O Diabo do Sertão escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 28
Medidas desesperadas


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Após toda a onda de tensão, violência e desentendimentos, Gustavo Água-Santa já se sentia disposto a retornar para Água Funda e suas intermediações. Vez ou outra tremia ao se lembrar do espancamento que sofrera, além da visão que tivera horas depois do policial morto e desmembrado dentro da caixa. Naquele dia, deixou para trás um Marcondes Maia perplexo e cheio de problemas. No fim, nenhum acordo foi assinado e ele deixou a cidade de lado, apostando em novos ares. Os frutos que vieram foram doces, mas como um bom homem de negócios, a simples ideia de perder espaço no mercado de Água Funda trazia grande desconforto para Gustavo. Por sorte, um certo convite fez com que ele retomasse a força necessária para viajar para a cidade mais uma vez.

E lá estava ele em sua velha carruagem, o Sol sobre a cabeça e o infindável mar de areia sob os cascos do cavalo. Levava no coldre um revólver e era ainda acompanhado por um pistoleiro de aluguel, um comparsa para trazer alguma sensação de segurança durante aquela viagem. Seguiram por alguns quilômetros sem dizer palavra alguma, podendo-se ouvir apenas os sons das respirações ofegantes e o cansaço multiplicado pelo calor. Limpando o rosto encharcado de suor, Gustavo retirou do bolso um papel dobrado e amassado. Desdobrando-o, olhou para seu conteúdo: era um mapa da região.

— Ele disse pra a gente aguardar aqui — o magnata comentou com o comparsa. — Só espero que não mande uns bandidos pra me matar.

O pistoleiro sorriu e rapidamente sacou o revólver, destravando-o logo em seguida. A dupla aguardou por mais alguns instantes, até que duas silhuetas apareceram no horizonte: dois homens, dois cavalos. Aguardando com ansiedade, Gustavo segurou o cabo da arma que carregava, mas não a retirou do coldre. Não queria parecer ameaçador, mas também não daria sopa para o azar. Conforme os cavalos galopavam, as figuras se tornavam mais reconhecíveis. Por fim, os rostos puderam ser vistos com clareza: mais adiante, Breno Farias. Acompanhando o político, ali estava a cangaceira conhecida como Amanda.

— Finalmente — Gustavo tentava parecer descontraído, ainda que o suor em seu rosto também fosse motivado por uma parcela de medo. — Pensei que fossem me deixar derreter aqui.

— Claro que não, Água-Santa — Breno olhou para o pistoleiro que o encarava. — Ei, viemos em paz.

— Eu conheço essa aí — o pistoleiro apontava para Amanda. — É cangaceira.

O coração de Gustavo começou a disparar e, apesar dele tentar ocultar o medo, sua mudez entregou a verdade. Percebendo o estado emocional do homem, Breno Farias se antecipou:

— Ela está conosco. Todos os cangaceiros estão — o político falava com calma, mas era firme. Observou o olhar de estranheza crescente advindo de Gustavo. — O Marcondes tentou lascar com eles, mas foi lascado de volta, tendeu?

Amanda soltou um sorrisinho forçado, aumentando ainda mais a desconfiança de Gustavo. O pistoleiro, por outro lado, gargalhou e deu uma piscadela para a moça, que respondeu com uma cara de nojo.

— Mas então — o magnata tentava impulsionar o próprio espírito através das palavras —,  que tipo de lugar para se encontrar é esse? Eu estava esperando uma estrutura melhor. Nenhuma sombra?

— Calma, meu amigo. Assim como você toma suas precauções — Breno apontou para o pistoleiro —, eu também tomo as minhas. Como vejo que está tudo bem, peço que me acompanhe.

Desconfiado, Água-Santa olhou para o comparsa. O homem apenas respondeu balançando a cabeça de forma afirmativa.

— Tá certo, tá certo — Gustavo finalmente aceitou a ideia. — Vá na frente.

Sem pestanejar, o político e a cangaceira conduziram o magnata e o pistoleiro através das terras áridas do sertão. Alguns minutos e muitas gotas de suor depois, eles se depararam com a nova base da Lagoa da Esperança, com suas casinhas simples, mas funcionais. Tudo que Gustavo pensava era “bem mais simples do que a mansão do Marcondes, hein?”, optando por permanecer quieto, afinal.

Naquele momento, duas pessoas habitavam a base. Do lado de fora, um armado João Cego vigiava os arredores, enquanto Maria Beatriz preparava o almoço graças aos ensinamentos de Socorro de Deus, pessoa essa que ela sentia muita falta. Apesar de ter um único olho funcional, não tardou para João detectar o quarteto que se aproximava. Primeiro, vislumbrou o rosto de Breno. Depois, o de Amanda. Até aí, tudo corria muito bem, pois ambos eram membros do grupo. Entretanto, quando viu Gustavo Água-Santa e o pistoleiro, um certo alerta disparou na cabeça do velho. Com uma espingarda em mãos, gritou de longe:

— O que cês vieram fazer aqui?

— Calma, meu amigo — Breno sorria enquanto falava. — Viemos todos em paz. Gustavo agora é um dos nossos.

“Um dos nossos?”, João se questionou. Não gostava desse tipo de coisa. A política, a mutabilidade das alianças, os ideais que eram trocados a cada nova etapa. Tudo isso lhe parecia como a falsificação da honestidade, a invenção de um caráter, a corrupção da moral. Entretanto, se o próprio padre, um homem de Deus, aprovava aquele tipo de coisa, o que um velho caolho poderia dizer? No fim, acreditava ser burro demais para entender, optando por permanecer calado ao invés de argumentar. Abaixando a arma, gesticulou para que o quarteto se aproximasse, ação que executaram rapidamente.

— Muito obrigado — Breno disse enquanto descia do cavalo e amarrava-o ao palanque. Amanda, Gustavo e o pistoleiro fizeram o mesmo. — Tudo bem por aqui, Cego?

— Tudo sim. E com ocês? — Desconfiado, João Cego mantinha um olhar especialmente fixo em Gustavo Água-Santa. — Esse aí é amigo mesmo?

— Amigo? — Gustavo olhava para a arma segurada pelo velho. Não estava mais apontada para ele, mas lhe trazia calafrios. — Eu sou o melhor aliado que você pode ter!

Demonstrando uma segurança que não tinha, Gustavo deu uma gargalhada, sendo acompanhado apenas por Breno. Amanda e o pistoleiro achavam aquilo uma tremenda perda de tempo, enquanto João seguia engolindo em seco a cada nova desconfiança que beliscava o seu cérebro. Dentro de sua casinha, Bia escutou as risadas e resolveu dar uma olhadinha pela janela. Quando viu Gustavo, sentiu um arrepio.

— Eu tenho falado com Gustavo através de cartas já tem um tempo — Breno explicou. — O homem foi seriamente golpeado por Marcondes e eles não se falam há semanas.

— Além disso, eu vi o debate que Breno teve com ele. Como alguém de fora de Água Funda, eu não consigo imaginar como um cidadão pode pensar em votar naquele véi — o magnata complementou.

— Infelizmente tem muita gente que vota nele, Gustavo — o político prosseguiu. — Mas a questão não é essa: Gustavo vai se unir a nós. Quer dizer, ele não vai morar aqui, mas fornecerá apoio. Ele irá...

— Essa é mesmo uma boa ideia? — Beatriz interrompeu o político.

Irritado, Breno Faria olhou para a garota. Ela havia sido em ágil: enquanto o político trocava elogios com Gustavo, ela havia saído da casa para encarar os homens com ainda mais desconfiança.

— Como é que é, criança? — Farias questionou com tensão e desprezo.

— Primeiro: criança é quem está no meu ventre — Bia respondeu com ímpeto na voz. — Segundo: Gustavo não era o homem que ajudava Marcondes a tomar conta da água? Não era ele que impedia que os pobre tivessem acesso? Por que acha que é uma boa ideia se juntar com gente desse tipo?

— Bia, Bia, Bia — o político, com o queixo erguido, seguia encarando a mulher como uma garotinha. — Mil perdões por ser sincero, mas você não entende nada sobre política. Enquanto você tá aí preparando o almoço e lavando roupa, eu conseguindo apoio pra salvar a cidade e a região que você tanto ama. Então não questione minhas alianças. Além disso, eu tenho certeza que Água-Santa não fazia nada daquilo por mal. Ele estava em um contexto e, naquele momento, talvez aquela fosse a melhor posição a ser tomada.

— E se o contexto se repetir?

— Não vai.

— Vão se lascar — revoltada, Maria Beatriz cuspiu no chão. — Eu posso não entender de política, mas minha mãe me ensinou a ser honesta, a ser uma mulher direita. Isso não tá certo!

Cheia de fúria nos olhos, Bia deixou o lugar dando pesados passos. Chegando na sua casinha, fechou a porta com força, fazendo um estrondo comparável a sua raiva. Olhando para Gustavo, o político disse:

— Ignora ela. É só uma criança.

Gustavo sorriu enquanto João Cego sentia sua consciência gritar: “Bia está certa”. Dentro da casinha, a garota tinha vontade de chorar de raiva, gritar e descontar em alguém. Nessa hora, desejou que tivesse a frieza de José que, apesar de ser um verdadeiro arranjador de confusão, tinha uma certa malemolência para lidar com situações difíceis. Tudo que a garota conseguia pensar era que a Lagoa da Esperança seguia um caminho tão tortuoso quanto o que Marcondes queria para Água Funda. No entanto, ela ainda tinha fé de que Padre Miguel tivesse completa noção do que estava fazendo. Ele a salvou anos atrás e ela tinha profunda gratidão por ele. Não, o religioso não estaria errado. Se ele aprovasse a ajuda de Gustavo Água-Santa, então talvez fizesse sentido. Por mais que tal pensamento lhe lembrasse com uma prisão, Bia sentia um certo conforto na ideia. Era melhor do que ser uma menina grávida à deriva em um sertão selvagem.

— Ah, José — falou em voz alta. — Volte logo.

Ele voltaria, mas não tão cedo. Seguindo com seu compromisso, lá estava o rapaz pensando em uma solução para salvar sua sogra. Obviamente, já sabia de toda a questão do diário e acreditava que aquele seria um bom meio para libertá-la. Afinal de contas, se caísse o Francês, então as moças daquele terrível lugar ficariam livres, não? De toda forma, Zé tinha ainda uma outra ideia em mente.

Ainda que fosse manhã, foi até o cabaré na esperança de encontrar o lugar aberto. Aquele não costumava ser o horário mais adequado para se visitar tal tipo de estabelecimento, mas não custava nada tentar. Chegou lá, bateu na porta e encontrou o careca de sempre.

— Ah, é você — ele reconheceu José rapidamente. — Vamos, entre!

Com a porta aberta, Zé agradeceu a Deus por ter conseguido acessar o cabaré mais uma vez. Lá dentro, o ambiente estava quase vazio. Um ou outro homem andava de um quarto para o outro, mas não havia aquela movimentação e festança que a noite sempre trazia. Mais a esquerda, próximo das bebidas, estava o Francês. O homem de barba longa e sotaque estranho se via ocupado organizando as garrafas. Reparou em alguns vinhos que estavam estragados e, fazendo uma expressão de nojo e desapontamento, descartou as garrafas.

José o via, mas ainda sentia um certo frio na barriga. Estava prestes a dizer algo pelo qual poderia se arrepender amargamente, mas não havia outra opção: vivia uma vida de riscos e já tinha aceitado esse fato. Ainda assim, seu corpo parecia pesado e ele andava com dificuldade. Só acelerou o passo quando os olhos do Francês o encontraram.

— Oh, se não é nosso héros! — O barbudo falou com alegria. — Vamos, chegue mais perto. Quer beber algo?

Caminhando mais rapidamente, Zé começou a encarar a estante com infindáveis bebidas. As opções eram infinitas, sendo que a maioria das bebidas expostas nunca haviam sido vistas pelo rapaz.

— O senhor tem água? — Tímido, foi o que José pediu.

— Água? — O Francês soltou uma gargalhada. — Se é o que gosta, é évident que temos!

De maneira gentil, o homem pegou um pote de barro e despejou a água dentro de um copo de vidro. A água estava gelada e José pôde apreciar cada gole logo após agradecer pela gentileza.

— Como anda a vida, ami? Vejo que realmente gostou deste local — o Francês se divertia com aquele tipo de conversa.

— Ah, esse canto é muito arrumado mesmo — aos poucos, o rapaz se acostumava com a tensão e aprendia a driblá-la. — E eu vou muito bem. Trabalhando, né? Mas escapando.

— Sempre com um humor particulier! Adoro isso. Mas então, vai querer consumir algo além das bebidas?

Havia chegado a hora. Sentindo uma crise de tosse, José recebeu alguns tapas nas costas e agradeceu antes que pudesse começar a falar. Estava nervoso, mas obrigou-se a prosseguir com o plano.

— Então, lembra daquela última vez que eu vim? — Começou a falação. — Eu fui pro quarto com uma mulher. Qual o nome dela mesmo? Bianca, Marcela...

— Bárbara! — O Francês tinha uma boa memória.

— Bárbara! — Zé confirmou. — Sim, essa mesma. Ami, ela foi de primeira. Foi tão de primeira, mas tão de primeira, que eu querendo comprar a muié.

— Comprar? — O Francês arregalou os olhos.

— Sim, comprar. Acho que ela daria uma boa esposa.

Tentando conter uma reação mais forte, o barbudo falhou miseravelmente: acabou se explodindo de tanto rir. Sem saber como reagir, José resolveu copiá-lo e riu junto.

Vous êtes o primeiro a me dizer isso! Quer dizer, já vi outros cabarés me oferecendo dinheiro para ter a putain, mas um homme querendo comprar uma femme? Essa é nova! — Levou um tempo até que o homem deixasse de gargalhar histericamente. — Mas agora falando sério: a resposta é non. Nada contra você, ami. É só que essa mulher já me deu muito problème. Não há dinheiro nenhum no mundo que compense tudo que ela me fez perder, tu comprends?

— É de lascar mesmo — aliviado, José tinha certeza que a coisa poderia ter ficado muito pior. Ainda assim, ele podia sentir um certo desânimo pelo plano inicial não ter dado certo. — Mas então, ela tá livre pra um... um negócio, sabe?

— Claro, ami. Mas dessa vez eu vou cobrar, non?

 Gesticulando positivamente com a cabeça, José foi conduzido até o quarto de Bárbara. Lá dentro, encontrou a mulher com suas roupas de sempre. Quando ouviu a porta ser fechada, a mulher virou-se para o lado e sentiu grande alívio ao ver que era Zé que adentrara o local.

— Graças a Deus — ela disse enquanto se aproximava gentilmente do rapaz. — Você entregou a carta para Bia?

— Sim, entreguei — José apertou a mão da sogra e se sentou ao lado dela na cama. — Ela ficou muito emocionada, dona Bárbara. Até chorou!

— Oh, meu Deus! — Era possível ver que os olhos da prostituta adquiriram certa umidade. — Mas então, qual o plano? Você deu um jeito em tudo?

— Eu tentei — José começou a explicar. Sendo seguido por uma onda de silêncio, pôde sentir seus braços e pernas ficarem cada vez mais inquietos, como se precisassem expressar toda a tensão recém-vivida pelo homem. Levantando-se, iniciou uma caminhada cíclica antes de voltar a falar. — Conversei com Francês. Esse é o nome dele mesmo? Francês? Parece estranho que alguém tenha esse nome. Enfim, do que eu tava falando mesmo? Ah, do prano. Eu conversei com o homi e pedi pra comprar ocê.

— Comprar? Que ideia de Jerico é essa? — Bárbara não escondia a estranheza diante de tal plano.

— Parecia fazer sentido. A gente te aluga, né? Quer dizer, prostituir é alugar, eu acho. Eu tenho dificuldade com esse negócio de palavras. O importante é que eu vim de coração puro, tá bom, dona Bárbara? Só que aí o homi disse que você não tava a venda. Pior: disse que tinha feito ele perder muito dinheiro.

— Aquele desgraçado! — Levantando-se, Bárbara foi até o criado-mudo ao lado da cama e pegou um cigarro. Ofereceu-o para José, que recusou prontamente, e acendeu. — Ele falando da Bia. O fi duma égua queria que a minha menina fosse trabalhar neste lugar imundo assim que a menarca chegasse.

Menar-o-quê? — José contorceu o rosto em dúvida.

— Menarca. É quando nós sangramos pela primeira vez — a mulher riu ao ver o a expressão de aprendizado claramente exprimida pelo homem. — Por sorte, conheci o Padre Miguel e ele salvou minha criança.

— Curiosidade: como você e o padre se conheceram? — Havia algo de malicioso na voz de José de Lima.

— Não foi da maneira que você está pensando — Bárbara gargalhou. — Anos atrás, na época em que o Jean... Ah, o nome dele é Jean. Então, quando o Jean ainda viajava de uma cidade a outra, paramos por Água Funda, pois o homem se sentia muito mal. Estava doente e, como bom religioso hipócrita, pediu para que chamássemos o padre para abençoá-lo. Eu fui essa pessoa.

— É. Parece o jeito certo pra um padre conhecer uma prostituta. Com todo respeito, dona Bárbara — a cada nova palavra, Zé parecia perder ainda mais o jeito.

— Mas então, você tem algo mais a dizer? Já já você terá que pagar outra sessão para continuar no meu quarto — ela se preocupou com o tempo.

— Sim, sim, claro — falou com pressa e tentou, ao mesmo tempo, acelerar os pensamentos. Como esperado, não conseguiu. — É o padre, o Miguel. Ele sabe de tudo sobre o prefeito e o Jean. Ele vai acabar com os dois e aí a gente vai salvar você!

Estática, Bárbara reagiu de uma forma que José não esperava. Ao invés de pular de alegria e dar infinitos abraços no genro, ela apenas encarou-o com uma expressão que se aproximava mais do fúnebre do que do festivo. Sem entender, o rapaz até ensaiou algumas palavras, mas elas não saíram do mundo das ideias. A sogra se antecipou e disse:

— O Jean não é uma pessoa simples, José. Ele não vai deixar isso barato.

— Ele num vai ter tempo pra reagir, dona Bárbara. Confie em mim. Confie no padre. É ele que por trás de tudo — Zé explicou.

Pensativa, ela deixou que o silêncio imperasse por alguns segundos. José de Lima respeitou o momento e aguçou os ouvidos para ouvir as palavras seguintes da sogra:

— Eu só não quero que minha filha corra riscos!

— Temos isso em comum, dona Bárbara — o rapaz mantinha um sorriso no rosto. — Num vou deixar que nenhum desses safado chegue perto da minha esposa.

Aquela era uma promessa e tanto. O rapaz sabia que não seria tão simples cumpri-la, mas torcia para que a pressão de dizer aquilo para a sogra servisse como um incentivo, algo que fortalecesse o seu poder enquanto pai e marido. Deixando o cabaré para trás, rezava para que o padre tomasse as decisões certas e, finalmente, mãe e filha pudessem se reencontrar.

Com a chegada da noite, outras pessoas tomavam partido para solucionar os possíveis problemas de Água Funda e de seus habitantes. Entre essas pessoas, estava o ilustríssimo Marcondes Maia, prefeito da cidade. Àquela altura, esposa e filhos já dormiam, enquanto o político se reunia com alguns homens na sala de estar. Lá estavam os cinco pistoleiros, mas não apenas eles: Valter e Levy completavam o grupo de pessoas hábeis no uso de armas. Era um time e tanto, talvez até mesmo capaz de dizimar a força policial da cidade, algo que Marcondes obviamente não desejaria. Não, o homem seguia as leis dos homens e os costumes de Deus. Aquela união deveria ter um objetivo mais nobre, sem dúvidas. Ou pelo menos era isso que Valter queria acreditar.

Deslocado do restante do grupo, o homem esguio tentava conectar ideias e pensamentos para fazer tudo aquilo fazer sentido. Por que o prefeito formaria tamanho grupo de homens? Seriam enviados para acabar de vez com os cangaceiros? Atacariam um outro grupo rival? Ainda que tivesse mais um milhão de dúvidas, uma atordoava a cabeça do ex-cangaceiro com força maior: o que Levy aprontaria? Sem obter nenhuma resposta, restou a Valter manter o silêncio e ouvir o que o prefeito tinha para dizer.

Ele, inclusive, estava incrivelmente ocupado tomando uma xícara de chá. Sentado, observava os seus empregados aguardarem pacientemente de pé. Ainda que fosse tarde da noite, o político aparentava estar um tanto quanto disposto. Mais do que isso: havia felicidade em seus olhos. Ele parecia estar a ponto de tomar um decisão importante, algo que talvez fosse essencial para sua eleição. Entretanto, sentimentos não eram palavras. Valter não era o único a ter dúvidas: todos os presentes queriam saber para qual missão seriam enviados.

Após esvaziar a caneca, Marcondes Maia passou os olhos por todos os membros do grupo, sendo mais lento quando se tratou de Valter e Levy. O homem esguio engoliu em seco, enquanto o de pele queimada soltou um sorriso zombeteiro. O prefeito respondeu de forma semelhante, antes de finalmente se levantar e começar a falar:

— Chega de enrolação. Que horas são? — Ele olhou para o relógio na parede. — Quase meia-noite, é isso mesmo. Reuni meus melhores homens aqui para uma operação secreta. Sei que vocês são confiáveis e, mais do que isso, são capazes de fazer o que irei propor. Vocês prometem manter silêncio sobre as próximas coisas que direi?

— Prometemos — os sete homens disseram em uníssono, ainda que a voz de Valter saísse de forma mais fraca.

— Ótimo. Serei breve: Gustavo Água-Santa virou a casaca. O véi agora tá do lado de Breno Farias e toda aquela trupe do padre. Acontece que eu soube de algumas coisinhas que ele não sabe que eu sei — Marcondes deu uma pausa dramática. — Esta madrugada, uma carruagem passará próximo da saída Leste da cidade. Uma carruagem com documentos importantes envolvendo Água-Santa e o governador do estado. A missão é simples, meus amigos: roubem a carruagem.

— Mas precisa de tantos homi pra isso? — Levy questionou.

— Precisa! — Maia não foi nada gentil em seu tom. — Eu soube que esses documentos circulam por aí com uma boa proteção. Não quero cometer erros, quero força total! Acham que podem fazer isso?

“Claro”, “sim” e “óbvio” foram as palavras ditas pelos bandidos. Àquela altura, a tensão de Valter havia sido drasticamente reduzida: ver Levy levando uma dura de Marcondes era ótimo. Mais do que isso: a missão parecia legítima, apesar de toda sua veia criminosa. Com as ordens dadas, os sete homens pegaram seus cavalos e partiram até o local indicado. Sorridente, o prefeito ficou sentado no sofá enquanto acendia um cigarro. A noite seria longa.

Os bandidos cavalgaram como um verdadeiro bando de cangaceiros. Valter, por um momento, até sentiu prazer naquilo. Conseguia reviver os velhos tempos, quando tudo se tratava de assaltar e dividir os ganhos. Lembrava-se de beber ao lado de Amanda, de contar piadas para Eduardo e de até mesmo se divertir com Levy. Por um breve momento, a brisa noturna do sertão soava como o Paraíso em seus ouvidos, ainda que o som dos cascos dos cavalos rompendo o solo o trouxessem de volta à Terra.

Levaram apenas alguns minutos para chegarem no ponto estabelecido. Era vazio, frio, seco e com areia por todo lado, basicamente como qualquer outro canto do sertão noturno. Caberia a eles agora aguardar pela carruagem e, na hora certa, realizar o assalto. Mesmo tendo vivido experiências semelhantes várias vezes, Valter sentia como se aquela fosse a primeira vez. Ele mesmo se maldizia por tamanho nervosismo: recentemente havia salvo um homem da prisão. Não fazia sentido ficar inquieto, mas aquela era a vida que vivia. Agora, não teria ganho algum com o assalto: na verdade, apenas colocava em risco o próprio pescoço, podendo ainda deixar uma criança sem pai. É, não parecia haver muita vantagem em voltar ao velho trabalho.

— Ali! — Um dos bandidos apontou.

Naturalmente, Valter olhou para a direção apontada. Entretanto, um som de tiro chamou a sua atenção e o alvo, mais ainda. Aproveitando a distração do homem esguio, Levy levantou o revólver e disparou contra a cabeça do cavalo do ex-cangaceiro. Sem tempo de reação, Valter viu seu cavalo desmoronar, levando-o junto.

Com a perna debaixo do animal, o homem sentia algo torcido. Com uma grande dor se espalhando pelo corpo, gritou intensamente antes de olhar ao redor. O que viu era ainda pior: Levy não era um traidor dentro do grupo. Não, ele era apenas parte do grupo. Cada um dos pistoleiros observava o homem caído, enquanto seguiam conservando expressões que iam do desprezo a um prazer sádico.

— O que foi isso?! Me ajudem! — Ainda sem entender a situação, Valter era atormentado pela dor.

ainda num entendeu, né? — Descendo do cavalo, Levy ria sadicamente. Caminhou até o ex-cangaceiro e o encarou com nojo. — Você é um cabra da peste, Valter. Um traidor!

— O quê?! — Valter tentava de todas as formas se desvencilhar do cavalo, mas não conseguia. Tentou então sacar do revólver e até mesmo disparou. Entretanto, foi em vão: não havia balas de verdade na arma.

não contou pra eles sobre mim, contou? — O homem de pele queimada sentia prazer em ver o desespero de seu rival. — Apois: eu contei. Contei pra Marcondes tudo que sei sobre ocê. E agora ele confia em mim mais do que tudo. Não é, rapazes?

— Levy é um homi decente — o pistoleiro que tinha um dente de ouro confirmou.

— O que cês querem?! — O homem esguio parecia cada vez menor. — Eu num sei de nada!

— As paredes tem ouvidos, Valter da peste. A gente sabe que seu filhote quebrado tá com Breno. A gente sabe como chegar lá, a gente sabe esmagar o crânio de uma criança. Será que num percebe isso? — Levy falava com uma naturalidade diabólica.

— Não, meu filho, não! — A paternidade falava mais alto que a dor. — não vai fazer nada com ele!

acha? Valter, eu já matei criança antes e posso matar de novo. Alguém aqui é contra? — Os pistoleiros mantiveram-se em silêncio. — É, parece que a ideia é boa. Eu posso matar seu filhote se eu quiser, Valter. Mas eu num quero. Agora, eu num preciso. Mas ai dele se eu precisar. Quer saber como salvar seu filhote? Mim conte o que eu quero. Conte tudo. O Lúcio andava falando comigo. Coitado do homi. Ele me falou que cês iam dar um jeito no Marcondes de vez. Disse que tinham algo importante. Só não me disse o quê. O que é? E onde?

Valter conhecia parte da história do diário. Entretanto, ele também sabia que entregar aquele tipo de informação era imperdoável. João Cego já havia cometido o mesmo erro e a Lagoa da Esperança perdeu Antônio por conta disso. Entretanto, não havia nada mais importante para o homem esguio que o seu próprio filho. Imaginá-lo nas mãos de pessoas como Levy estava além de qualquer dor ou tortura que ele pudesse sofrer.

— Como eu vou saber que cês não vão matar meu filho?! — Valter gritava, mas o mundo não o ouvia.

acha que nós é doido? Eu já matei criança, mas porque precisava! Ninguém aqui é pirado do juízo não, Valter! — Levy riu após finalizar a explicação. — Faça sua parte que a gente faz a nossa. Ninguém vai tocar no Valter Júnior se você agradar o Marcondes agora. É uma escolha fácil, né?

“É”, o ex-cangaceiro respondeu mentalmente. Podia queimar no inferno pela eternidade, mas nunca seria capaz de trocar seu próprio filho por qualquer causa que fosse. Sentindo-se no vale da impotência, contou tudo: a localização do grupo, a descoberta do diário, os planos do padre. Se havia algum segredo escondido no fundo da mente de Valter, ele revelou. Não deixou nenhuma ponta solta, algo que impressionou Levy e os pistoleiros.

— Esse filho deve valer muito pra ocê mesmo — o homem de pele queimada disse com sinceridade. — Não se preocupe: não vamos encostar um dedo nele.

Sentindo-se como a definição de fracasso, Valter encarou Levy nos olhos e soltou um quase inaudível “obrigado”. Viu o cangaceiro traidor olhar para os pistoleiros e gesticular. Rapidamente, os seis homens pegaram as armas e apontaram para o homem caído. Valter fechou os olhos e sofreu por pouco tempo: os projéteis que atravessaram seu corpo rapidamente esvaíram sua vida.


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Notas finais do capítulo

Muito obrigado pela leitura! Como se sente em relação ao capítulo?

Até breve o/



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