Merdaman escrita por Rick Batista


Capítulo 1
Algo não cheira bem


Notas iniciais do capítulo

Merdaman é uma saga de comédia que estou iniciando. Espero que você se divirta lendo.



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Era uma casa pobre, de um bairro pobre, onde um pobre coitado morava. Um pobre chamado Rafa Rego Reis. 

Ele estava sentado no vaso sanitário, sentindo-se como um rei em seu trono. A diferença clara entre ambos, era que o trono dele estava entupido, e ao invés de autoridade, o que dele fluía era uma estranha mistura da janta com o café da manhã. E ao acabar com o último rolo de papel higiênico, contemplou sua obra, admirado. 

— Caramba... pari um dos grandes, agora. Parece um cachorro. 

Puxou a cordinha da descarga, logo se lembrando que a água foi cortada por falta de pagamento.  

— Saco. Tô vendo que vamos ter de conviver por um tempo — disse ele, olhando para sua criação. — Vou te chamar de Tolecão. Que é tipo um cachorro, mas de um tolete. Até a água voltar, sinta-se em casa, Tolecão

E após deixar no vaso um reflexo de sua própria vida, o rapaz saiu de casa apressado. Era um dia daqueles, em que o sol parecia estar com muita, muita raiva. 

Rafa estava espremido como sardinha em lata no metrô, em um vagão com ar condicionado quebrado e em meio a gente que conseguia feder já as 6h00 da matina. O lugar era um território habitado por uma curiosa raça, conhecida como camelôs. Gente que vendia de água a cachaça, fone de ouvido a tv, biscoito a frango assado. 

— Bom dia, senhores. Desculpa atrapalha o silêncio da sua viaje, mas é que o vendedor vem trazendo novidade, conforto e comodidade pra sua viaje.  

Ele mal entendia como eles conseguiam circular no meio daquele mar de gente, quanto mais trabalhar. Haviam vários espécimes diferentes, começando pelo matemático: 

— Um é dois, três por cinco, sete por dez e meio por um, senhores. 

O exótico: 

— Churrasquinho de gato da melhor qualidade. Gato castrado, vacinado, gato persa, senhores! 

E até mesmo os perigosos: 

— Pulmão fresquinho, olha o pulmão! As vez a senhora, o senhor fuma demais, hora de trocar, senhores. O camelô aceita crédito ou débito. Pulmão em dez vezes sem juros, no cartão. 

Com medo do vendedor de órgãos ele se espremeu até outro vagão. Infelizmente, o vagão errado.  

— Tá pensando que vai viajar no vagão das mulheres, malandro? — perguntou uma mulher grande, acompanhada de dezenas de olhares condenatórios. 

E após dois ou três tapas e uma sutil ameaça de linchamento, a porta se abriu, e Rafa correu. Correu como se sua vida dependesse daquilo. E dependia, pois se chegasse atrasado de novo, perderia o emprego. E se perdesse o emprego, morrer de fome seria apenas questão de dias. Dois ou três, para ser exato. 

Uma vez na empresa, suado e cansado, quem temia parou a sua frente: 

— Bonito, muito bonito, Rego — zombou seu chefe, um homem magro como a fome, e feio como a necessidade. 

— Só quinze minutos, chefe. Consegui reduzir o atraso pela metade.  

— É seu sétimo atraso essa semana, Rego. E isso que só trabalha seis dias. Parece que não está pronto para a responsabilidade que o cargo de “subajudante de auxiliar-assistente, co-estagiário, mirim-júnior” exige. 

— Não, por favor, chefe. Prometo chegar no horário! Levei um ano para passar de “subajudante de auxiliar-assistente, co-estagiário, mirim-júnior - temporário” pra essa função. Prometo dar conta. 

Pedro Paulo Paiva o olhou com aqueles olhos de abutre velho, como se estivesse apenas esperando para devorar sua carcaça. Por fim, assentiu. 

— Por enquanto vou deixar passar. Só espero que não se repita. De qualquer modo, vai levar outra multa anti-atraso. 

— ... merda — Rafa resmungou para si mesmo. Já era a vigésima naquele mês, continuassem se acumulando, quase metade do pagamento iria só nisso.  

No fundo ele sabia que não o mandariam embora. Quem botariam no lugar? O rapaz foi o único a suportar o trabalho semiescravo em troca de um salário semi-esmola. 

— Calma, calma, Rafa — dizia ele para si mesmo, enquanto carregava pilhas de caixas de um lado a outro da empresa. — Ao menos você está subindo na empresa. 

Ao ouvir aquilo, todos os outros funcionários se puseram a gargalhar freneticamente. Eram umas quarenta pessoas, umas repetindo para as que não ouviram na hora, com o som das risadas estremecendo o prédio de modo a ser ouvido em um raio de um quilometro ou mais. Até a Defesa civil teve de fazer um alerta. 

— Ah, me deixem vocês!  

A situação dele era difícil, tinha de admitir.  

— A quem eu quero enganar? — perguntou-se ele, urinando na privada do trabalho. — Posso levar anos só pra chegar ao nível de um estagiário normal... Esse emprego não tem futuro! 

— É você choramingando aí, Rego? — voz do seu chefe, vinda de dentro do box do banheiro. — Aproveita que já está com a mão na massa e desentope minha privada aqui, já que a faxineira está no descanso.  

— Vaso, chefe... sério? Tenho vinte caixas pra mudar do décimo para o vigésimo quinto andar, quarenta arquivos pra editar e oitenta e-mails pra responder. Isso tudo fora lavar a louça do almoço da firma e preparar o lanche. 

E após a porta se abrir, trazendo aquele odor desagradável, Pedro Paulo Paiva encarou seu subordinado com aqueles olhos de jacaré velho, como se estivesse apenas esperando para abocanhá-lo inteiro. 

— Não sabia que estava assim tão folgado, Rego. Nesse caso, lembre-se de passear com meus cachorros e levar a sucata da loja para o depósito, também. 

Humilhado, derrotado e azarado, foi assim que Rafa se sentiu após ser deixado no banheiro da empresa para desentupir o vaso em que seu chefe deixou um presentinho. 

Com um desentupidor em uma mão, e apertando o nariz com a outra, foi que ele entrou por aquela portinha apertada que guardava um dejeto fedorento e escuro. 

  — Aahhhh, cara, isso é nojento! Olhar pra própria merda é tranquilo, mas dos outros é bem bizarro. Pior é pensar como um coroa magricelo daqueles conseguiu fazer um negócio desse tamanho. 

E foi assim, fazendo força para desentupir uma privada cheia, que o inesperado aconteceu! De dentro da privada surgiu uma luz cegante. 

— Droga, será que rebentou a fiação da luz? — Rafa estava apavorado, e pior ainda ficou quando viu aquilo que se formou na privada após a luz cessar. — Um buraco negro? 

Como resposta, aquele estranho fenômeno começou a sugar tudo que havia em volta. Papel-higiênico, desentupidor, o próprio rapaz... 

E uma vez pego nesse turbilhão sanitário, ele se viu em uma sala de cinema, grande, vazia e escura. 

— Que merda, o chefe vai me matar se souber que sai da empresa sem bater cartão. 

— Sério, garoto? Você é sugado por um portal dimensional e isso é tudo o que tem a dizer? 

Rafa olhou em volta, assustado. Então se deu conta que a fonte da voz vinha do telão de cinema, agora acesso. Era uma sucessão de memes de internet, com legendas e imagens engraçadas, como que ilustrando o que a voz dizia. Se limitou a sentar no assento mais próximo, braços cruzados, antes de resmungar: 

— Não. Também tenho que dizer que sequestro é crime hediondo, ok? 

A voz apenas fez um som de riso, mostrando a face de um cão risonho, antes de continuar.  

— Eu até estava com um pouco de pena de você, mas vejo que cada um tem o que merece, mesmo. 

— Como é? — questionou, confuso. — Olha, senhor da voz misteriosa e memes maneiros, eu até que curti ser sugado pela privada em que meu chefe cagou, e tal, mas se puder me mandar de volta, prometo nem falar em processo. 

— Você voltará, garoto, mas não mais como um reles “subajudante de auxiliar-assistente, co-estagiário, mirim-júnior”. Você foi escolhido para receber um presente único, a chance de revelar o dom que carrega dentro de si, e mudar o mundo! 

 —... papo de vendedor. Nem caio mais nesse lance de “você foi sorteado”. Cai, fora! 

A imagem na tela ergueu uma sobrancelha, encarando o rapaz como se ele fosse uma mosca varejeira barulhenta, que se esmaga com uma só mão. 

— Já deu, garoto. Hora de te mostrar quem manda, hora de te ensinar quem você está destinado a ser.  

Rafa viu as portas do cinema se abrindo com violência, som de filme de terror e o telão ficando escuro. Sua face mais pálida que alemão de short na praia do RJ.  

— Ele está por toda parte. Na terra, no mar, em você, seu chefe e todos que conhece. Ignorada e desprezada, ninguém reconhece sua utilidade e valor. Mas ela tem potencial, assim como você. 

O rapaz assistiu a infinitas imagens simultaneamente surgindo na tela, mas sem conseguir entender a ligação entre elas. 

— Tá, entendi. É aquele lance de ki, Chakra, Cosmo... esse tipo de energia, né? 

A voz misteriosa apenas riu, abafando depois o som do riso com a mão. 

— Resposta errada, garoto — E as imagens foram ampliadas, desse modo revelando os detalhes que escapavam ao jovem. — Ela é algo que está em você, ao seu redor, e basicamente resume sua vida até hoje. 

Rafa olhava com atenção, finalmente se dando conta do que passou despercebido: 

—... tá de sacanagem, né? — perguntou, perplexo. — Jura que você está falando de merda

E quando ele pronunciou a palavra “merda”, algo de diferente aconteceu. Das portas arrombadas surgiu uma avalanche de dejetos em sua direção! Rafa se abaixou, assustado. Mas quando reabriu os olhos, viu que toda aquela coisa fedorenta estava girando ao seu redor, como se ele fosse o astro rei de um sistema solar de cocô.  

— Caramba...   

— Veja, rapaz. Você pode senti-la? O poder que flui dela para você? 

O rapaz ficou parado por alguns momentos, seus olhos vidrados naquele oceano de fezes a circundá-lo. 

— Tô sentindo o fedor, isso sim. Aliás, já posso ir embora? A hora tá passando  e eu tô cheio de serviço pra fazer então... 

— Cansei de você, seu reclamão! — gritou a voz, perdendo de vez a paciência. — Chega de falar, vai ter que ser na marra mesmo. 

— Como é? Olha lá que eu tenho tio advogado, hein! 

— Domine a merda, Rafa Rego Reis — E o movimento rotativo das fezes acelerou freneticamente, parecendo um tornado marrom e pastoso. — Ou faça dela seu túmulo. 

— Olha, também não é pra tanto, senhor “locutor misterioso”. Conversando a gente chega num acor... 

Mas antes que ele terminasse de implorar, viu se formar uma enorme mão feita de merda. A mão se fechou, e ele foi completamente atingido pelo punho de estrume. Qualquer um que visse aquilo pensaria que Rafa foi completamente esmagado, morrendo na hora. E pra ser sincero, eles teriam grandes chances de estarem certos. Ele parecia bem morto. 

—... Rafa? — perguntou a voz, com pouca esperança e um meme de gatinho de olhos grandes. — Você não foi morrer em seu teste de admissão, não é mesmo? 

O jovem ouvia uma voz o chamando. Já não sentia seu corpo, a dor de ser esmagado por uma tonelada de cocô em forma de punho, ou o fedor onipresente. Só sentia vergonha, muita vergonha e frustração. 

“Show, maravilha. Morto aos dezoito anos, virgem e pobre. Mas que merda de vida essa que eu tive”. 

E foi então, atrasado, semimorto e fora de timing, que ele entendeu: 

— É isso! Não é pra tentar controlar a merda... é pra ser a merda! — Seus olhos brilharam, pela percepção daquela verdade tão simples. — E se meus pais, professores, chefe e toda garota de quem já levei fora tão certos: “eu sou um merda!” 

Os olhos de Rafa se abriram! Os braços abertos e toda a merda voltou a girar ao seu redor, como antes do ataque. 

Um sorriso se revelou no meme de bebê feliz da tela. 

— Parabéns, você conseguiu, Rafa. 

— “Rafa”? Não, eu não sou mais Rafa. 

E parte da merda pastosa começou a se dividir, envolvendo suas pernas, braços, peitoral e crânio. Ela não emitia mais nenhum odor, e foi se endurecendo enquanto assumia uma forma sólida. 

— A merda está sob meu poder, é parte de mim, eu posso senti-la! — Por baixo das partes endurecidas surgiu um colant, com dois grandes rolos de papel higiênico em suas ombreiras lhe servindo de capa. Seu capacete em formato de gorro como um tolete, com uma pequena máscara na altura dos olhos e um “M” na altura do peito. Um M de... 

— “Merdaman”. Me chame de Merdaman — respondeu ele. 

— Então você finalmente entendeu — sorriu o meme de velho desdentado. — Está pronto para ser quem nasceu para ser: o herói mais merda de todos.    

Merdaman sorriu, confiante. Suas mãos na altura da cintura e capa esvoaçante, em uma sala de cinema quebrada, mas sem vento, dando mais força as palavras: 

— Há muita merda nesse mundo. Eu vim para corrigir isso. 

— Então vá, Merdaman. Vá e salve o mundo! 

Dito aquilo, a porta da sala se abriu novamente, o mais novo super-herói saltando por ela. Ao contrário do que esperava, não saiu pela privada do trabalho, mas sim pela privada entupida da própria casa. 

— Droga... o chefe vai mesmo me matar. 

Foi então que o rapaz ouviu um barulho inesperado vindo de dentro do banheiro. Mais especificamente, do próprio vaso. 

— Isso são... latidos? 

E como que respondendo a sua pergunta, uma criaturinha marrom, saltitante e com um uniforme que lembrava o seu saltou para fora da privada! Balançando seu rabo e com a língua pra fora, eufórico por encontrar “seu dono”. 

— “Tolecão”, é você? — Rafa parecia menos assustado por ver um tolete seu se tornar um ser vivo, que pela possibilidade de um cão feito de merda pular em cima de si. 

O cão latiu e lambeu, derrubando seu dono no chão. Enquanto sentia as lambidas daquela língua marrom, Merdaman se deu conta que ele não fedia, e sua baba não era nojenta, parecendo apenas água. 

— Saquei! Então dá pra separar dos diferentes  tipos de merda, diferentes tipos de coisas, e reorganizar em diferentes tipos de outras coisas — falou isso, enquanto acariciava o seu mais novo mascote e parceiro na missão de salvar o mundo. 

— Vamos nessa, Tolecão! O mundo precisa ser salvo, o mundo precisa de nós. 

E ao dizer aquilo, fechou os olhos em concentração intensa, sua capa erguendo-se levemente no ar, até que de repente... 

— Uhhuulll!!! — Merdaman arrombou o telhado de casa ao atravessá-lo, voando tão rápido quanto a sucessão de gases que saiam de sua capa, tão barulhentos e fétidos quanto poderosos. 

— Au, au! — E logo tolecão se pôs a imitar seu dono, voando rápido o suficiente para acompanhá-lo.  

E rasgando o céu da cidade do Rio foi seu mais novo herói, em busca de vilões para enfrentar, inocentes para salvar e fama para conquistar. 

Mas mal ele sabia... a merda toda estava apenas começando. 

  

 

 

 

 


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Notas finais do capítulo

No próximo capítulo: Merdaman X traficantes do RJ!

Se curtiu o capítulo, adicione a história nos acompanhamentos, pra não perder os próximos capítulos. Se gostou mais ainda, coloque nos favoritos, e se quiser, deixe um comentário dizendo o que curtiu ou não na história, que isso me ajuda bastante como autor.

Grande abraço e até a próxima!



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