atreva a olhar para mim com pesar - manifestou-se o outro, com um tom de ira.

— Não seja ridículo. Está com raiva por ter sido capturado? Agradeça por não estar morto. Da minha parte, eu o lançaria à fogueira como fiz com os restos mortais de todos os outros antes de você. É uma pena que isso não dependa de mim!

— Se acabam conosco, não podem se queixar de revidarmos isso.

— Como ousa comparar as duas coisas?! - Helena o esbofeteou com todas as forças, e ia dizendo algo mais, se não tivesse percebido que o monstro fora desacordado novamente.

— O que está acontecendo? - indagou Angela, que vigiava pelo lado de fora.

— Chame o mestre Karl aqui. Se não cuidarmos do monstro adequadamente, ele só poderá ser vendido ao colecionador, pois estará morto.

 

(...)

 

— Eu fiz o meu melhor - Helena limpava as mãos numa bacia de água quente após higienizar e enfaixar todas as chagas do vampiro - Como podem ver, ele se parece com uma múmia.

— Ele não acorda mais? - Bernard se intrometeu.

— Aparentemente... - Helena tentou mentir.

— Ele acordou por um momento - Angela a atropelou - Mas Helena e ele discutiram, e ela o golpeou.

 

O olhar de Karl Lee Rush na direção da sobrinha foi mortal. Helena estremeceu, mas apertou os punhos de modo a não permitir que vissem seu medo.

 

— Talvez o monstro desperte com um pouco de sangue - Angela sugeriu sinistramente - E eu vejo neste quarto um belo motivo para derramar sangue.

— Não é para tanto - Vincent interveio, ficando à frente de Helena logo que percebeu que sua noiva sugeria a tortura da própria prima.

 

Angela o encarou com demasiada crueldade e ele, não querendo se indispor com ela, sorriu, tomando-lhe o braço. Karl ignorou o comentário.

 

— Vamos vigiar o vampiro em turnos - propôs o patriarca dos Lee Rush.

— Eu posso ficar com ele - Helena se prontificou, tentando se restabelecer do vacilo anterior.

— Não sei se posso confiar essa tarefa a ti, menina. Estás claramente perturbada - disse o líder da família.

— Sim, eu posso fazer isso - ela insistiu - Dentre todos, eu sou a maior interessada em não falhar.

— Bem se vê que, para Helena, Richard valia mais que todos os Lee Rush mortos – alfinetou Angela.

 

Helena nada disse, e Karl também não pareceu empenhado em procurar confusão nessas palavras.

 

— Bom, vou acomodar nossos possíveis compradores nos quartos de hóspedes e em seguida descansar. Quem quiser me acompanhar, fique à vontade; já passei pela exaustão de caçá-lo, não me mortificarei para além disso.

 

Um a um abandonou o quarto e, no fim, Helena ficou a sós com o vampiro.

 

Helena se sentou à beira da cama, tirou os sapatos e em seguida as meias. Quis perguntar por sua mala, mas tinha medo de responderem qualquer coisa sobre terem abandonado sua bagagem; seriam bem capazes disso. Para evitar novo confronto, desatou os laços do vestido e ficou só de combinação. Pendurou o vestido em um cabide e sentou-se na cama. Buscou ao redor um livro para ler, para evitar de cair no sono. O único que havia era um romance de cavalaria de seu tio, que ela já tinha lido várias vezes. Principiou a ler novamente, mas logo foi tomada pelo tédio. Começou a andar pelo quarto e abriu a janela para melhor observar a paisagem. Salvo uma ou duas casas, o restante estava de luzes apagadas. Só a luz da lua clareava remotamente as sombras de uma metrópole adormecida. Desencorajada a deixar a janela aberta, pois havia a possibilidade de a caça fugir, Helena a trancou outra vez. Quando voltou o olhar para trás, levou um susto com a impressão de que o vampiro olhava fixamente para ela, mas tudo foi um engano.

 

Ao se aproximar dele em ponta de pé, Helena percebeu que ele estava imóvel como uma pedra. Teve que se aproximar muito para detectar se o vampiro ainda respirava ou não. E, como um humano, ele respirava. Conferiu-lhe como a um escravo: analisou suas unhas, tateou-lhe os músculos e por fim ergueu-lhe o rosto para observar seus dentes. Fora, porém, golpeada pela constatação do que dissera anteriormente Margarida: o sanguessuga, airoso em absoluto, não apenas tinha um rosto agradável aos sentidos, como aparentava ter sido cinzelado inteiro para exercer a mesma atividade que ela, Helena, exercia em sua família: a de seduzir. Para ela, que encarava seus alvos com pleno desprezo, receber aquela novidade era como levar um soco no estômago. Por um momento, quase quis acreditar que ele era um humano que havia se convertido a um vampiro através de um ataque, mas era impossível que alguém nessas condições fosse apenas um meia-espécie. Diante de tal constatação, tirou as mãos dele tão rapidamente quanto as pôs.

 

— Maldito sanguessuga - falou de si para si, para reafirmar sua ojeriza, sem, é claro, se deixar convencer muito.

 

Empurrada, a cabeça do jovem caiu molemente para trás, deixando entrever um pescoço alvo e longo. A caçadora cruzou os braços e mirou o olhar para a parede, mas não ficou cativa naquela direção por muito tempo. De alguma forma, a fragilidade daquele monstro havia superado sua aparente soberba, e Helena se viu, pela primeira vez desde que tudo isso começou, preocupada com o que ia acontecer com ele. Diante da caça outra vez, arregaçou as mangas de sua blusa e conferiu as várias cicatrizes que ele tinha na pele. Deduziu que ele deve ter sido capturado bem mais do que uma única vez. Uma das marcas parecia atravessar simultaneamente as palmas e as costas de suas mãos, como se ele tivesse sido suspenso por um gancho, como uma peça de carne num açougue. Mas não adiantou muito fingir interesse em outros aspectos do capturado, logo Helena tomou aquele rosto perfeito entre as mãos para apreciá-lo e conferir que por pouco ele não escapara daquele desastre: o quiróptero tinha apenas um pequeno corte na altura de uma sobrancelha e outro pouco abaixo do queixo. Cicatrizes irrelevantes diante das que tinha pelo corpo todo.

 

— Imaturo demais - insistiu em desdenhar - A circense gosta de pirralhos, vejam só.

 

Passado mais um tempo, o ócio fez passar em sua cabeça uma ideia que pareceria coisa de louco: se ela desse sangue a ele, o monstro seria capaz de despertar? Um canivete que ela apanhou em uma gaveta após buscar instrumentos para se ferir por todo o quarto cumpriu a função de perfurar um de seus dedos. O imprudente teste compreendeu primeiro, testar se o vampiro farejava sangue de longe. Depois, besuntar os lábios da fera, por último, inserir o dedo em sua boca. A resposta veio a cavalo: Helena sentiu o calor e a maciez de uma língua contornando seu dedo, e lábios se fecharem em torno do membro ofertado. Ao puxar rapidamente sua mão de volta, sentiu-se roçar em uma presa pontiaguda que se formou em um silvo assustador; ele havia aberto os olhos.

 

Mal se deu conta de quem era a doadora do sangue que ele estava sugando, o vampiro virou o rosto, de modo a dispensar a oferta. Impaciente, começou a forçar as amarras que o prendiam à cadeira.

 

— Não perca seu tempo. Além de sua força não ultrapassar muito a de um humano, você está ferido, não é mesmo?

 

A garota deu umas voltas em torno da cadeira do prisioneiro, achando que sua provocação fosse arrancar dele alguma resposta. Nada. Ele apenas tentava arrebentar as amarras de seus pulsos.

 

— Está com medo, sanguessuga?

 

De novo, o silêncio.

 

— Já entendi. Você deve estar com muita raiva de mim. Se não fosse minha interferência, você poderia ter fugido.

— Não diga tolices. Eu escolhi isso.

 

Helena ficou desconcertada diante dessa informação. Se isso fosse mesmo verdade, ele poderia facilmente se livrar daquelas frágeis amarras e matá-la!

 

— Se algo acontecer comigo, os outros virão aqui e acabarão com você!

— Eu só preciso fazer isso? - indagou o monstro.

 

Ela ficou calada. Achou melhor não desafiá-lo mais. Tinha ânsia de morrer em alguns momentos da vida, mas não daquele jeito. Lembrou da promessa que fez às suas amigas de internato, de morrerem todas juntas, e engoliu em seco.

 

— Seus aliados não perdoarão o fato de você ter sido capturado. Estás morto, de qualquer maneira - arriscou a caçadora, retomando a prosa.

— Meus aliados sequer consideram a possibilidade de eu voltar desta captura com vida - disse o rapaz, amargamente - Isso não chega a ser realmente um problema; arriscaram-me conscientemente.

— E por que fariam uma coisa dessas?

— Já ouviste falar em "peças descartáveis"?

— És raro. Isso não faz sentido. E estamos falando de seus familiares!

— Sou precioso apenas para os humanos. Meu único diferencial em relação àqueles que me cercam é poder andar com o dia claro. Sou fraco e não tenho bons olhos. Também não sou veloz como os outros, por isso fiquei para trás.

— Então, por que os caçadores disputam com tanto ardor uma criatura inútil como tu?

 

O vampiro ia dizer algo, mas optou pelo silêncio.

 

— Pode dizer.

— Por que está tentando conversar comigo?

— Não entendi.

— Está tentando se desculpar? Por que humanos sempre fazem isso? Eu ainda prefiro os vampiros, que não arranjam desculpas para seus atos e muito menos cometem esse ato horrendo, que é pedir perdão após uma ofensa.

— Alguém aqui, por acaso, se desculpou? Deves estar febril, e a febre está fritando seus miolos.

— Quero lembrá-la de que eu sairia daqui mesmo com as mãos amarradas!

— Então, vá em frente; suas mãos já estão amarradas.

 

Irado, o vampiro mordiscou os lábios, sem resposta.

 

— Sobre aquilo que disseste antes, vocês humanos não me inspiram medo, mas dó.

 

Helena aproximou bem o rosto para melhor encarar a fera, segurou seu queixo, olhou em seus olhos e disse:

 

— Não é o que seus olhos dizem.

 

O meia-espécie tentou encarar de volta a caçadora como se isso fosse um desafio, mas não conseguiu por mais do que três segundos. Helena sorriu de satisfação com a vitória. Para aumentar o mal estar do adversário, a caçadora montou por cima dele. De mãos atadas à cadeira, o meio vampiro não podia fazer nada para afugentá-la dali.

— Minha perna dói - ele a lembrou do ferimento a flecha que tinha na coxa.

— A outra mulher que esteve aqui garantiu que tu eras moço. Agora, não tenho a menor dúvida.

A pobre criatura debaixo dela não sabia para onde olhar. Conservou os olhos baixos, enquanto a leviana ria. Sedenta por uma diversão maior, Helena explicou àquele principiante suas reais intenções, com a boca colada em seu ouvido:

— Quando o sol despontar por aquela janela, tu saberás se optaram por tua vida ou tua morte. Olhe para mim: isto é o máximo que um homem pode desejar. Todos os que te antecederam foram homens o bastante para aproveitar a oferta. No entanto, é a primeira vez que estou diante da chance de transformar um menino em homem. A ideia me agrada - ela concluiu, mordendo de leve a orelha do rapaz.

— Do que está falando? - perguntou o outro, desconcertado - Eu não entendo.

— A pergunta é: desejas morrer antes mesmo de saber o que é estar vivo?

Antes de ele saber o que responder, a caçadora saltou de cima dele. Alguém abria a porta. Helena arrumava os cabelos, tentando ocultar o rosto esfogueado. Angela, que havia acabado de entrar, olhava ora para a prima, ora para o prisioneiro que não parecia outra coisa, senão apavorado.

— Despudorada! Cubra-se!

— Vieste em boa hora. Preciso de roupas de baixo.

— Trouxe uma camisola.

— E a minha bagagem?

— Perdemos durante o tumulto. Não é óbvio? Olhe, não reclame. Já é muito que eu tenha que emprestar a ti uma das minhas roupas. E deu muito trabalho não escolher uma das novas! Só estou fazendo isso por exigência de Bernard!

Helena tocou na testa, contrariada.

— Claro. Em nada isso me surpreende.

— Do que estás te queixando? Salvamos sua vida desse daí - Angela fez uma menção com o queixo na direção do meio vampiro.

— Meus agradecimentos - Helena falou, com muito sarcasmo - Se não fosse minha intervenção, ele teria escapado com a liberdade de uma borboleta!

Angela riu.

— Então, creditas a ti mesma a captura do monstro! Ora, faz-me rir!

— Feche os olhos - Helena ordenou pudicamente ao vampiro, enquanto se vestia e removia, por baixo da camisola, as peças íntimas.

— Não te incomodavas com as peças mínimas enquanto estavam a sós.

— E isso quer dizer exatamente o quê?

— Cuidado para não ficar olhando demais para o sanguessuga. Pode acabar se apaixonando.

Helena ergueu a cabeça de forma altiva e desdenhosa.

— Isso é sério?

— Eu não nasci ontem! Não se esqueça de que a cabeça desta coisa está a prêmio! Era o que me faltava tu perderes nosso estimado Richard por causa de um vampiro e agora caíres de amores por um!

Sem mais dizer nada, Helena apresentou a saída do quarto à prima, quando as duas foram surpreendidas pelo barulho da cadeira virando. Numa velocidade inacreditável, o vampiro emborcou de lado e pegou o canivete que deveria estar em posse da garota que fazia a vigília. Como se fosse a coisa mais simples do mundo, ele cortou as amarras, saltou em direção à janela, a abriu e pulou do alto, caindo no meio da rua.

 

— Maldição! É tudo culpa tua! - Helena berrou, desesperada, levando as mãos à cabeça.

— Culpa minha?! O que um canivete fazia perto dele? Do que falavam antes de eu vir para cá?

 

Bombardeada por aquelas perguntas, Helena correu para alertar os outros de que o vampiro havia escapado.

 

— Dissimulada! Ai, que ódio tenho de ti! Olha o que aprontas! - Angela correu logo atrás.

— O que está acontecendo? - perguntou o noivo de Angela, interceptando-a.

— Ajude-me, Vincent! Chame o tio! Helena deixou o monstro escapar!

 

Helena não teve paciência para esperar de correr os degraus frontais da escada da casa; passou por cima deles pulando.

 

— Cuidado, Helena! - Bernard ficou apavorado ao vê-la saltar daquela altura que era quase a dela própria.

— O que quer dizer com "Helena deixou o monstro escapar"? - Vincent quis saber.

— Não o posso explicar agora, mas são os fatos!

— O que está acontecendo aqui? - o patriarca da família inquiriu, ainda de ceroulas.

— Perdemos a caça! - Angela respondeu, dando de ombros - E é tudo culpa de Helena!

— Não a podes acusar assim, minha noiva!

— Por que a culpa é de Helena? Ande, minha irmã, fale!

— Ela facilitou a vida do parasita deixando perto dele uma faca! Se é que não a entregou na mão dele, pois não lhe prestei atenção!

— Onde ela está? - rosnou Karl Lee Rush.

 

Seu filho, conciliador, quis bloquear sua passagem.

 

— Senhor meu pai, fique calmo.

— Helena correu atrás do meia-espécie, temos que ir atrás dela! - Vincent lembrou - Ela pode ter ido distrair o vampiro, como fez mais cedo!

 

Concordaram todos com esse plano, mas, no fim, procuraram por horas e nem sinal de Helena e tampouco do vampiro.

 

(...)

 

A poucos quilômetros dali, Helena se deu conta de que sua perseguição foi acabar nos rumos do cemitério. Era comum, nos dias em que não estava no internato, a menina ir para lá. Isso se dava, principalmente, por ela querer ver a sepultura do noivo, mas também porque lá era calmo, vazio e ela se sentia em paz, longe das surras do tio e das intrigas da prima que, em franca linguagem, a odiava gratuitamente. Como sempre fazia, caminhou por todo o labirinto de lápides até encontrar a sepultura do noivo. Lá chegando, debruçou-se por cima do monumento em memória de Richard e começou a chorar, ciente do que a esperava em casa. Só quando sentiu uma dor na mão é que percebeu que trazia o canivete consigo, e que ele a havia cortado profundamente na mão direita. Mas a família era o menor de seus problemas. Ela se deu conta de que começava a escutar passos. Apreensiva, olhou em volta, temendo por sua segurança. Podia se tratar de um inimigo mortal ou um pervertido, qualquer hipótese não lhe era promissora. No fim, a moça achou que a coisa mais segura que poderia fazer era sair dali, mas, alguns metros além, notou alguém em frente a um bloco retangular bem simples. Escondida por trás de uma lápide, reconheceu a criatura tão perseguida por ela. O belíssimo rapaz de cabelos castanhos também se debruçava em cima das lembranças de um morto. Quem seria essa pessoa, afinal?

 

Helena se aproximou sorrateiramente para ter certeza de que a pessoa mais à frente era de fato quem ela estava pensando. Imediatamente se fez notar na seguinte frase:

 

— Nada melhor do que um cemitério para abrigar um morto-vivo.

 

O rapaz levantou a cabeça vagarosamente e encarou a caçadora com os olhos molhados. Nunca ele havia parecido a ela tão humano.

 

— Está com tanto medo assim de ser recapturado? Desta vez, tens sorte; estou sozinha. Acredito que os outros sequer fazem ideia de onde estou.

 

Ele não a respondeu. Apenas se levantou e sentou em cima da sepultura, Helena percebeu, de modo a cobrir o nome de quem estava lá.

 

— Onde estão seus companheiros? - a caçadora perguntou.

— Por que quer saber?

— Eu perguntei primeiro. E quero respostas.

— Esqueça. Você não pode lutar contra eles.

— Sou tão capaz quanto todos os outros que deram conta de dizimar boa parte de sua família.

— Não deveria se gabar de seus feitos ao inimigo. Ou...

— "Ou" o quê?

— ...ou a senhorita não me vê como um adversário?

 

Helena riu abertamente, sem se importar com em fazer silêncio.

 

— Não se iluda. Todos vocês são meus piores inimigos. Eu odeio a todos, todos os que pertencem a essa raça maldita!

 

O vampiro boquiabriu-se.

 

— Acaso vais me dizer que não tenho motivos? Isso te aborrece? Deveria ser normal a todos vocês lidar com o ódio dos humanos, uma vez que arrancam de nós nossos entes queridos de forma tão despiedada e sem nenhum pudor!

— Você acha que foi a única vítima de uma perda?

— Como se atreve...?!

— Os humanos levaram embora o que eu tinha de mais precioso. Portanto, se nos considera cruéis por eliminar os humanos, o que tem a dizer sobre o costume dos humanos de nos caçar para sua própria diversão?

— Fala como se monstros como vocês tivessem sentimentos!

— Qual o sentido de dizer que somos piores do que os humanos e, nesta hora da noite, estar aqui se escondendo deles?

 

Helena ficou estática.

 

— Consigo farejar o seu medo. Sente-se mais segura comigo, um inimigo, do que com aqueles que a cercam!

— Quem você pensa que é para me dizer isso? Depois de todos aqueles que eu amava serem eliminados por seres abjetos como tu? Eu perdi amigos, parentes e meu amado Richard! Minha numerosa família ficou reduzida a meras cinco pessoas! Aquela hospedaria onde estiveste aprisionado mais cedo era cheia de pessoas, cheia de vida! Eu nunca concordaria em caçar vermes como você para entreter os humanos! Por mim, todos vocês seriam eliminados definitivamente!

 

Helena tentou atacá-lo com o canivete, mas ele a segurou. Após rolarem várias vezes pelo chão disputando o objeto, o vampiro conseguiu ficar por cima de Helena e imobilizá-la.

 

— Tu também pareces estar fugindo de algo...e foste claro ao dizer que eras descartável para os seus...! Por que está aqui se arriscando, o que pretendes provar?

— Não estou me arriscando. Não quando estou aqui com você.

 

O vampiro não conseguiu mais dizer nada. Ainda que inocente em relação ao sexo oposto, não conseguia se desviar do crescente interesse que aquela indefesa humana sob ele lhe despertava. Seu corpo acabava de ser iniciado em sensações desconhecidas; o coração palpitava a ponto de perder o fôlego, os membros amoleciam-se, e sentia-se febril. Todo aquele corpo pequenino e delgado, aquela pele alva, os longos e ondulados cabelos negros, os olhos azuis ferinos que acompanhavam cada movimento seu com sobressalto, tudo parecia-lhe familiar, tudo parecia lhe pertencer, como se estar encaixado naquela mulher fosse a resolução de um mistério primordial de sua existência.

 

— Julga-me inofensiva? É o que ouvi? - Helena quis saber.

— Não quis ofendê-la - disse o vampiro, desvencilhando-se da caçadora - Perdoe-me. Não duvido de suas habilidades, no entanto...por alguma razão...sinto que estamos conectados...por algum tipo de situação, talvez.

— Pensei que os meia-espécies fossem mais fortes. E olha isso, você está procurando pontos de identificação entre nós, como se quisesse ser condescendente. Isso é irritante. Você é como eles. Me subestima. Eu não suporto isso.

— Não a subestimo. Acho que somos igualmente limitados.

— Agora me chama de incapaz?

— Não! Não quis dizer isso!

Aproveitando que ele a tinha soltado, Helena resgatou o canivete e prontamente o apontou para ele. O vampiro recuou um pouco.

— Eu posso acabar com você agora mesmo - ela lembrou, com um sorriso alucinado - Você mal se aguenta em pé. A cada minuto que passa, seu sangue se esvai. Se és realmente um meio humano, isso deve estar te abalando. Você morreria passivamente, sem reagir. Tudo o que está me dizendo tem a finalidade de me apaziguar, para que eu não ponha fim à sua vida inútil.

Vendo que a presa recuava, Helena se sentiu mais motivada a avançar:

— O que é isso? Medo? Monstros como você temem a morte? Essa expressão humana não combina com você. Não condiz com o monstro que você é. Um monstro assassino...

Após muito recuar, a fera acabou recostada a uma lápide. Helena se agachou diante dele, para evitar que fugisse. O vampiro, sem energia pela exacerbada perda de sangue, arquejava. A caçadora parecia gostar do que via.

— Qual é o seu nome, vampiro? Eu sou Helena.

O monstro a encarou com uma mistura de ressentimento e desconfiança. Quis baixar a cabeça, mas Helena ergueu seu rosto novamente usando a ponta do canivete.

— Qual é o problema em me dizer o seu nome antes de morrer? Responda!!

— Se...Seingalt. Arthur Seingalt - ele respondeu, com visível temor na voz. Ele sabia que seu sobrenome era famoso por aquelas redondezas, especialmente na boca dos caçadores.

Em vez de atentar para a dura revelação, no entanto, Helena se perdeu na visão daquele rosto que começava ainda a abandonar as feições de menino para converter-se em jovem. Ele era, sem dúvida, a mais bela criatura que Helena já vira. Se isso era um teste que ela precisava superar para provar sua fidelidade ao falecido noivo, a provação se revelava escolhida a dedo. Como poderia uma criatura das trevas ter tamanha inocência no olhar e graciosidade nos trejeitos? Tudo nele aludia a uma pureza há muito perdida por ela. Ela quase se recusava a acreditar que aquele anjo fosse capaz de matar pessoas para sorvê-las com tanta impiedade.

— Nem parece real - ela deixou escapar, ao tocá-lo no rosto.

O cheiro de sangue na mão cortada de Helena também atraiu o vampiro de pronto. Tomando a mão dela por entre as suas, Arthur Seingalt começou a degustar o líquido avermelhado que o corte profundo despejava prodigamente. A caçadora, excitada com a proximidade, não se atrevia a reclamar da dor. Como se o contato a deixasse ébria, Helena sentia-se oscilar, perder o domínio de si mesma. Seu corpo fervia de um desejo incontrolável, inexplicável, incompatível com os atos realizados até ali. Via-se avançando na direção do monstro, atacando-o até remover dele todas as roupas que separavam um do outro. Com a precisão adquirida em anos de experiência, ela conseguiu em segundos desafivelar o cinto do rapaz, que interrompeu a alimentação para acompanhar as intenções da companheira.

— Helena...?

— Arthur Seingalt...és mesmo um ingênuo - sussurrou a menina, aproximando sedutoramente seu rosto do dele enquanto uma de suas mãos subia pela parte interna de suas coxas visando agarrar seu sexo. Seus lábios quase se encostaram nos dele, quando Seingalt, antes que ela terminasse a frase "Achou mesmo que eu iria machucá-lo?", a empurrou.

A caçadora ressurgia, sobressaindo-se ao desejo animalesco de possuir aquele desconhecido. Furiosa por ter sido desmascarada, ela avançou nele com o canivete mais uma vez, sem se importar em disfarçar suas intenções.

— Morra, maldito! - gritou, com a voz esganiçada. Era, para ela, um ultraje que a coisa tivesse chegado a níveis tão agressivos de perda de controle.

Mas o vampiro raciocinou duas vezes mais rápido do que ela, não se deixando convencer pela traição calculada. Helena e seu punhal tombavam rumo ao chão, enquanto o quiróptero rolava para o lado em fuga e se reerguia com as forças que lhe restavam, de qualquer maneira ficando em vantagem. Helena, que deixou a sua única arma escapar, esticou o braço para pegá-la, mas antes que sua mão tocasse o objeto, o pé de Arthur já pressionava o canivete no chão.

— Arthur! Não é nada disso...Eu só queria...

— Me matar, não é, Helena?

A garota recuou, apavorada. Quando Arthur deu um passo na direção dela, ela se apressou em jogar na direção de seus olhos um punhado de terra. Sairia correndo, se não tivesse tropeçado e se ferido o bastante para não encontrar ânimo em fugir.

— Não posso morrer aqui - disse a si mesma - Não pelas mãos desse idiota!…

 


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