Aroma europeu escrita por Camélia Bardon


Capítulo 1
Parte I - Me conta uma história?


Notas iniciais do capítulo

Olá ♡ tudo bem com vocês? Faz um tempo que não posto conteúdo novo aqui, mas ao ver o desafio não me segurei. Como dizem as notas, são dois capítulos, duas partes. A segunda parte será consideravelmente maior que a primeira, então pode ser que ela demore a vir, mas não percam as esperanças. Essa história está de molho há algum tempo e é o meu xodó ♡ Tenham uma boa leitura!



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Minha esposa disse, um dia desses, que tinha reparado que a "neném" havia crescido quando apareceu aqui em casa apresentando o namorado. Ela tinha dezesseis, e o tal do rapaz, dezenove. Não coloquei fé.

⏤ Calma, Bernardo ⏤ ela tentava consolar mais a ela do que a mim. ⏤ A Clarinha já sabe o que faz. Deixa ela trazer o menino aqui.

⏤ Eu 'tô calmo, mulher. Não ‘tô interessado em menino nenhum. Não sei porque 'cês inventam essas firulas todas de ficar apresentando… Eu não fiz isso com o seu pai, por que ela quer fazer comigo?

⏤ Ele quer fazer bonito, amor…

Naquele dia, eu ri alto.

⏤ Pois que faça bonito lá na rua. Se alguém vier atrapalhar meu jogo no domingo, vai se ver comigo.

Deveria ter acreditado na mulher. A Clarissa e o "menino" ⎻ que mais tarde viraria Rafael e, depois, Rafa ⎻ não se desgrudam até hoje. Clarissa já tem seus vinte, e diz que eu ostento os meus sessenta:

⏤ Aí, ó. Cartão de ônibus, fila na lotérica já era… vai ficar aí ostentando os privilégios, igual um burguês safado.

Não entendo metade do que essa menina diz.

⏤ E eu vou pra onde, Clarissa?

⏤ E eu que sei? ⏤ ela dá de ombros, com a sobrancelha erguida. ⏤ Leva a mãe pra passear lá em São Paulo. Seja romântico.

Romântico… vê se posso com essa?

Voltando ao assunto inicial, o dia que percebi que a Clarinha tinha trocado de posto com a Clarissa, foi quando ela tinha dezenove.

Eu e a mulher sabíamos que ela ia ser rata de biblioteca quando foi a primeira da escolinha a ler sozinha. Pior: o dia que chegou dizendo que sabia o alfabeto de trás para frente. Ficou falando meia-hora. Mas passou uns anos e ela parou de falar tanto, para viver enfiada em livros. As amiguinhas pedindo Barbie e ela me pedindo livro. Vivia sozinha. Sofreu tanto naquela escolinha…

Quando fez quinze, ela decidiu que queria ler e escrever. Ficava tec tec para lá, tec tec para cá com o computador. Sabe-se lá o que ela ficava tanto escrevendo, que nunca mostrava para mim. Parece que enjoou uns anos, quando estava fazendo o Ensino Médio. Quando eu perguntava do tec tec, Clarissa fechava a cara e se escondia no fone de ouvido.

O tal do tec tec voltou quando ela fez dezoito. Dessa vez, como já tinha terminado a escola, ficou à toa em casa procurando um emprego. Acho que ficou tão entediada que voltou a colocar a cachola para funcionar. E ela passou a dividir as ideias comigo.

⏤ Tirou essa doideira toda de onde, Clara?

⏤ Nem sei, pai. 'Tava ouvindo uma música e me deu inspiração ⏤ essa costumava ser a resposta padrão dela.

⏤ Vê lá o que 'cê anda escutando, menina…

E ela ria, e ria. Risada gostosa que ela tem. De vez em quando até chora.

Passado um ano dela dividindo a atenção com Rafael e o tec tec, num dia ela veio sentar do meu lado no sofá, com o caderno debaixo do braço. Fiquei olhando de escanteio, esperando ela falar. Demorou o tempo de um comercial na televisão.

⏤ Pai… ⏤ começou ela, no tom amuado.

⏤ Chama sua mãe um pouco, que tal? ⏤ brinquei, e ela gargalhou de volta.

⏤ Ai, desculpa se o meu amor te incomoda! Se é assim, eu 'tô indo embora. Grosso.

⏤ Fala, dona Clarissa. Que é que a madame 'tá querendo?

⏤ 'Tô sem inspiração…

Franzi a testa, olhando para ela.

⏤ Não era você quem tirava inspiração até de uma casca de laranja?

⏤ Era… ⏤ ela riu fraco, colocando os pés em cima do sofá. ⏤ Mas já vai fazer um mês que não me vem nada. 'Tô ficando frustrada, sabe?

⏤ 'Tá. E o que é que 'cê quer que eu faça a respeito?

E aí ela me surpreendeu. Falou uma coisa que eu nunca vou esquecer:

⏤ Me conta uma história…?

Cruzei os braços atrás da cabeça e as pernas também, respirando fundo.

⏤ Uma história? História de quê, Clarissa?

⏤ Ah, pai. Uma história sua de quando o senhor era mais novo. Já sei! Conta de uma cena… uma não… conta a primeira cena que vem na sua cabeça, de quando o senhor tinha a minha idade.

⏤ Aí você me pegou de jeito… ⏤ me remexi no sofá. ⏤ Isso foi há, o quê, uns quarenta anos?

⏤ É, pai! ⏤ já tinha se animado, a criatura, agora que não iria desistir daquela história tão cedo. ⏤ Faz um esforço, o senhor nem 'tá tão velho assim.

Não estou tão velho assim? Aquele eram os privilégios dos sessenta?

Antes que pudesse retrucar, na verdade, veio uma cena na cabeça. Era 78, eu com meus dezenove, largado na rua. Desliguei a televisão e limpei a garganta.

⏤ Acho que eu tenho algo que te interesse.

⏤ 'Tô ouvindo, sem pressa.

Dito isso, ela abriu o caderno e destampou a caneta para tirar proveito do que quer que fosse.

⏤ 'Cê sabe onde é a casa da dona Geórgia, na rua debaixo? ⏤ comecei.

⏤ Sei. Aquela bonitona, né? Parece aquelas casas europeias… tão bonita no meio das casas feias da rua...

⏤ Ela mesma ⏤ ri. ⏤ Quando eu tinha a sua idade, aquela casa era da vó dela. Era uma inglesinha toda charmosa. Dona Edwiges. Lembro bem dela. Ela ficava debruçada todo dia de tarde pra ver a garotada saindo da escola ⏤ sorri, com certa melancolia. ⏤ Gostava de mim, a senhorinha. Eu acenava pra ela, e ela falava: "Vem, Bernardinho. Acabei de fazer um pão quentinho!". E a filha dela, mãe da dona Geórgia, como era o nome dela…? Ah, é. Helena. A Helena vinha debaixo do braço dela, toda tímida, rindo pros meninos.

⏤ Bernardinho… ⏤ ri ela, em tom baixo. ⏤ Arrasando o coração até das senhorinhas, hein?

⏤ Ah, eu só não arrasava mais porque ela já era casada. E muito bem casada.

Ela sorriu, encostando a cabeça na palma da mão e o cotovelo no braço do sofá.

⏤ Ah, é? E o que marido dela fazia?

⏤ Era florista. Não recordo o nome dele agora… ⏤ cocei a nuca, mas nada me veio. ⏤ Enfim. Ele era polonês. Os dois se conheceram vindo num navio pra cá, antes da guerra começar lá por aqueles cantos, sabe? O esposo dela cultivava as vendas no terreno deles e depois levava pra floricultura. A casa dela era a coisa mais linda, você tinha que ver. Vivia cheia de flores, o ano inteiro.

⏤ Quais delas?

⏤ Ah, Clara. Não era que nem hoje, que o clima é todo bagunçado. No verão dava dália, gerânio… bonito mesmo era no inverno. A frente da casa ficava cheia de rosa, ciclame, margarida, íris e jasmim. Era o orgulho da vida da dona Edwiges: exibir o jardim da casa dela, todo fim de tarde.

Clarissa riu, anotando alguma coisa no caderno. Depois ficou me encarando, perdida nos pensamentos.

⏤ É essa a primeira coisa que eu me lembro com dezenove anos. De voltar da faculdade e tomar café da tarde com a dona Edwiges, enquanto o esposo dela cuidava do jardim.

⏤ Entendi… ⏤ sorriu ela, se levantando de supetão. Derrubou o caderno, voltou pra pegar e ligou a televisão de novo. Em seguida, ela veio até mim e me deu um beijo na testa. ⏤ Obrigada, pai. Me inspirou bastante.

A mulher diz que eu sou muito carrancudo, mas não deu para não sorrir diante daquele gesto tão agradecido. É como dizem; com os filhos, quando tem amor no meio, a gente sempre fica mais molenga. Mesmo assim, agitei uma mão como quem diz "de nada", e ela saiu correndo feito um beija-flor.

 

A partir daquele dia, a gente só via Clarissa e o caderno juntos. Às vezes variava entre Clarissa, caderno e Rafa e Clarissa, caderno e o tec tec. Parava só para mudar de posição ⎻ no sofá, na mesa da cozinha, no quarto, na laje… isso e para tomar um café. Ficou dois dias inteiros assim.

No final do segundo dia acordei para ir no banheiro de madrugada e ela estava dormindo, debruçada em cima da mesa do quarto e com a luz acesa. Fiquei com dó e joguei o cobertor embolado na cama em cima dela, e apaguei a luz.

Ao terceiro dia, cheia de olheiras, ela chegou sentando no sofá sem cerimônia. E de praxe, o caderno na mão.

⏤ Pai…

⏤ Se for pra dar dinheiro, não tem.

⏤ Não! ⏤ riu ela. ⏤ É outra coisa. Queria que o senhor visse isso aqui, ó.

⏤ Já disse que senhor é o seu avô falecido ⏤ grunhi, mas busquei os óculos de leitura na mesa de centro da sala. ⏤ Eu tenho que assinar alguma coisa?

⏤ Claro que não, né, pai. Eu tenho dezenove, já faz um tempo que 'cê não tem que assinar nada pra mim.

⏤ Pra mim você parou nos dezessete, Clara.

Soltando uma risada irônica, ela passou um monte de papel preso com um grampo de cabelo. Fiquei encarando tudo aquilo com uma provável cara de interrogação, até que ela levantou de novo.

⏤ Mãe pediu pra eu ir buscar pão, vou deixar você lendo aí e na volta você me fala o que achou, tá?

⏤ Tá certo. E trás mortadela! ⏤ falei num tom mais alto para ela ouvir, já que tinha atravessado metade da sala.

E lá fui eu colocar os óculos para analisar o que ela tinha me dado. Afastei os papéis e li a primeira linha. Parecia um título.

 

Aroma europeu, por Clarissa Garcia

 

Dediquei os quinze minutos para ler o trabalho de tanto tec tec, que ela teve  o cuidado de imprimir só para eu ver. Não gostava tanto de ler, mas se fosse algo dela, eu fazia com o maior prazer.

Quando chegou em casa, ela me lançou um olhar curioso, no entanto eu não teria comentários, a não ser "bom trabalho, filha". No entanto, não nego o tom orgulhoso.

Foi naquele dia que reparei o quanto a Clarinha tinha crescido. O quanto ela se orgulhava de repassar uma história minha na versão do cérebro criativo dela.

E, o mais importante, o quanto aquela menina que eu tinha visto crescer tinha evoluído a ponto de recriar algo que me faria, dali em diante, suspirar duas vezes. Uma pelo meu eu de dezenove, e outra pelo eu dela de dezenove.


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Notas finais do capítulo

E aí, que cês acharam por enquanto? Podem conversar comigo que não mordo HEHEHEHEH um beijão, e até o próximo/último!