Pátria Amada escrita por Goldfield


Capítulo 6
VI: Vem, vamos embora, explicar não é convencer




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VI

Vem, vamos embora, explicar não é convencer

— Estevão! – a voz da mãe propagou-se pela casa. – Seu filho está te chamando!

A réplica, num resmungo, não tardou a vir da sala, meio abafada pelo som do jogo de futebol na TV:

— Pra quê?

— Ele quer tomar banho, e parece que o chuveiro enguiçou de novo!

O pai levantou-se da poltrona soltando reclamações entre fungadas, deixando a almofada inferior curvada devido a ter aguentado seu peso até então. Conforme movia as pernas peludas sobre os chinelos de dedo, queixou-se quanto à faculdade de Filosofia ensinar besteiras sobre "pensadores desocupados" e não instruir a trocar uma mísera resistência de chuveiro, que o filho ao menos devia aguentar tomar banho com ele desligado, já que viviam no calor do Rio... e que o Vasco estava uma merda. Mas isso vinha de anos.

Thiago, quase um vulto junto às cortinas cor de creme ao fundo da sala, não fora percebido pelo pai quando chegara, continuando oculto no momento em que ele se levantou em direção ao banheiro. Tinha o trunfo do chuveiro realmente defeituoso, a necessidade de conserto vindo muito a calhar. Por sorte, a mãe, sempre atarefada, levava alguns minutos para repassar recados ou pedidos ao marido, criando o tempo necessário para que o rapaz se deslocasse e aguardasse no lugar combinado.

A seguir, vieram os angustiantes momentos aguardando-o, o temor de o pai ou a mãe encontrarem o "outro" Estevão pelo caminho fazendo o coração de Thiago bater pesadamente e esperar o cataclismo que sugaria o universo a cada piscar. Não demorou muito para ouvir passos no corredor ao lado, encorajando-o a estender-se um pouco adiante em relação à janela... o surgimento do homem de terno, meio esbaforido, bastando para tranquilizá-lo. Seu deslocamento rápido pelo pórtico levando à cozinha também evitara contato com Queirós – Thiago e o pai de outra dimensão chegando a um acordo quanto a só se preocuparem com ele depois de resolverem a questão do guarda-roupa.

— E então, vamos? – Estevão apontou à porta de saída do sobrado.

O jovem apanhou seu celular e verificou o WhatsApp. Larissa já confirmara ter saído de casa.

Levando então uma mão à maçaneta, incerto se aquilo geraria ou não arrependimento futuro, respondeu:

— Vamos.

O agente do DOPS cobriu a testa para proteger os olhos do sol enquanto tinha sua primeira visão do bairro de Curicica. O panorama de sobrados e muros, ruas estreitas e serra ao fundo não lhe devia ser tão alienígena – afinal, viera de uma data próxima em sua realidade paralela e o futuro urbanístico da ditadura militar não deveria ser tão distinto... ou era?

O fato de Thiago ter começado a andar pela calçada e Estevão permanecer parado deixou o rapaz intrigado. Voltando para junto dele, rodeou-o por vários segundos, sem o agente notar ou se importar, até inquirir:

— E aí, é muito diferente de onde você vem?

Oliveira estremeceu tal qual retirado de um transe, olhando-o com expressão confusa, logo em seguida alheia:

— Sim e não. Andar por aí deixará mais claro o quanto a população se perdeu...

E, dessa vez deixando Thiago pensativo, ele tomou a dianteira.

A tarde de domingo estava pacata, porém havia movimento suficiente para despertar a atenção do viajante interdimensional. Um táxi passou por eles, e logo depois duas garotas em bicicletas usando shorts curtos – as sobrancelhas de Estevão se franzindo em claro indício de julgá-las. Chegaram à esquina com Thiago rogando para que nos próximos quarteirões não surgissem mais indícios de o Brasil de onde ele viera ter se tornado o Irã, o receio travando-o a perguntar sobre o assunto.

Tiveram de esperar para atravessar a rua, a via cruzando com aquela em que Thiago morava sendo uma das principais do bairro e por isso mais cheia. Viram passar um ônibus, algumas motos e, ao fim de um cortejo de três carros, um Uno quadrado equipado com alto-falantes à traseira tocando um funk do tipo "proibidão", as palavras entoadas enquanto se encontrava ao alcance da dupla ficando no ar por alguns segundos, assim como a vibração das batidas reverberando ao redor e sobre seus próprios corpos.

Xota pau foram as que o cérebro de Thiago melhor capturaram, fazendo-o engolir seco.

Não havia mais veículos à vista em nenhum dos sentidos da rua, mas Oliveira não tomou iniciativa em atravessar.

Quando o filho concluiu que o pai alternativo desenvolvera bem-vinda tolerância e nenhum comentário viria, deu o primeiro passo ao asfalto... somente para ouvir:

— Considerando a libertinagem das músicas que escutam, fico surpreso de não andarem pelados em público!

Thiago acelerou a caminhada e deixou propositalmente o agente da repressão alguns metros atrás, cabeça baixa.

Tirando a preocupação em evitar escutar novas impressões de Estevão relativas ao seu mundo, o estudante de Filosofia achava a tarde agradável. O tempo fechava na direção do centro da cidade, as nuvens cinzentas tampando o céu rumo a oeste enquanto, contribuindo ao mormaço, mantinham certo clima abafado – a brisa da chuva vindoura, porém, aliviando-os com seu frescor, e Thiago considerou ainda terem no mínimo algumas horas até cair água.

Oliveira aparentava agora estar emburrado, mãos enfiadas nos bolsos enquanto, fungando como seu pai daquela realidade, digeria novas impressões sobre o Brasil sem ditadura; ou "cheirava" a tempestade, sentindo a crescente umidade no ar como era costume do avô de Thiago, pai de Estevão nas duas dimensões. Talvez a verdadeira tormenta viesse quando o conservador funcionário do governo descobrisse algumas informações insuportáveis sobre aquela dimensão, mas o filho cogitava já estar anestesiado. A letra do funk prepara terreno – e o rapaz não conteve o riso.

A lanchonete "Ki Beleza!" surgiu numa nova esquina, os toldos listrados em vermelho e branco sobre as mesinhas de madeira do lado de fora criando fachada bastante convidativa. Sentada junto a uma delas, uma moça negra, de imponentes cabelos crespos erguidos num penteado afro, óculos de armação azul e alargadores nas orelhas, distraía-se com seu celular. Trazia uma bolsa a tiracolo, vestindo jaqueta jeans sobre uma camiseta com a estampa do desenho de um átomo, bermudas e tênis. Erguendo de quando em quando a visão da tela do aparelho, percebeu sem demora a aproximação dos dois, e arregalou os olhos.

— E aí, Lá? – saudou Thiago, detendo-se perto da mesa.

— Oi... Thi! – a jovem passou um momento examinando Estevão, visivelmente desconcertada. – Você não falou que viria com o seu... pai.

O rapaz suspirou. Pois é, aquilo demandaria explicações, e não sabia bem por onde começar. A amiga sabia de sua difícil relação com o pai, das brigas, sobre ele ser de direita... E sim, ela era ainda mais de esquerda que Thiago. Explosões poderiam surgir daquele encontro de um agente da ditadura com alguém que consideraria uma inimiga de Estado, portanto seria preciso tato. Inclusive para Larissa entender que toda aquela loucura de dimensões paralelas era real.

— É, estamos passeando... – ele prosseguiu da maneira mais dissimulada possível; não conseguia pensar tão rápido assim. – Podemos nos sentar? – e, antes mesmo da estudante de Física responder, já foi puxando uma cadeira.

— Podem... – o aspecto de Larissa ainda era aéreo e boquiaberto. – Não sabia que tinha virado evangélico, senhor Oliveira.

Thiago trocou olhares desnorteados entre ela e Estevão, até compreender...

É claro, o terno!

Caso visse o pai trajado daquele jeito em outras circunstâncias, até ele teria procurado uma Bíblia numa de suas mãos.

Oliveira tomou também um assento, e o cenho franzido de Larissa revelou seu incômodo por ser fitada tão fixamente por ele. Thiago bateu os dedos sobre a mesinha, brincou com o porta-guardanapos e só então tentou emendar a péssima explicação que iniciara há pouco:

— Estamos fazendo mais coisas juntos para nos aproximarmos... Sabe como é, romper aquela barreira entre nós.

A história soou ainda menos convincente devido a Estevão manter o olhar suspeito na direção da jovem. Focava agora sua bolsa, a cujo tecido estavam presos vários broches redondos, a maioria contendo símbolos ou frases das causas que a estudante apoiava.

Soando intrigado e ao mesmo tempo hostil, o agente do DOPS ergueu-se levemente da cadeira e indagou, apontando a um deles:

— O que esse lema significa?

A visão de Thiago se deslocou do dedo do pai até um bóton vermelho com os dizeres "Lula livre!" em branco. Sentiu suas entranhas revirarem. Ah, se ela compreendesse não ser uma provocação...

Larissa endireitou-se no assento e pigarreou solenemente antes de responder:

— Ora, o senhor deve saber se tratar da justíssima causa de defender nosso ex-presidente Lula da prisão arbitrária que sofreu.

Estevão concluiu o gesto de se levantar, apoiando os braços na mesa de tal maneira que por pouco não a derrubou:

— O quê? Está dizendo que aquele metalúrgico subversivo do ABC Paulista virou presidente neste Brasil de vocês?

Decerto involuntariamente, Oliveira inclinou-se rumo a Larissa conforme subia o tom da fala. Mais que um confronto, o filho temeu que a amiga acabasse tendo um treco. Somou coragem o bastante para tocar – e até sutilmente empurrar – um dos pulsos do agente para que notasse se exceder. De fato, até algumas pessoas do lado de dentro da lanchonete o olhavam assustadas.

Envergonhado, Estevão ajeitou a gravata e sentou-se. A respiração de Larissa voltou ao normal, e Thiago percebeu que a sua também. A conversa poderia continuar sem o risco de hospitalização.

— Está bem, vou contar tudo... – o rapaz anunciou.

A amiga cobrou-o através de um olhar impaciente.

— Descobri um tempo atrás que o guarda-roupa do meu quarto é um portal a um Brasil de outra dimensão – as palavras saíam rápidas e desencontradas, mas Thiago assim as preferia: não teria de concordar soarem ridículas. – Nele, a ditadura militar nunca terminou. Algo a ver com matarem o Papa João Paulo II. Comecei a mandar CDs, DVDs e coisas impressas do nosso Brasil para esse outro, tentando fazer as pessoas descobrirem o que perdiam devido à censura, e que outra realidade é possível. Hoje, depois de uma beleza de almoço em que discuti com meu pai, essa versão alternativa dele chegou pelo guarda-roupa sem saber do portal. Ele é agente do DOPS. E agora estou tentando levá-lo de volta ao outro Brasil, mas o guarda-roupa só funciona quando quer.

As rápidas piscadas de Larissa, mais voltadas ao nada do que a eles, serviram de termômetro à credulidade dada à história. Ela bufou, fazendo Thiago detectar por um instante sua menção em se levantar da mesa. Mas permaneceu, embora sua fala seguinte não fosse nada receptiva:

— Primeiro de abril é amanhã, viu? Vocês estão muitas horas adiantados! – voltou o olhar incomodado a Estevão. – E o senhor devia ter vergonha, juntando-se ao filho para uma piada tão sem graça, feita com uma pessoa com quem não tem intimidade, ainda por cima tratando de um tema tão delicado à situação do país...

— Lá, estou falando a verdade! – Thiago contraiu os punhos de nervoso. – Você estuda Física, tem de estar mais aberta ao inexplicável!

— O que torna a Física linda é conseguir explicar o que há de mais fascinante ao ser humano, porém você está forçando a barra com essa ficção científica de quinta! A maneira mais simples de provar isso seria chegar aqui com as duas versões do seu pai, lado a lado! Por que não fez isso?

— O universo pode entrar em contradição! Já é perigoso o bastante duas versões da mesma pessoa coexistirem na mesma realidade, imagine elas se encontrarem? Não quero correr o risco!

Larissa balançou a cabeça em negação, e Oliveira não demonstrava maior disposição em ajudar, olhando-os atônito tal qual aguardasse uma solução divina ao impasse. Foi então que, num estalo mental, Thiago exclamou:

— Já sei! Pegue seu celular e ligue no número fixo da minha casa.

— Como assim? – mesmo desorientada, Larissa ergueu o aparelho de cima da mesinha.

— Meus "dois pais" não podem se ver, mas... Nada impede você de telefonar à versão desta dimensão, que ficou lá. Ainda tem o número, né?

A jovem assentiu acenando, já selecionando a opção dentre seus contatos. O olhar vago e dedos tocando a tela incertos revelavam sua insegurança – talvez uma reprimenda em pensamento sobre por que diabos dava crédito, em ligação e intelecto, àquele absurdo. Efetuou a chamada, todavia; e, levando o celular à orelha, aguardou até que atendessem:

— Alô? – a voz do outro lado lhe soou espantosamente familiar, abalando sua hipótese de tudo aquilo não passar de pegadinha.

— A-alô? – ajeitou melhor o aparelho ao ouvido. – Aí é da casa do Thi?

— Você é amiga do meu filho? – a frase mais longa passou ainda maior certeza sobre quem era dono do timbre. – Se estiver com ele, mande voltar pra cá antes de escurecer, pois me fez perder um pedaço do jogo do Vasco para arrumar o chuveiro, e saiu sem nem tomar banho!

Perplexa, Larissa pressionou a tela para encerrar a ligação e atirou o telefone sobre a mesa, como se enfeitiçado.

Thiago relaxou os ombros, porém tinha o tom mais determinado:

— E então, agora acredita?


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