Apocalipse escrita por Natália Alonso, WSU


Capítulo 6
Capítulo 5 – O Soldado Fantasma




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Refúgio dos Saqueadores, São Paulo

 

— Caveiras!!! — berra um vigilante correndo pela ala central antes de entrar em um corredor para um posto de sentinela.

O homem corre com um rifle em mãos, passa por outros sentinelas que atiram nos traficantes. No corredor estreito, ele tromba com um que forma estacas de ferro nas próprias mãos e arremessa nos invasores. Sons de tiros ressoam e pedaços de metal caem da construção maltrapilha. Os passos pelo piso instável são apressados por mais uma virada à esquerda que o coloca finalmente em posição de uma pequena fenda. Ele se ajoelha, coloca o pente de balas na arma e a posiciona pela abertura do ponto, olha pela mira e vê um invasor em seu carro com o rosto pintado de caveira com tinta negra. O traficante aponta a arma em sua direção. O tiro é certeiro entrando no olho do homem que cai no ponto de vigília. Finalmente, o outro que jogava estacas o puxa pela gola para trás, pega a arma e atira pela abertura.

Os atiradores do lado de fora se movem sem parar como vespas em suas motocicletas, alguns carros estão na frente com estacas presas a toda volta. São muito úteis quando perseguem alguma vítima ou precisam se defender. São três ouriços como esses que estão ordenados na frente da porta como um triângulo. No centro, uma picape preta de pintura ralada e partes de outras cores tem o próprio Marcos ao volante, acelerando ruidosamente. Denominada de Besta, o carro tem os vidros fechados à prova de balas, repelindo os poucos projéteis que chegam. Atirar é um problema, pois indica onde os saqueadores estão para os outros atiradores.

A Besta vai até a frente, e então dá a volta. Os carros ouriços ficam nas laterais quando ela passa subindo parcialmente na parede de escombros, cheio de pequenas aberturas dos sentinelas. Não derruba nada com o peso, mas a roda destrói algumas das armas que estavam com a ponta do lado de fora. Os sentinelas ouvem a buzina pesada, e então correm para sair dos postos, indo em direção a ala central do refúgio.

— Saiam daí!!! — grita um dos saqueadores para as pessoas que correm tentando se esconder ou levar armas.

O caminhão com uma grandiosa estrutura de ferro derruba de uma única vez o portão metálico, atropelando as pessoas que ainda estavam na praça central e parando no local. Sua carapaça é cheia de camadas metálicas com inúmeras brechas para os atiradores de dentro do contêiner. As pontas das metralhadoras brilham para os vigilantes que saiam das tocas para o novo alvo. Matheus, ao volante do caminhão, atira com um fuzil pela fenda metálica na lateral da porta, ele tem o rosto pintado como caveira, mas com tinta branca saindo dos cabelos louros bem alinhados.

As vespas correm por todos os lados buscando escravos e atirando nos que estiverem armados. Uma mulher corre de um esconderijo para outro, mas no caminho tem as pernas arrancadas por uma lâmina presa a roda do carro ouriço que passa ao seu lado. Um caveira sai segurando uma arma e indo em direção ao grupo de jovens, mas a teia do aracnídeo envolve o cano da arma. Apesar de Jonas saltar para a parede, o impulso não foi o suficiente para arrancar a arma da mão, o caveira segura a teia com a outra mão e atira em direção a Jonas. O corrompido então salta para trás do homem, puxando o seu braço e o forçando a atirar na própria cabeça.

As bolas de fogo produzidas pelas mãos de Dominique atingem a carapaça do caminhão, mas não acertam fenda alguma. Os atiradores se concentram no noman que salta para a lateral, é nesse momento em que um feixe azul passa por ele, joga uma granada pela fenda e se afasta do contêiner. Arthur desvia das balas enquanto corre, várias vezes ele se queima quando resvala em algumas delas, seu uniforme já está bastante desgastado. Mas quando vê algumas na direção de Saqueadores, enrola um tecido no braço direito e o usa para tirá-las da direção, quase como se espantasse um conjunto de moscas. As balas caem no chão, outras atingem paredes metálicas.

Somente quando Matheus vê o vulto deixando um rastro de balas caídas é que os berros dos atiradores de dentro do compartimento é perceptível. Ele abre a porta às pressas e salta para fora com o fuzil na mão. É o tempo dele cair no chão e a explosão parcialmente contida fazer levantar voo o caminhão que se retorce no ar dando uma volta para frente e caindo de ponta cabeça. Matheus se vira no chão dando um tiro em um saqueador que se aproximava, uma bala passa zumbindo em seu ouvido e ele atira ainda deitado em outro no alto. O Caveira branca se levanta rapidamente e corre em seu traje tático. Para quando um ouriço passa a sua frente, bem a tempo de salvar a perna. Depois a Besta finalmente chega e Marcos abre a porta lateral, ele entra em um salto se segurando pela parte de cima.

— Tá sempre perdendo os meus carros, bicho. — reclama o meia Caveira.

— Eu não perdi esse. Ele tá ali, só pegar se quiser.

Marcos vira para ele com os olhos semicerrados e depois gira o volante de supetão, os pneus traseiros cantam, a ré é engatada e atropela um saqueador, prensando-o na parede. Um rinoceronte branco atravessa o local, a carapaça dura não permite que os tiros penetrem, ou, pelo menos, os caveiras não trouxeram balas para rinocerontes e elefantes. O chifre empala um caveira e o arrasta por alguns metros antes do movimento de cabeça lançar o homem longe.

Alguns motociclistas cercam um grupo, os traficantes acorrentam saqueadores jogando-os para dentro do carro ouriço. Outra moto se aproxima, mas uma bola de fogo atinge as rodas, faz com que o motoqueiro seja lançado no ar batendo contra um pilar e emitindo um sonoro quebrar de ossos. Os ouriços abastecidos de escravos disparam para sair e dar espaço a entrada de mais outros. Há muitas motos e carros com espetos, de vários modelos e tamanhos, provocando um verdadeiro caos no refúgio.

O som da guerra é ensurdecedor quando Dimitri corre de tiros até um dos quartos. Ele escapa quando passa pela porta e a fecha com marcas de balas contidas se formando na camada metálica. Olha para trás e vê Aradia tentando sair da cama, ele achava que a bruxa já tivesse saído de lá. O som de batidas na porta é forte, então toca na porta derretendo a fechadura e lacrando o quarto. Ele se vira para a mulher que mal consegue apoiar-se na perna.

— A gente precisa sair daqui! Tá maluco?!

Ele arregala os olhos cinzas e treme quando ouve tiros sendo disparados na porta recém lacrada. Se abaixa rapidamente levantando o tapete de retalhos e abre um alçapão pequeno, a puxa pelo braço a direcionando para o esconderijo. Ela grunhe de dor pelo corte na perna e cai no buraco. Quando se vira, só vê ele fechando a porta metálica, ela mal tem tempo de gritar contestando a decisão e um brilho da porta sendo lacrada ilumina o pequeno depósito. Ela se arrasta no chão desviando do calor, que logo é abafado quando Dimitri joga o jarro d’água para que o chão esfrie. Bem a tempo de jogar o tapete novamente, os caveiras arrombam a porta e ele reponde derretendo o vidro do jarro no rosto deles. Os traficantes urram, mas pouco. Dimitri tem seus olhos cinzas fixos quando aquece as mãos nas têmporas do segundo, o cheiro de queimado é atordoante. Assim que ele silencia, o noman sai do quarto.

Do lado de fora, seu irmão para a moto roubada de um invasor deixando ele subir, ambos aceleram e seguem um dos ouriços cheio de prisioneiros. A moto não pode se aproximar muito pelas lanças presas às rodas dos ouriços, mas então eles dão a volta jogando bolas de fogo nos pneus. Sem qualquer borracha mais, o ouriço diminui a velocidade, o suficiente para Dimitri saltar da moto para o vidro do ouriço. Os pés em brasa derretem o vidro imediatamente, um dos caveiras morre com a chegada do noman, o outro recebe suas mãos.

Assim que o ouriço para, Dominique desce da moto e ajuda a tirar os saqueadores que haviam sido sequestrados. As mãos derretem as correntes e então eles olham melhor para o carro ouriço, dão um sorriso malicioso um para o outro.

Enquanto isso, Arthur corre como um louco, derrubando invasores e desviando de balas, suas panturrilhas tremem de forma descompassada pelo desgaste. Está exausto quando para ofegante, então uma dor de cabeça causa um zumbido insano, ele leva as mãos nas têmporas com os olhos virados para cima. Grita ajoelhando no chão, ele volta a se controlar aos poucos com a visão turva e vê um caveira se aproximar com um fuzil em mãos. O traficante alinha o cabo da arma para atingir a cabeça do velocista, mas Arthur retoma e faz a mão trêmula. Atravessa o peito do armado que morre na hora, a mão aparece nas costas e Arthur se assusta com o que acabara de fazer. Tira a mão do homem deixando-o cair no chão.

Ele para estarrecido, olha para a própria mão e braço ensanguentado. O vermelho cobre o brilhante uniforme prata e azul, sente enjoo com o cheiro de queimado. Olha em volta e vê a Besta rodar com Matheus para fora da janela, sentado na porta usando uma marreta na cabeça de um saqueador. Assim que o carro gira, é possível ver um dos saqueadores que estava acorrentado pelo pescoço, sendo arrastado pela traseira do carro. Pouco restara de seu cadáver já quase sem músculos pelo atrito.

O velocista fica zonzo, sente a perna esquerda falhar, olha e vê uma bala saindo pela coxa em seu trajeto retilíneo. Ele não berra, sabe que está distraído, que não está mais pensando direito, que não…

— Merda! — pragueja com o segundo tiro de raspão, agora no braço.

Ele volta a correr, agora, em direção ao atirador, o segundo, depois o primeiro. Ele está dando socos fortes demais, não está segurando a mão como costuma fazer. Cada soco racha o crânio deles de uma só vez. São mortos, um atrás do outro, ele manca e isso lhe deixa ainda mais irritado.

Jonas amarra um dos caveiras e gira o invasor em torno de si como um pêndulo, o lança longe. O rinoceronte atropela o motoqueiro que se aproximava para pegar o Aracnídeo e pouco depois torna-se um gorila falando com ele.

— Temos que sair daqui! — fala o gorila, líder dos saqueadores.

— Vamos fugir de lugar em lugar? Precisamos lutar...

Uma explosão gigantesca atordoa ambos e reverbera em um tremor. O Aracnídeo se segura no gorila e então vê os gêmeos voltando, cada um tem uma mão na porta do carro ouriço em alta velocidade. O carro rapidamente fica todo vermelho luminoso e eles vão direto para a Besta. Marcos e Matheus abrem as portas às pressas e saltam da Besta. A batida é seguida pela explosão na picape equipada das melhores armas, o líder dos Caveiras olha fuzilante para os gêmeos que passam a correr do traficante com a submetralhadora.

— Metaleiros filhos da puta! Malditos mendigos!

Marcos atira por todos os lados, Matheus também acerta diversos saqueadores que fogem. Henrique vê o careca descontrolado e na mesma hora corre como gorila sobre ele. O braço enorme da fera de pelos negros encontra o braço mecânico do traficante, que direciona a arma para o peito de Henrique.

Uma lança atravessa a arma, destruindo-a por completo, ambos olham para o lado e veem a garota de trajes indígenas formando pelos vermelhos e negros por todo o corpo. Junto dela, muitos outros indígenas e alguns já transformados em naurús.

— Ah! Caralho. — pragueja Marcos, ao puxar um dispositivo e soltar o braço mecânico do próprio corpo e fugir.

O braço fica preso no punho do gorila, ele percebe que o item mecânico pressiona mais e agora uma pequena luz pisca próximo ao seu pulso. Rapidamente Henrique se transforma em uma águia para soltar-se e se afasta em voo, mas a explosão atinge a ave e a faz cair.

Marcos correu puxando o primo que atirava nos lobos guarás gigantes que se aproximavam. Sem um dos braços ele olha sempre diretamente para Daniele já transformada que o persegue. Matheus lhe dá cobertura com a metralhadora, os tiros não penetram na densa carne, mas são atordoantes com a força do impacto. Ela faz a curva derrapando no chão ensanguentado, o líder grita para que todos recuem.

Matheus alcança um naurú que destroçava um caveira dentro de um carro ouriço, por trás ele dá um tiro na orelha do Vermelho e joga o cadáver no chão. Arranca do carro o motorista ainda agonizante e empurra o primo para entrar. Marcos pega uma pistola da cintura e consegue acertar um tiro na boca de outra licantropa que já saltava para o ataque. O corpo de pelos rubros caem e ele corre com o carro. As poucas motocicletas vão atrás, zunindo como vespas, um naurú salta e consegue ainda derrubar mais dois caveiras. O som dos carros e motos aos poucos se afastam.

Daniele olha ao longe, ela se vira e caminha devagar até a ave caída no chão. Os olhos de Henrique fecham devagar, mirando no rosto feral da licantropa com muito sangue nos lábios e dorso.

 

 

*********

 

A porta brilha sendo aquecida, quando abre o esconderijo, Aradia sai em fúria dando um soco para o noman a frente.

— Seu desgraçado! Me deixou aqui sozinha!

— Nossa, se eu soubesse que você queria companhia já tinha vindo antes, gata. — reclama Dominique enquanto massageia o próprio queixo.

Ela percebe o engano, tenta se levantar, mas a perna fraqueja. O homem de cabelos chumbo a segura.

— Não me toca! — Ela ameaça com a mão fazendo uma bola negra de energia.

— Você tá sangrando! — Ele aponta para o sangue escorrendo na coxa enfaixada.

Assim que afasta as faixas vê o corte de pontos abertos, Aradia grunhe de dor.

— Ele fez pontos para que você não ficasse com cicatrizes muito aparente, mas terá que ficar em maior repouso…

— Eu pareço o tipo de pessoa que se importa com isso?

Dominique repara nas inúmeras figuras desenhadas em sua pele negra, os símbolos místicos estão por toda parte. Então ele levanta a mão, deixando os dedos vermelhos em brasa e direciona para o longo corte da coxa.

O berro ressoa alto, Dimitri tira a mão do buraco de bala cauterizado na perna de Arthur, o velocista começa a xingar com inúmeros palavrões.

— Você berra como uma garotinha, Arthur. — ri Jonas, ao lado.

— Vá te catar, bunda de teia!

Dimitri olha melhor pela calça cortada, franze as sobrancelhas ao notar a pele do velocista.

— Ei! Não te dei intimidade! — Arthur bate na mão de Dimitri que levanta irritado para ir embora.

Jonas nota o movimento estranho.

— O que foi?

— Sei lá! Cara esquisito, deve ser gay carente.

Dimitri passa pela praça central onde vermelhos estão por todos os lados, auxiliam nos feridos e erguem pesadas bases metálicas para tirar os sobreviventes. A fumaça negra de pneus queimando está intoxicando ainda mais o ambiente. Em um dos quartos, Henrique abre os olhos devagar quando os delicados dedos femininos terminam de enfaixar seu peito.

— Vai cuidar de mim, agora? Que romântico.

— Não começa, garoto do circo. Ou eu termino o que o Caveira começou.

— Vocês chegaram bem a tempo. Obrigado.

— Eu disse que viria.

— Sim, você disse. — Henrique pousa a mão na coxa de Daniele, ela sorri.

— Vai ficar dessa vez, não é?

— Não. E vocês vão sair daqui.

— O que? Demoramos muito para construir esse lugar, não podemos simplesmente abandonar tudo.

— Isso tá todo destruído, Henrique. Os Cains já sabem de vocês, quer ficar esperando eles voltarem para buscar o resto?

Henrique se apoia nos cotovelos, olha pela porta do lado de fora e nota a fumaça negra e múrmuros de pessoas feridas.

— Não se preocupe, não é longe daqui. Tenho certeza que a pouca fuligem atômica lhe fará bem. — fala Daniele, colocando os cabelos em contas e penas no ombro direito.

— A zumbi está lá?

— Sara está bem, ela disse que vocês se uniriam aos vermelhos de uma vez. Ela não erra, então obedeça.

Henrique franze o cenho e ri lateralmente.

— Ainda acredita no que a morta fala? Ela disse do ser com asas douradas e tal, puro delírio.

— Talvez ela tenha errado, ou apenas ainda não tenha acontecido. — Daniele volta os olhos para Henrique que apenas a mira em um sorriso tolo. — Está ouvindo o que estou falando.

— Absolutamente nada. — responde debochado.

Ele se levanta e entrelaça os dedos nos cabelos da nuca de Daniele, a puxa para si e beija de forma suave. Ela o abraça, aninhando-se ao peito dolorido dele, aos poucos se abaixam deitando bem na hora em que Dominique chega no quarto. O noman se vira rapidamente encostando a porta de forma silenciosa, impedindo a entrada de Jonas.

— Então, bunda de teia. Me ajuda a tirar mais uns prensados de lá, ok?

Ele puxa o Aracnídeo pelo braço, impedindo uma resposta negativa.

 

 

Vestíbulos do Inferno

Vale da Ira -

 

Lúcifer rasteja em sua calça rasgada, prende a respiração, para, observa. Quando um oroba finalmente se afasta, o príncipe dos infernos se levanta de seu esconderijo. Ele escapara de sua prisão, mas ainda não saiu do Inferno, ainda. Ele precisa de um aliado, alguém que possa levar para terra consigo que possa lutar ao seu lado. Então nota que está no Vale da Ira, o rio Estige ferve com suas águas rubras a sua frente. Sorrindo, se aproxima da margem.

Ao se curvar, mira o próprio reflexo por um instante, depois leva as mãos, carrega o vermelho borbulhante na palma em concha e verte nos lábios. Bebe o líquido amargo da ira de tantas almas tomadas de fúria. Elas o nutrem, todo pecado é muito saboroso para um demônio, não que ele precise agora. O sangue da vampira, amaldiçoado e repleto de todos os pecados possíveis, já lhe trouxeram a força e jovialidade que precisa agora. Os cabelos negros e ondulados formam a moldura de seu rosto anguloso, é forte, belo e sabe que precisará de perspicácia para tomar o trono do irmão.

Lúcifer é o verdadeiro herdeiro do trono, em vingança por seu pai, por todos os milênios nas catacumbas, por todas as torturas, das quais ele se lembra de cada uma. A sua frente, a abertura no alto deixa cair mais almas que sempre se afogam em sua própria cólera, tomados pela insanidade que os condenou. Então olha mais ao longe, fica de olhos semicerrados e percebe uma mão batendo ainda na superfície. Inclina o rosto curioso, talvez ele tenha encontrado o seu guerreiro.

O portador da luz caminha, seus passos ficam sobre poucos centímetros acima das águas rubras do rio. Aos seus pés, é possível ver o contorno das almas suplicando pelo abrandamento da penitência. Ele não se importa, está intrigado pelos braços que se debatem com força na água, mantendo a cabeça ainda para fora dela. Ao chegar, nota que o homem tem uma mordida no pescoço, o rasgo permite que a água penetre nos furos e saia pelo outro lado da carne. Não foi uma mordida bonita como contado em histórias terrenas. A meia máscara negra caída no pescoço permite ver o rosto dele.

— Quanta ira você tem, meu jovem.

— O suficiente para matar você. Mais todos os malditos demônios e vampiros, desgraçado! — vocifera o homem, ainda se debatendo com força.

Lúcifer se curva e nota que a correnteza do rio puxa pelas pernas todas as almas e, mesmo assim, a exausta alma não afunda em sua penitência.

— Sabe que está aqui por ter pecado pela Ira. As águas turvas indicam que ainda foi regado a violência. São meus pecados favoritos. — O homem não responde, apenas nada com força. — Estou procurando um guerreiro, alguém que possa me auxiliar a tomar o que é meu, por direito.

— E eu estou procurando uma corda. — responde irritado o homem cansado nas águas.

— Me diga, Soldado. O que fará quando encontrar a sua corda?

O Soldado franze o rosto, toma uma feição de asco quando Lúcifer sorri com suas presas, curvado com seus chifres curtos e pontudos escapando da cabeleira.

— Como sabe que eu sou...

— Eu sou Lúcifer, repugnante resto divino. Sei tudo de cada alma quando falo com uma aqui. — fala ele apontando ao redor. — Ainda não me respondeu. O que fará quando encontrar sua corda?

— Eu vou voltar, quero matar Lucy, a vampira que me jogou aqui.

— Lucy? — questiona decepcionado o demônio. — Ela não é minha inimiga, mas realmente, eu não poderei chegar perto de Mefisto com ela no caminho. Ainda me é interessante.

— Mefisto? Um demônio que quer matar um demônio?

— Ele é meu irmão. E não. Não quero matá-lo, quero que ele vá para a mesma cela que me deixou, quero fazer com ele o mesmo que fez comigo. E eu tenho uma boa memória.

— Eu poderia tê-la matado se tivesse a arma certa. — lamenta Tales.

O demônio olha em desdém.

— Não, não poderia. Foi fraco, lento, tolo. E por isso acabou causando a própria morte, e a de outros. Mas você tem ira o suficiente. Rancor... isso lhe dará a teimosia suficiente para tentar quantas vezes for necessária.

O demônio sorri e lhe estende a mão para o condenado. Em um brusco movimento, Tales é levantado para o mesmo nível do demônio, pouco acima da água. O Soldado finalmente descansa o corpo, suspira e questiona:

— E como pretende fazer isso?

Lúcifer fala se virando e caminhando ainda sobre o rio. Aos poucos as roupas maltrapilhas se desmancham e formam um novo e fino traje de túnica e calças negras, os bordados dourados tal como ela em seu período de principado. O Soldado observa a mudança e segue o demônio, caminha atrás tal como ele, com as almas dos condenados suplicantes aos seus pés.

— Eu arranjarei as armas necessárias, eu sei o que é preciso.

— A cimitarra de luz está com Mefisto. Se conseguíssemos ter a Azul Flamejante...

— Sim. A espada de Miguel foi feita para extirpar o mal, é espelhada da Cimitarra de luz, duas armas poderosas. Uma nas mãos do rei dos infernos, e outra com o general da Legião Angelical.

Lúcifer suspira com certo pesar.

— A cimitarra de luz era de meu pai, assim como esse reino, é minha por direito. Será um prazer usar uma espada angelical para tomar meu trono e minha herança.

— O que importa a mim, é que eu possa matar a Drácula.

— Não se preocupe, enquanto você cuida da vampira, eu trato de meu irmão. E depois, trago os demônios e amaldiçoados para o seu lugar, no inferno, como deve ser.

— Você pretende salvar a humanidade, tomando o trono de seu irmão?

Lúcifer para ainda sobre o leito do rio escarlate, e se vira para seu novo aliado.

— Salvar a humanidade?

— Sim, está dizendo que irá tirar as tropas de demônios da terra.

— Eu não ligo para a humanidade. As tropas devem ficar onde o rei está. Se para tomar o meu reino, for necessário pagar esse preço de “salvar um monte de primatas”, que seja então.

Ele fala de costas ao chegar na margem, os pés são adornados em sapatos no instante em que pisam na areia, então o Soldado também chega na parte firme.

— E como pretende conseguir essas espadas?

— Há muitas armas que podem ser usadas, não apenas as espadas. Quando se passa mais de dez mil anos com demônios, você aprende a ouvir o que precisa, descobrir o que tentam te esconder.

Lúcifer o olha de cima a baixo e nota o buraco no peito.

— A primeira delas, será você. És chamado de Soldado Fantasma, não é mesmo?

Lúcifer sorri de forma tenebrosa quando Tales confirma, o demônio então finca a mão no mesmo buraco que a vampira arrancara o seu coração. O Soldado segura o pulso do algoz, em um reflexo tentando impedir que algum ferimento. Mas palavras indecifráveis saem da boca demoníaca e depois completa:

— Seja, o verdadeiro Soldado Fantasma.

O Soldado em agonia, urra de dor ao ver sua pele se desfazendo, camada a camada tudo forma pequenos fragmentos negros e depois em uma neblina turva que se dissipa no ar. Como uma fumaça, ele vai perdendo suas formas das mãos e pernas até o dorso. Por último o seu rosto com a boa aberta em um grito de fúria e dor. A fumaça negra desaparece por completo, se dissipando no ar. Um momento de silêncio paira pesado, contrastando aos gritos distantes que normalmente preenchem os vestíbulos infernais, o príncipe sorri e ordena:

— Apareça a mim, Soldado Negro.

A penumbra negra rodeia o demônio, gira a frente de Lúcifer e toma forma. São os mesmos contornos, mas agora ele é em fumaça negra. A densidade variante faz com que em partes seja completamente transparente, em outras opaco e turvo. Dois pontos vermelhos surgem nos olhos abertos, não se vê o seu rosto, ou qualquer delineado mais específico. É apenas um delineado, sem detalhes ou roupas. Ao longe, há dúvidas de que seja realmente humano. Mais de perto, a dúvida é ainda maior.

— Quando começamos? — questiona o Soldado.

 

 

Cidade do Corsário

Os carros se aproximam dirigindo devagar, Dominique finge que a perna não dói quando pisa no freio do furgão. Aradia está sentada no banco do passageiro e olha para trás com o som dos gemidos de Dimitri. Ele contrai involuntariamente seu rosto e fecha o punho de forma tensa enquanto dorme no banco de trás.

— Não se preocupe, é só mais um pesadelo. — declara Dominique enquanto dirige com seus óculos de lentes amarelas.

— Não estou preocupada. — retruca a mulher negra voltando o corpo para frente novamente.

— Ele deve estar lembrando de como foi a nossa infância e adolescência nos laboratórios da Aliança. — Dominque suspira antes de continuar. — Eles sempre davam mais atenção a ele do que a mim.

— Por quê?

Ele pressiona os lábios e balança a cabeça em negativa.

— Não faço ideia. Não faziam muitos testes comigo, mas ele... bom, teve vezes que ele demorava meses para voltar ao dormitório. Sempre achava que o tinham matado, foi ficando cada vez mais quieto, até ficar assim.

— E você compensa falando pelos dois? — retruca a mulher apoiando a testa no punho e o cotovelo na janela fechada.

— É o meu charme, as mulheres adoram. — responde ele em um sorriso debochado.

Ela olha em desdém, então um chute em sua cadeira a incomoda. A bota de Dimitri acertara em cheio sua mão esquerda, ela decide então deixar o falastrão na frente e vai para o banco de trás. Ao se sentar, seu braço pousa lateralmente no adormecido, que instantaneamente se acalma e para de relutar. O irmão observa a cena pelo retrovisor.

Você levou um tiro, Domi, oh meu Deus... eu posso cuidar de você, Domi... — resmunga Dominique imitando uma voz feminina enquanto vira o volante.

No carro a frente, Arthur balança a perna freneticamente sentado logo atrás de Henrique que dirige devagar. O balançar do carro pelos montes de terra e buracos é calmo e deixa cair parte da poeira atômica acumulada nas janelas. Os faróis cortam a penumbra escura da noite e Daniele se curva mais a frente com os olhos semicerrados. Enfim ela aponta para que ele vire o carro em uma viela, os olhos refletidos pelos faróis assustam Henrique que não tinha notado um Vermelho tão próximo da estrada.

— Minha nossa. Já chegamos então?

— Chegamos a cinco minutos, Henry.

O carro passa agora ao lado de um robusto homem de trajes tribais, em pé, o vigia porta uma lança de ponta brilhante. Arthur olha incomodado para o indígena, e cada um dos vários carros atrás deles começa agora a ser vigiado de perto. Camuflados, empoleirados em árvores e escondidos nos restos de carros abandonados, em pouco tempo os carros dos recém-chegados estão cercados por inúmeros guerreiros.

Eles ostentam pinturas em vermelho e preto, muitas contas nos cabelos negros, longos, lisos e alguns curtos e raspados nas laterais. As cordas nos braços, penas curtas coloridas e couro formam partes de proteção nos braços e peito, completando a característica vestimenta primal. Daniele faz um gesto e Henrique para o carro, rapidamente ela sai do veículo e cada um faz o mesmo com os carros que chegam. Todos saem devagar, afinal, serem cercados por tantos Vermelhos não é algo que seja comum de sobreviventes, eles não são conhecidos por serem pacíficos.

Daniele vai até a frente e aguarda, iluminada pelos faróis do jipe empoeirado. Henrique, Arthur, Jonas, Aradia e os gêmeos vêm a frente. Poucos depois, os indígenas se afastam em um deles se aproxima, a capa de jacaré cobre até sua cabeça, com os dentes da fera contornando seu rosto em um capuz. Respeitosamente, o alto e robusto homem curva a cabeça a líder.

— Rainha.

Daniele se vira para os refugiados Saqueadores:

— Sei que muitos de vocês não conheciam, nós Vermelhos, espero que todos sintam-se a vontade nesse refúgio que temos. Este, é Caíque, comandante direto, caso não consigam falar comigo diretamente, podem procurar qualquer um de nós, para suas necessidades.

A mulher então se vira.

— Caíque, os abrigos estão prontos?

— Sim, há mais além destes?

— Não, infelizmente. São 45 no total, algumas crianças e outros precisam de cuidados medicinais. Os vermelhos estão voltando a pé, logo atrás.

O homem balança a cabeça raspada confirmando as instruções.

— Sim. Mais alguma coisa?

— A morta, está acordada?

— Ela apagou na última hora, fazia tempo que não dormia. Acho mais fácil conseguir falar com ela amanhã. — recomenda o guerreiro.

— Pera, é Sara que vocês estão falando? — questiona à distância, Dominique.

— Sim, ela mesma. A não ser que conheça outra morta-viva.

Dominique se mostra preocupado.

— Foi ela quem criou Karen, não devíamos confiar nela.

— Não é assim, eu convivi com Sara por muito tempo, eu também ajudei a criar a alien, lembra? — responde Atrhur, em seu puído uniforme prata de braços cruzados.

— É, mas eles não tentaram dominar você na Aliança. Eu fiquei lá metade de minha vida, eu ouvia das histórias do que aconteceu quando ela foi pra lá.

— Isso foi um erro, Sara foi para lá para tentar resgatar Karen! — responde Jonas, fechando novamente o casaco, incomodado com os olhares dos vermelhos em suas marcas negras de pele.

— É sério mesmo que ninguém se incomoda com uma morta-viva?

— Talvez não nos incomodamos por estar mais preocupados com demônios e vampiros, Dominique. — fala Aradia em desdém.

— Além do fato de que as profecias dela têm sido muito úteis. Sempre foram. — completa Daniele.

— Sim, claro. A de um anjo de asas douradas salvador do mundo. Isso é delírio! — responde irritado.

— Não podemos perder a fé. — reprime o Aracnídeo.

— Não podemos perder mais gente! — retruca Dominique, irritado e apontando para os carros atrás de si. — Nós éramos mais de duzentos quando vocês chegaram, e dias depois, os Caveiras aparecem!

— O que está sugerindo?

— Chega disso! — Daniele se coloca no meio dos dois. — Não podemos perder tempo nos dividindo, não iremos durar assim, nenhum de nós. Agora todos iremos descansar e tratar os feridos, temos muito a fazer amanhã.

— Você é líder dos vermelhos, não minha, garota. — responde com insolência Dominique.

Neste momento uma movimentação silenciosa o lembra que está rodeado de pitangas, armados e sempre prontos para se transformarem em logos gigantes. Ele olha ao redor e o pomo de adão faz o movimento indicando a engolida a seco.

— Não sou sua líder, mas sou quem lhe dará abrigo e comida essa noite. Se quiser sair amanhã, fique à vontade.

Dimitri dá uma cotovelada no irmão, que tira os óculos amarelos e recua observando a reação dos outros saqueadores.

— Eu… eu me exaltei.


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