A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 4
03: A prova do fio prateado (e não grisalho).


Notas iniciais do capítulo

Uma dica, Gintsune não gosta quando falam mal do cabelo dele! U.Ú

Glossário:

Okaeri Nasai: Expressão utilizada por alguém que acabou de chegar a casa, algo como “estou de volta”.
Zori: Sandálias tradicionais semelhante aos chinelos. Existem zori formais e informais, eles são feitos de muitos materiais, incluindo tecido, couro e vinil e podem ser enfeitados.
Geta: Sandálias tradicionais de madeira.

P.S: caso haja alguma palavra que não compreendam avisem-me.



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Uma coisa muito interessante no mundo dos humanos — embora tudo no mundo deles fosse extremamente interessante — era a sobreposição que havia nele entre os mundos físico e espiritual, permanecendo sempre como um e ao mesmo tempo dois mundos distintos, embora agora a divisão parecesse muito mais definitiva do que era nos tempos antigos, visto que nenhum humano que houvesse encontrado até então parecia capaz sequer de pressentir o outro mundo.

Era nesse plano que viviam as únicas criaturas sobrenaturais que Gintsune vira desde que voltara àquele mundo, embora fossem tão estúpidos, fracos e irracionais que sequer valia a pena dar atenção a eles, dividindo espaço com uns poucos e raros espíritos humanos errantes e quase sem qualquer capacidade de interferir diretamente no plano físico. Sendo Gintsune uma raposa ele era perfeitamente capaz de enxergar ambos os planos como duas pinturas que se sobrepunham, e passar do plano espiritual para o plano físico a hora que bem entendesse, embora precisasse admitir que estivesse um tanto quanto enferrujado nisso. Quando estava no plano espiritual Gintsune tornava-se invisível aos olhos dos humanos que eram incapazes de enxergar aquele plano, e também incorpóreo o que emprestava a ele a habilidade de flutuar — embora ele já fosse capaz de voar em quaisquer que fossem os planos — e atravessar objetos sólidos.

O mundo youkai, no entanto, parecia longe demais para que Gintsune pudesse alcançar por si próprio.

Assim durante boa parte do dia ele havia explorado a cidade alternando-se — às vezes até de forma descuidada — entre os planos físico e espiritual, mas pouco depois do cair da noite pensou que talvez já fosse hora de procurar por um lugar para ficar, afinal ele provavelmente ainda ficaria por ali por algum tempo.

Não que ele realmente precisasse de um lugar para ficar, ele era uma raposa afinal, um andarilho, um aventureiro, mas... Talvez tanto tempo parado num mesmo lugar o tivessem amolecido e até deixado mal acostumado.

Foi assim que ele lembrou-se do mapa que o tal professor Haruna havia lhe dado e, adentrando o plano espiritual, subiu aos céus na forma de raposa e procurou lá de cima pela tal pousada.

...

Entrou na pousada atravessando a porta da frente, e encontrou o lugar praticamente vazio exceto por uma velha sozinha atrás de um balcão, ignorando-a Gintsune estava prestes a sair em busca da cozinha quando suas orelhas moveram-se captando o som de água e virando a cabeça para a esquerda avistou duas passagens, uma com uma cortina azul e outra com uma cortina vermelha, cada uma respectivamente com as palavras “homens” e “mulheres” as identificando.

A raposa sorriu, era um banho público! Bem que ele estava mesmo querendo tomar um banho!

E esquecendo totalmente de seus planos de procurar a cozinha Gintsune entrou no balneário masculino.

O único problema foi que ainda havia humanos lá dentro, pelo menos, meia dúzia de homens velhos e enrugados, e Gintsune até poderia misturar-se com eles e passar facilmente despercebido se quisesse, mas ele não estava a fim.

E assim, ainda em sua forma de raposa, voltou à área dos vestiários e deitou-se por cima de alguns armários para esperar até a hora que todos fossem embora, tomando um cuidado redobrado para não acabar acidentalmente passando de um plano para o outro sem perceber, mesmo que só o fizesse momentaneamente, se um humano o visse seria como uma visagem, uma raposa fantasma aparecendo e desaparecendo em pleno ar, e Gintsune não tinha vontade de causar pânico, ou mesmo de assustar alguém, simplesmente porque “assustar humanos” não era um de seus passatempos favoritos.

Pareceu demorar uma eternidade, mas finalmente todos os humanos se foram, Gintsune ainda esperou mais alguns minutos para ver se algum outro humano entrava, e quando não entrou ele sorriu satisfeito e saltou em câmera lenta — afinal também não existia gravidade no plano espiritual — para o chão, passando, durante a trajetória, do plano espiritual para o físico e abandonando a forma de raposa para torna-se novamente um homem, sem preocupar-se dessa vez em escurecer os cabelos.

Deixou suas roupas por ali mesmo, fazendo uma careta ao ver o estado em que estavam as sandálias que a esposa do tengu havia feito para ele — normalmente elas deveriam ter durado bem mais, mas ele havia passado boa parte daquele dia perambulando como homem, quando normalmente andava em forma de raposa.

Logo mais precisaria arranjar sandálias novas.

—Eu já tinha me esquecido de como pode ser chato tomar banho sozinho. — Gintsune suspirou sentado num banco de plástico e virando uma bacia de água sobre seu ombro, quando teve todo o banho público só para si.

Há tempos aquela raposa não tomava banho só, em seu mundo Gintsune sempre tomava banho junto com os filhos do tengu, geralmente ele preferia tomar banho com crianças e mulheres por achar mais divertido, já que homens adultos tendiam a mal conversar durante o banho e nunca brincavam entre si, ao contrário das crianças e das mulheres.

Às vezes ele também tomava banho com o tengu, embora isso fosse raramente porque, como já mencionado, homens adultos tendiam a não ser tão divertidos, especialmente se esse “homem adulto” em especifico estivesse zangado com Gintsune por ele ter tentado banhar-se junto com a esposa dele. Mas, para falar a verdade, Gintsune nunca entendeu porque o tengu e a esposa ficavam tão zangados nas vezes em que ele tentou banhar-se com ela, quer dizer, aquela garota não tinha nada que ele nunca houvesse visto ou tido antes e Gintsune sempre se certificava de assumir a forma feminina quando tentava se juntar a ela no banho — uma vez até tentou usar a forma de uma menina pequena —, mas, de uma forma ou de outra, eles sempre ficavam inexplicavelmente zangados com ele.

Passou ainda um tempo a banhar-se ali sentado naquele banquinho, antes de, já com o corpo totalmente limpo, ergue-se de onde estava sentado e caminhar calmamente até a grande banheira pública mais próxima, sentou-se ali sentindo a água aquecida a uma temperatura que parecia ideal aos humanos, no entanto ele era uma raposa capaz de dominar o fogo, o que o tornava não apenas capaz, mas desejoso, de lidar com uma temperatura mais alta.

Assim, Gintsune aproximou as mãos em concha e fez surgir entre elas uma bola de fogo de um tom tão azul que quase chegava a ser roxo, e sorrindo afundou a bola flamejante na água, mas ao invés dela apagar-se a água começou a esquentar ainda mais, e continuou a esquentar depois que retirou as mãos e deixou a bola de fogo queimando no fundo da banheira, chegando quase ao ponto de fervura e começando a liberar vapor por todo o balneário.

Vapor era bom, limpava os poros.

A única vantagem de estar ali totalmente sozinho, Gintsune pensou, era que ele podia esquentar a água o quanto quisesse, virando-se na água ele cruzou os braços na borda da banheira e deitou a cabeça sobre eles.

O tengu costumava ser bem mais divertido quando era criança, na época em que Gintsune e ele se conheceram, e Gintsune sempre dizia isso a ele... De repente Gintsune ouviu um som estranho que não compreendeu, e, percebendo que de alguma forma havia adormecido, lentamente ergueu a cabeça e abriu os olhos, em algum momento de seu breve adormecer a esfera de fogo submersa dele havia se extinguido e uma de suas caudas e orelhas acabaram por vir à tona.

A sua frente uma garota de tranças estava parada de pé olhando-o com o chapéu do tengu nas mãos, um segundo depois sem aviso os olhos dela giraram nas órbitas e ela desmaiou.

Agora, com o rosto apoiado numa das mãos, era Gintsune quem a observava.

Secretamente, ou talvez não tão secretamente assim, ele gostou de ver aquela reação a si, pois há muito tempo — por mais inacreditável que possa parecer sendo, afinal, ele tão belo! — uma garota não desfalecia simplesmente por contemplar sua imensa beleza, já que em seu mundo todos já estavam acostumados demais com sua aparência — embora ainda ouvisse um suspiro vez por outra quando passava.

Mas logo aquela garota acordaria e isso significava que o banho de Gintsune terminava ali, pois ele precisava sair antes que recobrasse a consciência para que assim pensasse que apenas sonhara com ele.

Saindo da banheira Gintsune recuperou do chão o chapéu e dirigiu-se até a saída onde pretendia recuperar também o seu quimono e as sandálias — por mais acabadas que estivessem, era importante não deixar pistas. Ele vestiu-se em silêncio e abandonou o vestiário para procurar um quarto onde dormir, mas, ainda no primeiro degrau da escada com a mão sobre o corrimão, lançou um segundo olhar ao vestiário masculino, onde em seu interior uma jovem garota permanecia desfalecida.

Em condições normais seria apenas uma questão de minutos até ela recuperar-se, mas em um ambiente quente e abafado como aquele, cheio de vapor a ponto de ser asfixiante... Não havia como ela ficar bem, havia?

Além do mais, humanos eram sempre tão frágeis que ela podia muito bem ter batido a cabeça ao cair.

Suspirando a raposa começou a refazer seu caminho de volta.

Tanto tempo com aquele tengu e sua família realmente o haviam amolecido no final das contas.

E por naquela noite Gintsune ter voltado atrás, no dia seguinte Yukari não conseguia, de forma alguma, se concentrar na aula.

—É por isso que todo número elevado à zero... — dizia o professor Haruna, mas Yukari não era capaz de ouvi-lo.

Na noite passada quando acordara ela estava deitada sobre o tatame num dos quartos vazios da pousada e havia uma toalha de rosto molhada dobrada sobre seus olhos, uma janela fora deixada aberta e deixava o ar frio da noite entrar, e ela não tinha a mínima ideia do que fazia ali.

Ainda que nunca antes ela tivesse pegado no sono em qualquer um dos quartos na pousada que eram destinados aos convidados, até porque só visitava aqueles quartos a questão de trabalho, mesmo quando não havia hóspedes vez por outra Yukari acabava encarregada de limpar e arejar os quartos para que não se acumulasse mofo nem poeira neles — tarefa que durava o dia todo — ela não deveria estar ali, pois recebera a tarefa de cuidar do balneário masculino, não dos... O balneário masculino. O homem raposa na banheira.

De repente tudo voltara à cabeça de Yukari, e arfando ela levara a mão ao peito sentindo o coração acelerar-se ao lembrar-se do rosto da raposa. Não que ela houvesse se apaixonado a primeira vista, não, longe disso, mas somente se estivesse morta para que não reagisse de alguma forma que fosse a tamanha beleza sobrenatural.

Com movimentos abruptos Yukari levantara-se e correra dali para voltar o mais depressa possível ao balneário masculino, ignorando propositalmente que, por ter acabado de recuperar-se de um desmaio, deveria manter-se calma para evitar desfalecer uma segunda vez.

Mas para sua decepção — e surpresa — não havia nada fora do normal no balneário masculino.

Todo aquele vapor excessivo do qual ela lembrava havia desaparecido, e as cinco grandes banheiras estavam todas desocupadas.

E tudo não passara de um sonho?

Mas se era assim como ela havia ido parar naquele quarto? E quem colocara a toalha sobre seu rosto?

Não havia como ela ter feito tudo sozinha, a menos que fosse sonâmbula, mas casos de sonambulismo não aconteciam assim durante desmaios, aconteciam?

Suspirando ela começara a se aproximar da primeira banheira, havia tantas perguntas, mas nenhuma resposta, talvez ela realmente houvesse apenas sonhado, por mais absurdo que isso pudesse parecer — embora a possibilidade de que ela não tivesse sonhado também soasse absurda — pois na banheira não havia qualquer sinal de que um homem raposa estivera ali.

Ou foi o que pensara.

Pois flutuando sobre a água algo longo e fino parecia cintilar, e afundando a mão na água quente da banheira o que parecia ser um longo fio de cabelo que cintilava em tom prateado como se tivesse luz própria veio grudado a sua palma ao trazê-la de volta.

Nesse momento seus olhos arregalaram-se, pois aquele era o cabelo da raposa!

É claro que um simples fio de cabelo a deriva numa banheira não parecia ser prova o suficiente de coisa alguma, mas cabelos humanos não brilhavam daquela forma!

E tudo bem, podia até ser que ela ainda estivesse meio zonza do desmaio — embora, convenhamos, não fora nada tão grave assim — e aquele realmente fosse apenas um fio de cabelo comum.

Essa até seria uma possibilidade se aquele não fosse o balneário masculino.

E não havia em Higanbana um homem com cabelos daqueles comprimentos que, como Yukari bem sabia, muitas mulheres matariam para ter — pelo menos não um que frequentasse a casa de banhos Shibuya — e muito menos um com idade o suficiente para já ter os cabelos brancos.

Com o fio enrolado em volta da mão Yukari voltara depressa ao vestiário, mas sem correr porque as regras da casa eram rígidas quanto a correr dentro da área de banho, e lá checou cada um dos armários, decepcionando-se ao não encontrar nada em nenhum deles. Afinal o que ela esperava? Encontrar o quimono, ou as sandálias ou mesmo o enorme chapéu? Suspirando ela começara a refazer seu caminho de volta, afinal ainda havia trabalho a fazer, quando algo estalara sob seu pé, da mesma forma que estala o papel ao ser amassado, e ao olhar para baixo percebera estar pisando numa folha de papel dobrada.

Pegara-a por reflexo para inspecionar se era lixo ou algo que alguém poderia querer recuperar mais tarde.

Era um mapa.

Muito mal desenhado, mas ainda assim um mapa, um que levava direto até ali, e Yukari reconhecera aquela letra, reconhecera-a porque a via sempre na escola, aquela era a letra do professor Haruna.

—Muito bem, sei que esta é a ultima aula antes das férias de verão e estão todos ansiosos. — disse professor Haruna na ultima aula do dia seguinte — Eu também estou, acreditem, por isso antes que esqueça é melhor que eu passe logo a vocês os exercícios das férias, e quero-os de volta logo na primeira aula quando as férias terminarem.

Mais de uma dúzia de alunos começaram a se lamentar e reclamar e de repente a adolescente de tranças se viu de volta ao presente.

—Oh não professor! — alguém reclamou em meios aos lamentos.

—Já temos muita lição para as férias. — outro alguém protestou.

—Bem, então uma lição a mais não fará diferença. — afirmou o professor com os braços cruzados e seu sorriso de sempre.

Os alunos ainda protestaram e se lamentaram mais um pouco, mas não houve jeito e logo professor Haruna estava distribuindo cópias de sua tarefa de férias para os alunos sentados nas primeiras cadeiras de cada fileira para estes repassassem aos detrás.

—Professor nós vamos passar as férias todas resolvendo isso! — um garoto reclamou levantando-se assustado tão rápido que quase derrubou a cadeira ao ver o número de questões de matemática que o aguardava.

—Bobagem. — Professor Haruna respondeu descontraído, sentando-se a sua mesa — Tenho certeza de que algumas poucas horas serão mais do que o suficiente para resolver todas as cinquentas questões.

Dessa vez as lamurias e protestos foram ainda mais enfáticos do que antes, o professor, porém, ignorou a tudo com um sorriso.

—Parece que estamos terminando por aqui. — afirmou juntamente com o soar do sinal que indicava o final das aulas. — Vejo-os novamente em setembro, boas férias a todos.

Fácil para ele dizer, claro, não era ele afinal que tinha cinquenta questões de matemática e mais uma pilha de outros deveres para fazer.

—Yuki. — Kaoru a chamou parando ao seu lado enquanto Yukari guardava mais aquela lista de exercícios na pasta — Eu e algumas meninas vamos ao karaokê, já que hoje é o último dia de aula e tudo... Você não quer vir conosco?

O karaokê perto do pequeno Gamer Center no centro era um dos poucos divertimentos para os jovens naquele lugar.

—Desculpe Kaoru, hoje não posso. — negou.

Kaoru a olhou meio que decepcionada, Yukari ajudava no negócio da família sete dias por semana e justamente por isso nunca tinha tempo para sair e se divertir, ainda assim ela tinha esperanças de que a amiga um dia dissesse sim.

—Você não pode ligar para casa e dizer que vai se atrasar? Só hoje? — insistiu.

—Desculpe Kaoru, hoje não dá. — ela desvencilhou-se da amiga — Agora com licença, eu preciso falar com o professor Haruna.

Ela curvou-se e saiu dali.

O que Yukari não sabia, no entanto, é que enquanto ela estava na escola assistindo aula, há algumas quadras dali uma jovem de cabelos escuros e uma beleza que parecia quase sobrenatural adentrava um café.

Muitos pararam para olhá-la enquanto ela se dirigia até o caixa para fazer o seu pedido, não se incomodou em parar na fila e ninguém tampouco teve coragem de repreendê-la por isso, a moça parecia como que saída diretamente de uma revista e de fato suas roupas haviam mesmo saído de uma revista, era um belo vestido branco que lhe demarcava bem a cintura, com uma saia rodada até o meio das panturrilhas, decote quadrado e alças finas, na cabeça tinha um elegante chapéu branco e nos pés usava delicadas sandálias negras com saltos finos de sete centímetros.

A moça — Devia ser uma modelo! Só podia ser! — parou em frente ao caixa e fez seu pedido com uma voz doce e suave, e pagou-o deixando o dinheiro cair em sua mão com um delicado movimento do pulso direito, onde se prendia uma finíssima pulseira prateada.

E, ainda seguida pelos olhos de todos, a bela jovem afastou-se com seu pedido em direção a uma mesa vazia e ali sentou-se.

Não demorou até que um mais corajoso — sempre havia um, não é mesmo? — com a mesma idade que a bela aparentava ter se aproximasse, empurrado e incentivado por amigos, mais empurrado do que incentivado é verdade, e tentasse puxar conversa e ela com um sorriso fácil ao invés de despachá-lo, como seria esperado de uma moça linda como aquela, o convidasse a se sentar.

Passado algum tempo com os dois conversando o rapaz a convidou para sair dali e ir a um karaokê — ou qualquer outro lugar que preferisse — junto com ele e os amigos e, um pouco mais confiante e ousado, perguntou se ela por acaso não teria amigas que quisesse levar também, mas, oh pobrezinha, acontece que ela era nova na cidade, entende? Não tinha nenhuma amiga que pudesse levar consigo. Uma lástima.

Os rapazes, amigos daquele mais corajoso, logo se agitaram, não havia como uma garota concordar em sair dali sozinha com quatro caras que sequer conhecia, nenhuma moça sensata o faria! Logo trataram de arranjar mais companhias femininas para irem com eles, para que a moça ficasse mais a vontade e se sentisse mais segura também, um deles acabou por ligar para a irmã mais nova, que estava na escola, celulares eram proibidos na escola, mas a maioria dos jovens considerava que não havia problemas desde que não fossem pegos.

Ele disse à irmã que estava indo ao karaokê com uns amigos, e convidou-a para ir junto a incentivando a chamar algumas amigas também, ela se recusou, chamou os amigos do irmão de pervertidos por estarem querendo sair com garotas do colegial e além disso alegou ser estranho que irmãos saíssem juntos, mas ele insistiu, quase até implorou, prometeu que não fariam nada demais, que pagariam por tudo que elas consumissem, disse que era realmente importante, até que ela cedeu.

Assim sua irmã chamou algumas meninas para encontrá-los no karaokê, e entre essas meninas estava Kaoru que, por sua vez, estendeu seu convite a Yukari, convite este que ela acabara de recusar.

E naquele exato momento, enquanto Kaoru e as meninas se preparavam para ir encontrar o irmão de uma delas num café próximo dali, de onde seguiriam para o karaokê, Yukari chegava à sala dos professores.

—Com licença, professor Haruna? — chamou aproximando-se de sua mesa.

—Oh, Shibuya-san, sente-se, sente-se. — o professou a convidou sorrindo indicando uma cadeira ao lado — E então, o que a traz aqui? Dúvidas com a lição que passei?

—Não, nada disso... — ela sequer havia olhado para os exercícios ainda — É que eu queria lhe fazer uma pergunta.

O professor assentiu sorridente.

—Então faça, estou aqui para ajudar.

Ela sentou-se e, antes que perdesse a coragem, Yukari soltou de uma vez:

—Ontem o senhor desenhou um mapa até a minha casa para alguém? — um segundo depois se curvou — Desculpe! — disse — Desculpe! Vir até aqui só para fazer uma pergunta tão estranha dessas, eu realmente sinto muito professor por lhe tomar o seu tempo assim...!

—Eu fiz.

Yukari ergueu a cabeça.

—O que?

—Ontem eu desenhei para alguém um mapa que levava até a sua casa.

No bolso de Yukari estava o fio de cabelo prateado da noite passada, embrulhado no mapa de professor Haruna, sentindo a boca seca a garota perguntou:

—E... Para quem o senhor desenhou esse mapa, professor?

—Ah, foi para um jovem forasteiro. — ele respondeu — Ele parecia meio confuso, entende? E ainda não tinha um lugar para ficar, por isso indiquei a pousada de sua família. Por quê? Por acaso ela já esteve lá? Disse que fui eu quem os indicou?

—Não tenho certeza, não estive na recepção o dia todo ontem. — Yukari engoliu em seco — Mas... Como era o rosto dele?

Só de pensar no rosto dele Yukari sentiu o coração acelerar uma batida, mas apenas uma, e suas mãos fecharam-se com ansiedade pela resposta do professor.

—Não sei.

Yukari piscou.

—Não sabe?

Professor Haruna balançou a cabeça.

—Sinto muito Shibuya-chan, mas ele estava com o rosto oculto por um chapéu até muito curioso, do tipo que não se vê todo dia, disse-me que era de um amigo.

O aperto das mãos de Yukari desfez-se e ela suspirou desanimada.

—Entendo.

—Isso era tudo? — Professor Haruna inclinou a cabeça de lado — Sinto muito se não fui de muita ajuda.

—Não professor, eu é que devo me desculpar por vir até aqui só para lhe fazer essas perguntas tão estranhas. — Yukari levantou-se fazendo uma reverencia — Sinto muito por ter tomado o seu tempo dessa forma.

—Não há pelo que se desculpar, eu estou aqui para o que precisar Shibuya-chan. — garantiu o professor.

Mais uma vez Yukari curvou-se.

—Obrigada por tudo professor. — agradeceu já se despedindo.

Mas quando chegou próxima à porta ouviu o professor chamá-la novamente e virou-se.

Professor Haruna ergueu uma mão.

—Se acaso meu amigo realmente tiver ido até lá não se esqueçam de me dar um desconto da próxima vez por tê-los indicados. — brincou.

Yukari sorriu e assentiu sem jeito não sabendo como reagir às brincadeiras do professor, e despediu-se saindo ainda a tempo de ouvir outro professor advertir o professor Haruna sobre a proximidade dele com suas alunas, afirmando que isso ainda poderia lhe causar problemas um dia, ao que o professor Haruna respondeu dando uma risada e agradecendo pela preocupação.

Quando Yukari chegou a sua casa, encontrou com o pai agachado no gekan mexendo no armário de sapatos com uma expressão grave no rosto.

—Okaeri Nasai. — anunciou-se.

—Yukari, você viu minhas sandálias Zori? — o pai perguntou sério ignorando as regras de educação, e sua seriedade era enfatizada por ele tê-la chamado por “Yukari” ao invés de “Yuki” como sempre fazia.

Sandálias Zori eram praticamente os únicos calçados existentes naquela casa — juntamente com as getas.

—Não. — Yukari piscou surpresa — Qual delas?

—Aquelas que sua mãe tingiu de azul para mim, com forro de algodão...

—Eu não as vi. — Yukari respondeu já tirando os próprios sapatos da escola — Não as deixou em outro lugar?

O pai a olhou sério, afinal Shibuya Daisuke era um homem extremamente metódico, de hábitos e manias que nunca deixava nada desorganizado ou fora do lugar, engolido em seco Yukari murmurou um pedido de desculpas e afastou-se um passo para o lado, o pai então apenas a ignorou, resmungou irritado fechando o lado esquerdo do armário e abrindo o direito com tanta força que uma folha saiu voando dali, rodopiando no ar e indo parar aos pés de Yukari, exatamente igual à folha que ele havia encontrado mais cedo pela manhã em sua gaveta de meias, — e se ele tivesse parado para contar, perceberia que estava faltando um par ali — mas ele não deu atenção aquilo, e tampouco algum dos dois deu atenção à folha de agora.

Ajeitando os sapatos no chão, Yukari deixou o pai ali com seus resmungos e subiu para o seu quarto.

Agora, algo que talvez vocês devam saber é que Yukari era uma menina de regras rígidas, que herdara alguns dos hábitos de organização do pai, embora não de maneira tão obcecada quanto ele, mas o suficiente.

Por isso há de se entender então a surpresa dela ao entrar em seu quarto e deparar-se com sua cama desarrumada — como se alguém houvesse se deitado nela — e a meia dúzia de revistas que antes estavam em seu armário espalhadas no chão.

Largando a pasta no chão a garota apressou-se a recolher as revistas — uma delas estava aberta numa página onde uma linda modelo pousava em um vestido branco, com delicadas sandálias negras de saltinho e um elegante chapéu branco em um cenário que parecia uma varanda de frente a praia — certificando-se de que não havia nem um amassadinho em nenhuma delas, pois todas aquelas revistas eram revistas de moda e maquiagem que uma colega de classe havia lhe emprestado após ouvir que Yukari não sabia se maquiar e nem se pentear ou vestir de maneira elegante, não que ela achasse algo como aquilo importante, mas para alguém como Yukari era importante devolver coisas emprestadas em perfeito estado, por ultimo ela recolheu uma revista onde uma garota sorridente segurava um cachorro fofo na capa e que estava um pouco mais longe das demais, como se houvesse sido atirada para longe.

Não havia uma explicação para aquilo — pelo menos não uma plausível — sua mãe e sua avó não entravam ali, pois Yukari era organizada o suficiente para que não houvesse necessidade de que qualquer uma delas arrumasse o quarto por ela, e seu pai, por mais louco que estivesse atrás de suas sandálias — coisas fora do lugar sempre o tiravam do sério — jamais faria uma bagunça sem propósito daquelas, na verdade se ele visse aquilo provavelmente enfartaria, e ela também não possuía irmãos mais novos.

Só podia ter sido a raposa.

No bolso de Yukari o mapa com o fio de cabelo pareceu pesar.

Talvez ele tivesse ido ali atrás dela, Yukari sentiu-se estremecer e também como se o rosto ficasse azul só de pensar nessa possibilidade. Afinal dizia a lenda que quando a raposa de Higanbana escapasse de seu lacre ela partiria em busca de vingança devorando todas as belas jovens que encontrasse.

Mas... Se a intenção da raposa realmente fosse essa porque não fizera nada a ela na noite passada quando ela desmaiara?

Será que por acaso ela não era bela o suficiente para o paladar exigente da raposa? Afinal dizia-se que a irmã do exterminador era a mais bela que já caminhara na face da terra.

Pensar nisso, que ela não era boa o suficiente nem mesmo para ser devorada, de alguma forma mexeu com seu ego e Yukari ficou mais do que um pouco incomodada, e até meio irritada, com aquela raposa esnobe.

Por mais que “desejar ser devorada” fosse um pensamento absurdo de se ter.

O resto do dia passou-se de maneira monotonamente longa, mas isso era apenas um prelúdio do que seria o resto do verão para Yukari, novamente ela ficou atrás do balcão na recepção, embora tivesse insistido que preferia fazer as tarefas domésticas de casa — assim, pelo menos, não precisaria colocar quimono — mas sua mãe não aceitou, e obrigou-a a ficar na recepção da casa de banhos enquanto ela própria tratava de arrumar a casa e preparar o jantar — por causa das manias de seu pai a casa estava sempre impecável, e ainda assim precisava ser limpa todos os dias — e dessa vez Yukari sequer poderia fugir deixando a avó em seu lugar, afirmando ter lição de casa, porque o dia seguinte seria o primeiro das férias de verão.

De fato o “ponto alto” de seu dia foi quando a avó chegou, e mesmo ela não tinha nenhuma grande novidade sobre a cidade.

Essa era a estagnação do verão que Yukari tanto odiava.

—Yuki. — o pai a chamou entreabrindo a porta do escritório.

—Sim pai? — respondeu virando-se.

—Ainda há alguém nos balneários?

—Não senhor.

O pai acenou afirmativo.

—Muito bem. — disse — Então já pode ir.

Yukari piscou.

—Mas... Agora que são 20h...

—Você disse que não há mais ninguém, e eu duvido muito que ainda chegue alguém há essa hora, então pode ir. Vá, deixa que eu fique aqui. — o pai a dispensou saindo do escritório e fechando a porta atrás de si.

Ele não havia encontrado as sandálias que procurava.

Yukari curvou-se.

—Obrigada, pai. — mas antes de realmente ir embora algo ocorreu a Yukari, ela parou e virou-se — Pai?

—O que?

—Quem vai cuidar dos balneários hoje à noite?

—Eu.

Yukari ergueu a mão como se estivesse em sala de aula.

—Pode deixar comigo. — garantiu.

O pai a olhou.

—Tem certeza Yuki?

—Sim. — confirmou — Cuidarei dos dois.

—Os dois? Mas não será muito cansativo para você?

—Eu ficarei bem. — curvou-se — Então, por favor, pai permita-me fazer isso.

—Tudo bem... — o pai concordou meio surpreso — Já que você insiste.

—Obrigada. — agradeceu erguendo-se.

Yukari limpou e secou os balneários com um tamanho afinco que somente poderia ser comparado ao de seu pai, e demorou-se até mais do que deveria ali, mas a raposa não estava na casa de banhos naquela noite, o que ela esperava afinal?

Yukari deixou ambos os balneários impecáveis.

Mas na manhã seguinte o pai a repreendeu, uma torneira fora deixada meio aberta e vazara água a noite toda, o chão estava molhado em alguns pontos e ainda havia água numa das banheiras.

Fora a raposa.

Logo depois de terminar de ser repreendida pelo pai — “se ela se oferecia para fazer alguma coisa que fizesse bem feito” — a mãe a chamou, naquele dia a vovó Tsubaki cuidaria da recepção enquanto elas duas limpariam e arejariam os noventa e nove quartos da pousada e colocariam para tomar sol todos os duzentos e cinquenta.

Os quartos precisavam ser arejados e limpos, pelo menos, duas vezes por mês, e os futons postos ao sol, ao menos, três vezes por mês.

Yukari odiou que seu primeiro dia de férias tivesse começado daquele jeito.

Mas ela encontrou uma coisa estranha num dos quartos, algo que pareciam ser espinhas de peixe e restos de arroz.

E não apenas isso, dia após dia as contas de seu pai, sempre tão exatas, não batiam, a comida diminuía como se alguém a mais a estivesse comento, todas as manhãs os balneários amanheciam como se tivessem sido usados, geralmente o masculino, mas por vezes o feminino, mesmo que Yukari os tivesse limpado com todo o afinco na noite passada, e sempre que ela procurava de maneira minuciosa ela podia achar restos de comida em algum dos quartos da pousada.

Coisas sumiam ou trocavam de lugar, e seu pai estava ficando louco com isso, às vezes Yukari encontrava também coisas que não deveriam estar ali, uma vez encontrara o que pareciam ser livros da biblioteca pública, noutra brinquedos como bichinhos de pelúcia e chaveiros que ascendiam.

E, segundo sua avó, “coisas curiosas” estavam acontecendo na cidade também.

—São folhas! — ela disse a Yukari.

—Folhas? — a garota piscou — De... Árvores?

—De Árvores! — a avó confirmou — Aparecem do nada dentro das caixas registradoras! Como se brotassem lá!

—Mas... Em quais caixas?

—Em todas elas oras! — a avó bufou — Se você saísse mais daqui saberia! Aonde quer que vá estão falando disso, das folhas nas caixas registradoras, ninguém sabe como ou quando, mas elas simplesmente brotam lá!

—Talvez seja o outono que vem mais cedo esse ano? — sugeriu.

—Não seja boba menina! — a avó a repreendeu — As folhas são todas verdes! Verdes, estou dizendo! Isso parece até coisa de um Tanuki ou de uma Raposa!

Yukari enrijeceu.

—Por que diz isso vovó?

—Ora. — a avó estalou a língua — Porque Tanukis e Raposas sempre pagam as coisas com grandes tesouros que acabam se revelando, no final das contas, belas ilusões e não passando de folhas, galhos, pedras e coisas do tipo.

A única caixa registradora em que nunca nenhuma folha havia aparecido, era a caixa registradora deles próprios.

E as sandálias de seu pai ainda não haviam reaparecido.

Foi assim que, antes que Yukari se desse conta, duas semanas já haviam se passado.

—Mas afinal o que estou fazendo? — ela suspirou sentindo-se esgotada e moída até os ossos, deitando cabeça em sua mesa de estudos.

Desde aquela noite ela vinha limpando sozinha os balneários, e vasculhando cada quarto da pousada sempre que tinha a chance.

Mas sempre encontrava apenas pistas da raposa, nunca a raposa em si.

Quer dizer, se é que havia uma raposa, porque, francamente, não importava quantas pistas Yukari encontrasse, a cada vez mais aquela “raposa” parecia mais algo criado por sua imaginação para fugir do tédio do que algo propriamente real.

Ela estava desistindo.

—Por que eu me convenci de que isso era o cabelo de uma raposa? — perguntou irritada consigo mesma olhando o fio cintilante enrolado em seu punho, que ela apertava cada vez mais forte — Por que eu me esforcei desse jeito só para ver algo que nem sequer existe?!

Estava tão cansada que nem sequer conseguia se mover.

Mas ainda assim trincou os dentes.

—Isso aqui não deve ser nada mais do que o cabelo de algum velho!

—Agora você me ofendeu! — Yukari enrijeceu assustada ao ouvir a voz atrás de si — Já não bastava você ter me roubado um fio de cabelo, agora o está comparando com o cabelo nojento de um velho qualquer?! O que você está dizendo pirralha? Que meu lindo cabelo prateado se parece com um cabelo branco e quebradiço qualquer que vocês humanos tem quando ficam velhos e acabados?!

Yukari virou-se, atrás de si no meio de seu quarto, estava de pé um irritado homem de cabelos prateados.

A raposa de Higanbana.

E nos pés tinha as sandálias de seu pai.

 

 


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Notas finais do capítulo

Bem! Yukari não estava sonhando afinal! Ela realmente viu um homem raposa!
Hum... O que vocês fariam no lugar dela?

Curiosidades japonesas:

As casas de banho (Sento) são locais onde os usuários podem desfrutar de um banho coletivo. Embora sua popularidade não seja mais como nos velhos tempos, o sento ainda é bastante utilizado, principalmente pelos mais velhos. E também é bastante comum pessoas do mesmo sexo tomarem banho juntas no Japão, mesmo quando não estão em casas de banho, mas sim em suas próprias casas, com familiares e amigos.



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