A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 2
01: A entediada raposa prateada.


Notas iniciais do capítulo

Olá novamente, que bom que voltou ♥
Finalmente chegou o dia da postagem, eu já não aguentava mais esperar!!!
Na verdade eu já tenho, pelo menos, mais uma dúzia de capítulos prontos e a minha vontade era postá-los todos de uma vez, mas devido ao meu ritmo extremamente lendo de escrita se eu fizesse isso a história acabaria sempre passando por longos períodos de hiatus entre um capítulo e outro depois que os capítulos prontos acabassem, então eu preferi me controlar um pouco e ir postando os capitulos mensalmente, para que assim eu possa ter alguma regularidade, pelo menos no começo kkkkk

Glossário:

Genkan: Área da casa, posicionada à entrada, onde se deixam os calçados antes de entrar;
Kiseru: Cachimbo de cabo longo tradicional japonês.

P.S: caso haja alguma palavra que não compreendam avisem-me.



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As crianças gritaram quando viram Gintune e voaram de encontro a ele, que agilmente transformou-se em uma raposa branca e esguia e saiu correndo pelo quintal com os dois garotos voando ao seu encalço espalhando ainda mais as folhas e, como ele bem sabia, irritando ainda mais a esposa de seu amigo tengu.

Ele era uma raposa duas ou talvez até três vezes maior que uma raposa normal, e muito mais ágil, forte e inteligente que uma também, mas nada que fosse anormal para aquele mundo de criaturas tão curiosas.

O tengu sempre reclamava daquilo, que os filhos pareciam gostar mais de Gintsune do que dele próprio, mas ora, isso não era justo com as crianças, afinal quem em sã consciência não amaria Gintsune? Ele era belo, astuto e podia transforma-se em quase qualquer coisa ou qualquer um, é claro que as crianças gostariam mais dele, inclusive porque se ele quisesse poderia ser uma criança assim com elas, embora muito mais bonito.

Ali a muitas das casas, e nisso se incluía aquela casa, não eram tão pequenas como as dos aldeões de antigos vilarejos humanos, mas também não chegavam ao tamanho auspicioso das grandes mansões dos nobres, como era a casa que a esposa do tengu morava no mundo humano, porém tinham um tamanho confortável e bons quintais.

—Gintsune! — a esposa do tengu voltou a chamá-lo já de volta com o ancinho em mão.

Para o bem da verdade é melhor dizer que “Gintsune” não era seu nome verdadeiro, e ninguém sabia realmente qual era o nome daquela raposa, mas, para ser justo, ele também não sabia qual era o nome de qualquer um ali naquele lugar, isso porque do seu ponto de vista não seria justo saber os nomes dos outros quando ninguém sabia o dele, portanto se alguém lhe dissesse o seu nome ele seria obrigado, por questão de educação — e Gintsune podia ser muitas coisas, mas certamente não era mal educado — a revelar também o seu nome.

Rindo a raposa foi ao chão bem aos pés da humana, tomando novamente a forma de homem, com os dois garotos alados em suas costas.

—Gintsune. — ela o chamou com olhar impaciente — Onde está meu marido?

Por respeito à raposa prateada, não só aquela garota, como também seu marido e seus filhos, e todos os outros que habitavam aquele lugar, evitavam dizer nomes em sua presença.

Mas seria por respeito ou por medo?

Afinal, fosse como fosse, Gintsune poderia ser pacifico, mas ele ainda era uma raposa prateada.

Sorrindo de forma ousada, Gintsune olhou para cima apoiando o rosto numa mão.

Havia uma fina pulseira prateada em seu pulso.

—Por que você está me perguntando isso? — perguntou languidamente — É óbvio que ele está na minha casa.

A garota suspirou.

—Sim, é óbvio que ele está lá. — deu meia volta e chamou — Então vamos logo buscá-lo, por favor.

—Tudo bem, tudo bem. — concordou entediado levantando-se sem o mínimo esforço, fazendo os dois meninos em suas costas caírem sentados no chão, e no caminho pegando o chapéu de palha do tengu.

Mas aquilo era algo que Gintsune não conseguia compreender, como afinal seu amigo, por mais tolo e inocente que fosse, havia se apaixonado e se casado com uma humana não tão bonita quanto eles?

Quer dizer, é verdade que todo aquele tempo junto com eles haviam lapidado a esposa do tengu e tornado-a não tão crédula, tola e influenciável como os outros humanos — prova disso é que não era assim tão fácil de fazê-la levar-se pelos truques de Gintsune e já não era mais qualquer coisa que a assustava — mas ainda assim ela continuava a ser uma simples humana e, justamente por isso, nem de longe tão bonita quanto o tengu ou o próprio Gintsune, ainda que com a longevidade anormalmente ampliada.

—Gintsune. — ela o chamou.

Gintsune, que caminhava novamente em sua forma de raposa branca com o chapéu do tengu sobre a cabeça — com todas as suas ilusões e transformações, não era difícil para ele diminuir aquele chapéu gigante até um tamanho proporcional à sua cabeça de raposa — a olhou.

Ali, entre os youkais, a garota tinha uma liberdade com a qual jamais se atreveria a sonhar entre os humanos, enquanto caminhava as mãos estavam postas sobre as coxas com os dedos estendidos e os polegares voltados para dentro, mas não se preocupava em manter os passos minúsculos, ou os dedos dos pés voltados para dentro e ela andava com a cabeça erguida, e não dócil e submissamente de cabeça baixa, algo que teria sido impensável — e imperdoável — no mundo humano, embora usasse um chapéu triangular feito de palha do qual pendia até seus ombros um véu semitransparente de tom rosado — um presente do tengu feito por suas próprias mãos — não o usava por uma regra de etiqueta, tradição ou qualquer coisa assim que dizia que mulheres não podiam mostrar o rosto em público, mas para proteger-se dos vapores e névoas daquele mundo.

Ali ela também tinha liberdade para sair sozinha sempre que quisesse, embora naquela ocasião estivesse acompanhada de Gintsune.

Essas eram algumas das diferenças entre a sociedade dos youkais e a atrasada sociedade dos humanos, e apenas mais uma de várias razões de porque youkais eram tão superiores.

—O que? — respondeu.

—Por que você ainda esconde seu nome? — ela perguntou.

Gintsune voltou a olhar para frente, aquela garota estava ali há dois séculos — ele era capaz de contar o tempo pelo crescimento de suas caudas — e ainda insistia naquilo, ele girou os olhos.

—Eu já te expliquei o porquê. — respondeu — Se você tomar posse do nome de alguém e souber como usá-lo, você pode controlá-lo até que tenha a boa vontade de devolver-lhe o nome, eu não vou dar a ninguém esse poder sobre mim.

Para tomar posse do nome de alguém, bastava você perguntar a alguém o seu nome, e se esse alguém fosse ingênuo o suficiente para lhe dizer o verdadeiro nome então você poderia assumir poder sobre ele, mas não bastava pergunta-lhe o nome de qualquer forma, não, você precisava perguntar já com segundas intenções, já com o desejo de submeter o outro, e funcionava tanto em youkais quanto em humanos, mais o pior é que tanto youkais quanto humanos podiam fazer uso dele, desde que tivesse poder o bastante.

E a única forma de se quebrar o feitiço era com a morte de um dos envolvidos ou se o “mestre” decidisse libertá-lo.

Mas claro, ele não precisava explicar nada daquilo a ela, porque já havia explicado milhares de vezes antes.

—Ainda assim. — ela disse — Se você simplesmente dissesse o seu nome antes de terem a chance de perguntá-lo você estaria automaticamente livre de qualquer controle que alguém poderia ter sobre seu nome.

O único problema é que, infelizmente, ela havia aprendido.

—Não é só por mim, criança tola. — ele declarou, porque pouco importava que ela fosse a esposa de seu amigo tengu e mãe dos filhos dele, ou que já fosse mais velha do que qualquer ser humano normal poderia ser, aos olhos de Gintsune ela sempre seria uma criança. — Também escondo minha identidade pela segurança de todos aqui, sabe? Se alguns de meus inimigos sequer sonhassem onde estou... Por isso é melhor não revelar meu nome, assim ele não se espalha e as noticias não correm, e eu não trago problemas a ninguém.

Claro que isso era uma de suas mentiras, pois sendo ele uma raposa mentir era uma de suas várias naturezas.

—Você sempre diz isso, mas desde que está aqui nunca causou nenhum grande transtorno, uma pegadinha aqui e ali, é claro, como é próprio de uma raposa, mas no geral sempre foi uma raposa até bem pacifica, e meu marido me disse que mesmo entre os tengus você nunca causou nenhum grande problema, apesar de que era bem irritante.

—Esse é o eu de agora. — afirmou — Você não conheceu o antigo eu, a raposa selvagem que fui.

Ao seu lado a garota exprimiu um som de pura descrença e voltou a falar:

—Se quer a minha opinião.

—Não quero. — ele a cortou.

Mas ela continuou mesmo assim:

—Eu acho que você é tão velho que já até esqueceu o próprio nome.

Ele a olhou indignado.

—Onde foi parar o seu respeito, garota?

Isso só a fez rir, levando a mãos aos lábios por debaixo do véu.

—Sabe que falando assim você só parece ainda mais velho? — perguntou ousada — Quantos anos você realmente tem Gintsune?

Gintsune resmungou irritado.

—E quanto a você garota? — decidiu fazer a conversa voltar-se contra ela — Não sente falta do mundo humano? De andar entre os seus?

Por um longo tempo ela não respondeu, andando em silencio com as mãos sobre as coxas sempre com o olhar adiante, que diferença da primeira vez que ele a viu, quando o tengu a trouxe até sua casa.

Naquela época ela parecia mais um animalzinho assustado, encolhida e agarrada ao braço do tengu, usando o chapéu dele e totalmente apavorada enquanto se esgueirava naquele novo mundo de tão visível dicotomia onde seus habitantes possuíam da mais monstruosa aparência a mais inumana beleza que tanto os diferenciava dos humanos.

Isso também assustara o tengu por um momento, pois ele temera que ela ficasse tão fascinada pela beleza daqueles que assumiam forma humana que o abandonasse, mas Gintsune logo o tranquilizara:

—Não seja tolo. — ele lhe dissera ao ouvir sobre esse medo infundado — Afinal ela já me conheceu, não é? Se mesmo a minha estonteante beleza não pôde tirar os olhos dela de você, nada mais poderá.

—Talvez às vezes. — ela finalmente lhe respondeu — Mas nem tanto eu acho, todos os que eu amava já partiram afinal, e aquele mundo tornou-se estranho a mim, este é meu lugar agora.

Os dois começaram calmamente a atravessar até o outro lado da rua pelo tumulto que era a variedade de criaturas sobrenaturais a habitar aquele lugar, espalhando-se por todo lado, tanto por terra quanto por céu, mas isso era fácil para eles já que todos se afastavam instintivamente da raposa, por um respeitoso medo incutido ali, havia ali híbridos meio animais, árvores que andavam, criaturas que pareciam monstruosos cogumelos, cabeças voadoras de olhos saltados que arrastavam cabeleiras oleosas, e outros que quase pareceriam humanos, se não fosse sua extraordinária beleza — nenhum deles é, claro, se comparava a Gintsune.

E ainda assim a figura mais curiosa de se ver por ali, era a esposa do tengu: a única humana naquele mundo.

—E do que sente falta?

—Do sol e da lua. — ela respondeu — Oh, e das estrelas também.

—Nós temos sol e lua aqui, cuidado com o carro de bois, e também estrelas.

Ela balançou a cabeça.

—Não onde eu possa ver, pelo menos.

Bem, é claro que ela não podia vê-los, tendo ali uma concentração tão grande de youkais a “energia sinistra” — sua composição básica, da mesma forma que fantasmas são compostos por ectoplasma e seres humanos em parte por água — liberadas por eles tornava-se tão intensa que até mesmo assumia forma física, transformando-se em vapores e névoas, que transformavam aquele mundo em um cenário eternamente mergulhado em uma neblina por vezes esverdeada ou arroxeada — em alguns dias mais densa do que outros — e o desprovia do sol e do brilho da lua e das estrelas.

Toda essa “névoa” proporcionada pelo acumulo das energias sinistras dos youkais, a propósito, era a razão para a esposa do tengu usar aquele véu na rua, pois em seus primeiros dias naquele mundo ela caíra fortemente doente, com enjoos e vômitos, até que seu corpo se adaptasse a nova mudança de ares, aquele não era um mundo para humanos afinal, os vapores daquele mundo eram mortais a eles, mas a energia do tengu a sustentava por isso ela sobrevivera, e agora o véu a preservava, ao menos um pouco, nos dias em que a névoa estava mais intensa, mas após tanto tempo seu corpo estava tão habituado com aquele mundo que usá-lo era mais uma questão de hábito do que propriamente de necessidade.

— Só porque você não pode vê-los não significa que não estão lá. — ele retrucou.

A garota encolheu os ombros.

—Ainda assim sinto falta deles.

Estavam agora adentrando a rua onde estava à casa de Gintsune, diferente do tengu e sua família, porém, Gintsune morava numa casa pequena de um cômodo só, construída rusticamente de madeira com um teto de palha e pedras no fim de uma ruazinha próxima à entrada principal daquela cidade youkai, e por vezes o tengu já o questionara sobre aquilo, por que afinal Gintsune não fazia uma casa maior para si? Certamente ninguém ali se oporia aquilo, mas Gintsune já se sentia confortável com a casa que tinha.

—Eu e ele estávamos jogando e fizemos uma aposta: se ele ganhasse poderia ficar aqui na minha casa enquanto eu ia em seu lugar fazer as tarefas, se eu ganhasse eu podia escolher meu prêmio mais tarde — disse subindo o degrau que separava a varanda de sua casinha da rua e deitando-se despreocupado ali.

A garota tirou as sandálias e entrou na casa da raposa segurando o chapéu numa das mãos, e momentos depois saiu puxando o marido com a outra.

—Mas qual o problema? — disse ele — Gintsune não foi ajudá-la?

—Eu pedi ajuda a você e não ao Gintsune! — ela respondeu — E você sabe bem que Gintsune é como uma criança e que perto de outras crianças só faz mais bagunça ainda.

Sendo levado pela mulher o tengu lançou um ultimo olhar a casa do seu suposto cúmplice, e avistou ali a própria raposa, agora já em forma de homem, deitado de lado apoiando o rosto numa mão e fumando seu kiseru com a outra, uma das pernas estava estendida e a outra com o joelho dobrado acima do chão, o quimono descuidadamente amarrado abria-se, e o chapéu de palha ainda permanecia em sua cabeça, já de volta a seu tamanho anormalmente grande.

—Você! — ele apontou — Tínhamos um acordo, raposa traiçoeira!

Pobre tengu, o conhecia desde criança e ainda não aprendera que não se devia confiar em tratos feitos com uma raposa.

—Ela nos descobriu! — a raposa respondeu.

O tengu não podia ver-lhe o rosto, mas sabia que sorria.

—E devolva meu chapéu! Bandido!

A raposa gargalhou.

—Quem sabe numa próxima vez que vier?

Sendo levado pela mulher que o levava em direção à larga rua principal, o tengu grunhiu.

—Sabe perfeitamente que não poderei voltar aqui tão cedo! Trapaceiro! Pilantra! Planejou tudo para o seu divertimento!

Girando até estar sobre a barriga Gintsune gritou com as mãos em volta da boca:

—Seus problemas conjugais não são da minha conta!

Mas sua voz foi engolida pelo barulho da multidão quando o tengu e sua esposa alcançaram a rua principal.

Os deuses podiam ser realmente cruéis às vezes, imagine só, amarrar um tengu e uma humana pelo laço do destino, uma humana não podia viver entre youkais e muito menos um tengu poderia viver entre humanos, aquilo nunca poderia dar certo, isso era o que Gintsune costumava pensar e ainda assim... De alguma forma dera.

Isso fazia Gintsune olhar o próprio mindinho às vezes e imaginar que tipo de peça os deuses poderiam ter preparado para ele.

Ah, mas ele estava apenas pensando em besteiras novamente, com certeza por causa do tédio!

Sem ter mais o que fazer Gintsune girou de costas, deixando o cachimbo de lado, cansado dele também, e puxando o chapéu sobre o rosto cruzou os braços por detrás da cabeça, pouco tempo depois já ressoava.

E pensar que sua vida se tornaria naquilo, uma casinha em alguma cidadezinha perto das montanhas, girando basicamente em torno da vida familiar de um tengu e sem nada mais para fazer, logo ele que tanto havia viajado e há tantos atormentara — fossem humanos ou youkais — estava ali se consumido em tédio, cansado da pacata vida em comunidade, desejo de sair, viajar, roubar, atormentar e pregar peças como fazia antes — claro, ele fazia tudo aquilo ali também, mas depois de tanto tempo tornara-se repetitivo — e principalmente: sentindo falta dos humanos.

Ah! Como ele se divertia com os humanos nos velhos tempos!

Era sempre tão fácil ludibriá-los!

Gintsune sentia falta disso, de andar entre os humanos, de enganá-los fazendo-os achar que era um deles, de seduzi-los...!

Mas não havia mais humanos e, portanto, também não havia razões para que ele saísse dali, pois num mundo sem humanos e habitado somente por youkais, tudo o que encontraria lá fora seria uma mesma cena daquela encontrada ali, encenada milhares de vezes em lugares diferentes.

Assim só restava a ele sendo consumido pelo tédio acumulado de mais de um século.

—Gintsune-Sama? — ele ouviu uma voz ronronar e sentiu uma mão tocar levemente o seu tornozelo — Gintsune-Sama?

“Gintsune-Sama” esse sim era o digno respeito com qual ele deveria ser tratado sempre.

—Tama? — ele respondeu reconhecendo aquele ronronar ao acordar, empurrando com o polegar o chapéu levemente para cima — Que horas são?

Tama, não era o nome verdadeiro dela, mas era o nome pelo qual Gintsune gostava de chamá-la, um nome tipicamente dado a gatos de estimação, e isso porque “Tama” era, na verdade, um Nekomata — um gato monstro sobrenatural de duas caudas.

—Já é de noite. — ela respondeu manhosa.

Sentando-se e tirando o chapéu do rosto, Gintsune olhou para o céu e viu que era verdade, ali, naquele mundo, o céu tomava um tom púrpuro durante a noite, sem sinal de lua ou estrelas, tudo devido à névoa criada pela energia condensada dos youkais.

Talvez a esposa do tengu tivesse razão em sentir falta da lua e das estrelas.

Na rua algumas poucas esferas de luzes espectrais flutuavam a deriva, com certeza haveria muito mais delas na rua principal.

—Gintsune-Sama, está com fome? — Tama lhe perguntou ainda com a mão sobre seu tornozelo, enquanto a outra mão segurava sobre o ombro uma vara onde em cada extremidade havia um pato morto amarrado pelos pés — Hoje eu trouxe dois patos, bem gordos, sabe? Sei que gosta de comê-los ao natural... Mas talvez hoje eu possa entrar e... Prepará-los para você?

Sugeriu inclinando-se um pouco mais para frente.

Gintsune acharia bem mais confortável se Tama optasse de uma vez por permanecer em uma forma animal ou humana, mas ao invés disso a nekomata usualmente gostava de ficar numa forma humana com cabeça de gato em lugar de um rosto humano, com longos cabelos humanos escuros que ficavam presos quase o tempo todo em um coque a altura de sua nuca.

—Parece uma boa ideia. — Gintsune respondeu passando as costas da mão pela lateral do felpudo rosto de Tama, o que a fez sorrir, embora isso parecesse um tanto bizarro em seu rosto felino, ele desceu a mão pela lateral de seu pescoço e tocou a gola do quimono — No entanto hoje pensei em comer fora.

Afirmou de repente quebrando o contato e dando duas tapinhas amigáveis na bochecha da gata.

—Como disse? — perguntou piscando estupefata.

—Hoje eu vou comer fora. — repetiu tirando seu tornozelo do alcance de Tama, ainda em choque, e esticando as pernas em direção à rua.

—Comer fora. — Tama repetiu — Quer dizer... Que vai a casa... Daquele tengu?

Ela perguntou isso com certo desprezo contido claro, o tengu e sua família não eram os mais queridos em termos de popularidade por ali, tengus dificilmente eram bem recebidos em outros lugares além de suas próprias vilas embora, talvez, naquela situação o desprezo coletivo se devesse muito mais ao tipo de família que aquele tengu havia construído do que propriamente ao fato de ele não estar morando em uma vila tengu.

Mas ninguém ousaria desrespeitar ou destratar diretamente àquela família, não quando eles eram tão próximos de Gintsune.

E ninguém queria irritar a raposa prateada.

—Até podia ser, a comida do meu amigo não é nada má. — ele respondeu levantando-se e levando as mãos às costas para estalá-las — A esposa dele sequer sabia limpar um peixe quando chegou aqui, afinal entre os humanos ela foi uma senhorita rica e de boa família, nunca teve necessidade de coisas assim. — sim, ele mencionava a humana somente para provocar — Mas desde então ele já lhe ensinou muitas coisas e agora a comida dela também não é de todo mal. Mas não era nisso que eu estava pensando.

 Tama piscou.

—Não?

—Não, não. Hoje eu estava mais... Pensando em ter um pouco de emoção, entende? — ele sorriu pegando o chapéu do tengu e o colocando sobre a cabeça, certificando-se de prender bem o laço sob o queixo — Quero reviver um pouco dos velhos tempos...

Ele sorriu, mostrando dentes pontiagudos e não humanos, presas de um raposa.

—Quer dizer que vai roubar? — Tama perguntou sem se alterar, com uma orelha felina movendo-se.

Aquilo não era nada demais entre youkais, roubar era um hobbie até bem comum.

Mas para Gintsune tudo isso já havia perdido a graça, mesmo roubar dos tengus, que sempre eram tão divertidos em sua fúria, não tinha mais a mesma graça que antes.

—Até podia ser, mas não, qual seria a graça nisso? — disse tomando sua forma de raposa, o chapéu em sua cabeça encolhendo à medida que o corpo transforma-se — Por isso eu pensei... Que para a noite de hoje uma caçada seria uma boa escolha.

Mais uma vez a raposa sorriu, porém dessa vez era um sorriso assustador, cheio de maldade e crueldade e então, sem dizer mais nenhuma palavra, disparou em direção à rua principal, onde virou à direita para a saída da cidade em direção às montanhas verdejantes.

Era ali, correndo em meio às árvores, saltando sobre rochas e raízes, que Gintsune sentia-se verdadeiramente livre, uma vida caseira e familiar não era para uma raposa, não, raposas eram andarilhas, viajantes, aventureiras sem lugar fixo.

Mas o que ele podia fazer?

Ele não podia abandonar aquele estúpido tengu e sua família para as garras das feras.

Tempos atrás o tengu disse a Gintsune que estava partindo para ver o mundo humano por si mesmo, mas quando recusou que Gintsune o acompanhasse a raposa precisou deixá-lo partir com nada mais do que alguns simples conselhos: não se aproxime demais dos humanos, e não confie demais neles também, não se envolva demais com eles, especialmente com as mulheres, você ainda é muito ingênuo, e principalmente, nunca, em hipótese nenhuma, dê o seu verdadeiro nome a alguém, humano ou não... E só de brincadeira acrescentou que nunca comesse nada que viesse de mãos humanas também.

Obviamente o idiota não havia seguido nenhum de seus conselhos, verdadeiros ou falsos.

Por ultimo Gintsune ainda lhe disse mais uma coisa:

—Quando você voltar da sua “aventura”, antes de retornar ao vilarejo dos tengus, venha me ver e conte-me tudo, quero ser o primeiro a ouvir sobre a sua jornada.

—Mas como eu vou fazer para te encontrar? — o tengu perguntou-lhe por debaixo de seu enorme chapéu naquele dia. — Tu ainda estarás atormentando os tengus quando eu voltar?

—Como assim “ainda”?— ele sorriu deixando de caminhar — Pretende ficar tanto tempo assim fora?

Mesmo sem poder ver seu rosto ele sabia que o tengu estava franzindo o cenho.

—Não foi o que eu quis dizer.

—Eu sei. — respondeu — De qualquer forma se você continuar seguindo a leste e descer a montanha vai encontrar os humanos. — ele apontou a direção. — Mas, por outro lado, a oeste do vilarejo dos tengus, descendo a montanha, vai encontrar um vilarejo diferente, habitado por youkais, e lá que eu vou estar então passe por lá quando voltar entendeu? Basta perguntar por “Gintsune”, e com certeza te indicarão a direção. Estarei ansioso para ouvir sobre a sua fascinante aventura entre os humanos. 

Foi naquele ponto que eles se separaram, acenando Gintsune fez seu caminho de volta e deixou que o tengu seguisse viajem sozinho.

No entanto, ele nunca esperou que aquele tengu levasse tanto tempo para voltar, e demorou tantos anos que a raposa até mesmo construiu uma casinha para esperá-lo. E esperava menos ainda que quando finalmente seu amigo voltasse... Ele trouxesse uma humana consigo.

Achando já estar a uma boa distância Gintsune parou no centro de uma clareira e se pôs a farejar por ali, procurando por uma possível presa.

Foi quando ouviu o farfalhar das folhas de um arbusto próximo e se colocou em posição de ataque, os dentes mostraram-se ameaçadoramente, os pelos enrijeceram-se e a cauda, que antes era uma, dividiu-se em duas.

E do arbusto saiu... Um rato.

Um simples rato do campo que se escondeu assustado um segundo mais tarde.

 A raposa piscou, não era bem isso que ele esperava caçar, talvez um porco do mato ou algo maior, mas... Um rato?

Gintsune riu de sua própria estupidez.

—Um rato! — exclamou, e as duas caudas uniram-se em uma como se aquela segunda nunca houvesse passado de uma ilusão — Estou mesmo sem prática! Um rato! O que diriam meus pais se soubessem? Já nem consigo mais diferenciar um simples rato de um porco do mato! Que vergonha!

Balançou a cabeça ainda rindo da própria bobagem e deu meia volta... Quando alguém o chamou.

De repente todo o corpo de Gintsune pareceu pulsar, pois aquela voz não havia apenas o chamado, mas o chamara por seu verdadeiro nome aquele que ninguém deveria saber.

Gintsune virou-se novamente, agressivo com os dentes amostra e uma expressão de fúria.

—Quem é?! — chamou, e a cauda estalou como chicote — Quem está aí?!

A voz o chamou novamente, dessa vez mais forte, e foi como se alguém o atingisse, e o atingiu tão forte que a raposa se retesou, fechando os olhos e sentindo as garras fazerem sulcos profundos na terra, uma corrente elétrica percorreu-lhe o corpo.

O pior: ele não podia dizer se a voz que o chamava era feminina ou masculina, e tampouco de que direção vinha, era como se viesse de todas e de nenhuma ao mesmo tempo, como se ressoasse dentro de sua cabeça.

—Droga. — praguejou entre os dentes, abrindo com esforço um dos olhos e mal conseguindo mover-se — Quem está aí? Mostre-se!

A voz o chamou novamente.

E uma luz ofuscante o cegou.

...

Em uma cidade youkai, seus habitantes nunca dormiam, fosse dia ou fosse noite estava sempre movimentado por ali, algumas horas mais do que outras, por isso não é de se estranhar que, em pleno amanhecer, as ruas já estivessem tão lotadas de youkais que tratavam de seus próprios assuntos que já fosse praticamente impossível se mover por elas.

A menos, é claro, que você fosse Gintsune.

Ou que fosse capaz de voar.

Pousando em frente àquela que era a menor e a última das casas naquela ruazinha poeirenta e pouco movimentada — você podia até contar o número de pedestres que transitavam por ali por hora nos dedos de uma só mão — Akihiko fechou as asas.

E com as mãos em volta da boca gritou alegremente para dentro da casa:

—Oooooi? Gintsune-Sama! — franzindo o cenho ao não receber resposta o menino meio tengu tentou novamente — Papai mandou-me aqui para buscar o chapéu!

Mas, novamente, não houve resposta.

Estranhando aquilo Akihiko aproximou-se da casa e deixando as sandálias ao lado da entrada na varanda que também servia como genkan — porque aquela casa havia sido construída pelo próprio Gintsune-Sama, mas sua mãe dizia que ela era muito preguiçoso para fazer algo certo, por isso ela estava sempre dando broncas em Gintsune-Sama e papai — e empurrou para o lado a cortina de palha trançada para olhar lá dentro.

—Gintsune-Sama? — chamou.

Mas a casa estava vazia.

Na verdade, se não fosse conhecido que ali morava uma raposa, poderia até dizer-se que a casa sequer era ocupada, pois Gintsune-Sama não possuía móveis ou qualquer tipo de bens materiais, e o vazio da residência só ajudava a perceber que além de Gintsune-Sama o chapéu também não estava ali.

—Não adianta garoto! — avisou alguém.

Akihiko se virou, do outro lado da rua, sentada em frente a uma casa duas vezes maior que a de Gintsune-Sama — mas isso não queria dizer muita coisa, considerando-se que a casa de Gintsune-Sama era pouco mais que um caixote — uma gorda mulher sapo vestindo um encardido quimono amarelo o olhava segurando um velho kiseru.

—Ouvi dizer que o Gintsune-Sama saiu para caçar ontem à noite! — coaxou para ele de forma desagradável. — Ele ainda não voltou.

—Hum... Então ele foi para a montanha. — compreendeu o garoto, e olhou por cima do ombro para a entrada atrás de si — E nem sequer fechou a casa, é por isso que está sempre levando bronca da mamãe!

Sem cerimônia o garoto alado entrou na casa e direcionou-se à única janela do recinto, bem ao lado da entrada, retirando dali o comprido toco de madeira que lhe servia de apoio e a fechando com estrondo, deixou o toco de madeira escorado a parede próximo e saiu da casa, puxando com certo esforço a pesada porta de correr feita de madeira, que também se fechou com estrondo em frente à cortina de palha trançada.

Sem mais nada para fazer ali ele calçou suas sandálias novamente, deu dois passos em direção à rua e alçou voo.

Não havia como que se preocupar, afinal Gintsune-Sama nunca ia longe e sempre voltava.

Sim, logo ele estaria de volta.

Não havia com o que se preocupar.

...

Gintsune gemeu ao recuperar a consciência.

Estava jogado no chão da floresta e levantou-se meio zonzo, sacudiu a cabeça e, desnorteado, sentou-se para olhar a volta.

Ainda estava na floresta, mas parecia estar num pedaço diferente dela, estranhando aquilo a raposa levantou-se e começou a caminhar tentando se localizar.

Mas logo ele deu-se conta de que era inútil, pois não só parecia ter acordado em uma parte diferente da floresta como em uma floresta diferente, havia algo de muito estranho ali, as árvores, as pedras, nada estava no lugar certo, até mesmo o cheiro estava errado.

Toda a névoa havia se dissipado.

Mas não que o ar cheirasse puro, havia agora um cheiro novo e diferente o poluindo.

Afinal o que estava acontecendo? Que lugar era aquele? E quem o levara até ali?

Gintsune ainda tentava responder a todas essas perguntas que fazia a si mesmo quando se deu conta de que a floresta havia acabado, pelo jeito aquela era uma floresta muito menor que a sua, e sob suas patas ao invés de terra estava uma faixa dura e cinza que parecia feita de uma longa e gigantesca rocha, que marcava ao chão e interrompia a floresta como uma cicatriz.

Uns três metros adiante a floresta continuava.

Uma estrada, ele percebeu.

Gintsune olhou de um lado para o outro, a oeste aquela estranha estrada continuava até onde os olhos podiam ver, a leste... Nesse momento ele arregalou os olhos, pois a montanha desaparecera e em seu lugar restava uma colina, a qual a estrada atravessava, seguindo adiante através de um túnel que mais parecia uma imensa boca escancarada.

Ele aproximou-se uns poucos passos daquele túnel, mas logo parou, no meio da estrada abaixou a cabeça e farejou ali, arranhando-a vez por outra, curioso para saber do que era feito aquilo.

Estava tão distraído ali que sequer percebeu o veículo em alta velocidade que se aproximava, de fato se sua buzina estridente não o tivesse assustado de tal forma que o fez saltar para o outro lado da rua mais rápido do que ele mesmo podia crer, certamente teria sido atingido em cheio.

Não que isso fosse o machucar, claro, mas certamente o teria deixado bem irritado.

—Que foi isso?! — perguntou-se assustado, olhando com olhos arregalados para o túnel por onde o carro desaparecera — Que tipo de youkai foi esse?!

Ainda estava ali, surpreso demais para se mover quando algo lhe chamou a atenção, uma luz que despontava por detrás da colina, atraído por aquilo Gintsune ergueu a cabeça.

E seus olhos arregalaram-se ao queimarem-se... Perante a luz do sol.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham curtido esse capitulo um (e das interações entre os personagens), e que deixem seus comentários. ♥
Gintsune está de volta ao mundo humano, isso só pode dar confusão kkkkk
Mas de quem será a voz que ele escutou, não é mesmo?
Ah, e se acaso interessar alguém eu possuo um Twitter especificamente para divulgar minhas estórias.
Quem quiser é só me seguir lá.
O Twitter é esse aqui: https://twitter.com/Fl0r_D0_De5ert0