Hiraeth escrita por Jenn Writer


Capítulo 2
Azarada


Notas iniciais do capítulo

Oi, pessoal! Fico feliz de ver que tenho alguns acompanhamentos :) Sintam-se livres pra comentar hahaha



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Me arrasto até o meio fio usando a força do braço que não está sangrando, para não correr o risco de ser atropelada uma segunda vez. Passo alguns segundos tentando desacelerar minha respiração entrecortada e diminuir minha raiva em relação ao maldito por trás daquele volante. Ou a situação está mais grave do que pensei e os nova-iorquinos já entraram em pânico total, ou hoje estou muito azarada. Não me importo em estancar o antebraço, porque vejo que a escoriação não é profunda, apenas um arranhão do asfalto. Mordo o lábio inferior em antecipação à dor que espero sentir ao me levantar. Apoiando as mãos em um poste de luz, experimento jogar o peso sobre a perna atingida. A dor é forte, mas não insuportável, então, notando também que o sangramento já começa a parar, me forço a continuar meu trajeto. Enquanto manco em direção ao edifício, percebo que esqueci as chaves e dessa vez terei que usar o comando de voz.

 

Explorar outros universos tem lá suas vantagens, nesse caso, boa tecnologia por custos bem menores. Mas eu geralmente evito exibir qualquer tipo de coisa que possa chamar a atenção, sei o quanto seria perigoso se alguém desconfiasse do meu estilo de vida e resolvesse investigar. Por isso me candidatei ao Departamento de Polícia de New York, onde eu mesma estaria por dentro de qualquer investigação. Estou há quase quatro anos no cargo e gostaria de dizer que pretendo continuar, mas não cabe a mim decidir o futuro. Não sei o que me espera agora que estou prestes a completar 26 anos, a idade que minha mãe tinha quando morreu. Desde que fiz a primeira descoberta sobre as habilidades dela, esse é um número que me persegue. "Sora era uma mulher incrível". Foi o que me disseram seus vizinhos com quem entrei em contato. "Ela era cheia de alegria, gentil e atenciosa com quem quer que fosse" lembravam com saudade. Todos eles se lembravam dela, mas eu não, sendo sua própria filha. Isso porque quando respirei pela primeira vez, ela deu seu último suspiro. Talvez assim tenha sido melhor, talvez eu sofreria mais se tivesse memórias a que me apegar. Mas a ausência de lembranças também é uma angústia, principalmente em minha gana por respostas. Até onde sei, Sora foi enfermeira em uma vila distante de Tóquio pelo tempo que pôde, antes de ser perseguida e ter de fugir para outro mundo, literalmente.

 

Quando passo pela porta de vidro, que empurro com dificuldade, desejo como nunca que meu prédio fosse equipado com um elevador. "Pelo menos meu apartamento é no segundo piso" repito a mim mesma para aguentar a subida dos degraus, que pelo esforço que tenho de fazer, mais parece uma escalada nos Alpes. Assim que alcanço meu corredor e me apoio no batente, sussurro as palavras em hindi que fazem a maçaneta se destrancar. Passo pela porta e dou o comando que a faça voltar a se fechar ao mesmo tempo em que Pan vem se enroscar em minhas pernas. Ele late preocupado, como se soubesse que estive em apuros. Acho que ele sabe mesmo, os animais podem ser bem inteligentes para ler expressões humanas, e nesse momento a minha não deve estar das melhores. Caminho até o banheiro já desabotoando a camisa e me despindo dela, mantendo apenas a regata branca que uso como peça de baixo. Abro a torneira na água fria e mergulho a parte ralada, do cotovelo quase até a altura do pulso. Depois de secar e aplicar um pouco de álcool gel apesar da ardência, pois era o que havia mais perto, vou rapidamente até o quarto. Pan acompanha todos os meus movimentos, inclusive quando me agacho na altura da gaveta do armário e com a mão esquerda desato seu fundo falso, revelando o pequeno espaço ocupado por meu cofre pessoal. Insiro a combinação e posiciono meu dedo indicador no leitor de impressão digital, afinal, segurança nunca é demais. Me certifico de ter a pasta lá dentro, e aproveito para retirar minha Glock, que coloco em cima da cama bem ao lado enquanto apanho documentos recentes da minha escrivaninha que ainda não haviam sido guardados, porque eu queria examinar melhor quando chegasse do trabalho hoje. Um descuido que espero não repetir.

 

Estou inserindo a combinação novamente para fechar a caixa de segurança, imaginando que os acontecimentos do dia não possam se agravar, quando Pan levanta as orelhas peludas em atenção a algum som indecifrável para meus ouvidos humanos e corre em direção à sala. Aparentemente meu azar interpreta meus pensamentos como um desafio, pois não mais que dois segundos se passam entre o ínfimo latido do cachorro e a voz que ouço seguida de um estrondo na minha porta da frente. Por instinto, minhas mãos avançam na direção da arma respousada à minha esquerda e quando a figura atravessa a saleta e a visão que tenho do lado de cá da porta a alcança, estou com a arma empunhada, ambas as mãos a segurando firme, coladas ao corpo. O homem fala alguma coisa sozinho e despreocupadamente olha ao redor do cômodo até perceber minha presença com um sobressalto. Ele empunha nada mais, nada menos que um arco tão logo a expressão de surpresa toma conta de seu rosto, mas simultaneamente, aponto minha pistola em sua direção.

 

— Eu não faria isso... - ele adverte.

 

— Acabou de invadir minha casa. - apoio o dedo no gatilho.

 

— Garanto que tenho um bom motivo pra isso. - ele entorta a cabeça um pouco para o lado, como se estivesse desconfortável com alguma coisa. Algo em seu rosto me parece familiar, mas não consigo saber o quê exatamente, a adrenalina por toda essa tensão me atrapalhando a pensar.

 

— Então me diga qual é. - não alteramos nossas posições em um centímetro sequer.

 

— Agora realmente não seria o melhor momento, senhorita. - ele movimenta os braços, o que me faz intensificar minha posição, ao que ele responde espalmando a mão para indicar que não pretende usá-la contra mim. Observo com a maior atenção quando ele a leva até a orelha esquerda e diz com a voz grave:

 

— Stark, estou com um probleminha por aqui, se puder parar de gritar enquanto tento resolvê-lo.

 

— Stark. Da Stark Industries? - pergunto, começando a juntar os pontos.

 

— Exatamente. O homem de ferro, sabe? Acho que isso já explica um pouco da coisa por si só. - ele levanta as sobrancelhas. Mas é claro! Gavião Arqueiro, agente da iniciativa Vingadores. Apesar de reconhecê-lo diminuir minha sensação de perigo, ainda estou desconfiada com o que o trouxe até o meu apartamento. Será que a SHIELD botou os olhos em mim? 

 

— Na verdade, não. - estreito os olhos, tentando não transparecer meu medo.

 

— Ah, qual é, garota, eu não quero atirar em uma civil, mas se você continuar ameaçando a minha vida e atrapalhando a missão... - ele não termina a frase, mas entendo o que quer dizer. O lado bom é que se eu estou atrapalhando a missão, eu não devo ser a missão.

 

Levo poucos segundos decidindo o que fazer. Agora tenha mais pressa do que antes em sair daqui, e não acho que me envolver em uma luta com esse agente vá me ajudar com isso. Por isso, abaixo as mãos, mas sem desengatilhar a arma. Ainda preciso de um recurso no caso de meu plano dar errado.

 

— Isso aí! - ele também se apressa em tirar a mira de mim e se aproxima da minha janela, usando de apoio a mesma poltrona familiar de Pan. Pan! Finalmente me lembro dele. Corro até a porta e não o encontro. Ele não teria fugido, ou teria?

 

— E como explodir minha porta e afugentar meu cachorro se encaixa na sua missão, Gavião? - disparo. O loiro observa algo do lado de fora do apartamento, mas estranhamente não olha para a rua lá embaixo, e sim para o céu, e responde sem olhar pra mim.

 

— Bom, estou realmente surpreso que saiba meu nome como vingador, mas devo esclarecer que eu não explodi sua porta, eu a arrombei, e se seu cachorro for esse escondido atrás das flores, então a minha resposta é que não se encaixa.

 

Me assusto com a resposta e com o latido que a sucede, quase como se Pan reclamasse por ter sido denunciado. Me aproximo do vaso de argila com tulipas artificiais rente à parede e entre ele e o começo do balcão vejo a bola de pelos, que agarro rapidamente. Ouço o homem soltar uma pequena risada, e tento disfarçadamente me aproximar da prateleira na copa que tem algo de que preciso, até que ele comenta:

 

— Bom, acho que devia saber que meus planos não contavam que houvesse alguém em casa, como o idiota do Stark havia dito. - alguns segundos de silêncio, até que ele completa. - É, eu sei que você ouviu, Tony, foi a intenção. 

 

— Eu vi vocês em ação mais cedo... deve ter tido que correr bastante pra chegar aqui em tão pouco tempo. - Mantenho Pan no meu colo enquanto estico os dedos por entre o molho de pimenta, o ketchup e a mostarda até alcançar um estojo de couro pequeno. - Invadir a casa de uma civil costuma ser uma boa motivação? - o trago pra perto de mim e uso o corpo do cachorro para escondê-lo de sua visão.

 

— Está muito bem humorada para quem tinha uma arma apontada pra mim há poucos minutos...

 

Demoro um pouco a responder, incapaz de raciocinar uma boa resposta ao mesmo tempo em que tento traçar meu plano de fuga. 

 

— Sinto muito não ter preparado uma recepção calorosa pra alguém que chega invadindo meu apartamento. - falo sem muita paciência e preencho os poucos passos entre a sala e a porta do meu quarto. Ele não me responde, mas aperta seu ponto auricular e diz:

 

— Stark, ele está quase na mira. - em seguida, se dirige a mim: - Senhorita, acho melhor se abrigar no quarto.

 

— Claro. - essa foi a deixa de que eu mais precisava. Me apresso em encostar a porta atrás de mim, e coloco Pan em cima da cama, onde há pouco esteve a Glock que agora acomodei no cós da calça contra minha lombar. Abro o zíper do estojo com certo nervosismo. "Não é como se você nunca tivesse feito isso antes, Ari", digo a mim mesma. "Nunca sob tais circunstâncias", meu interior me responde. Nisso tenho que concordar. Como proceder quando há um vingador em sua sala, com qualquer coisa que não pode ser boa na mira, e você precisa fugir sem ser notada?

 

— Calminha, amigão. - sussurro para Pan enquanto injeto o líquido na sobra de pele atrás de sua cabecinha peluda. Em poucos segundos ele adormece ainda na minha mão, e o acomodo dentro da caixa transportadora. Volto ao cofre que havia trancado minutos atrás e o reabro. Tiro a pasta, agora completa, e a enfio também dentro da caixa. Depois de tampá-la, pego no estojo de couro outro frasco, dessa vez para mim, com líquido semelhante ao que inseri em Pan, mas que terá efeito contrário. Enquanto o dele o fez cair no sono, este me deixará mais alerta que qualquer estimulante. Encaixo o vidro na seringa e aplico em meu pescoço. A princípio há uma sensação de dormência no local, mas logo meu sangue se agita e sinto minha temperatura aumentar. Estou prestes a dar cabo do meu plano, quando ouço o homem do outro lado da porta comunicar por seu ponto:

 

— A chinesinha já foi pra dentro. Quando quiser, Stark. Vamos acabar logo com isso.

 

Não sei dizer o que me incomoda mais... o fato de ter sido chamada de chinesinha, como termo pejorativo e ainda por cima equivocado, ou de ouvir frases conhecidas. A espera por ordens. Uma execução. É isso o que aquele agente está usando minha casa para fazer. Minha cabeça lateja. Eu sei que deveria confiar no julgamento de um bando de gente com poderes sobrehumanos que eliminam ameaças ao nosso país, mas por que isso não faz sentido pra mim agora? Talvez pela minha vasta experiência com o governo e suas organizações, que quase sempre tem seus lindos ideais corrompidos pela ganância humana em manter tudo a seu modo. Tudo aquilo que é diferente e que você não é capaz de entender... se não puder controlar, elimine. É assim que eles pensam. O Gavião Arqueiro é um dos controlados, talvez apenas não saiba disso. Eu sei, e por isso vivo essa vida de fugas constantes. E ao que me parece, o que quer que esteja lá fora é um que eles estão a fim de eliminar. E eu não posso deixá-los conseguir.

 

Apesar do aumento da dor em minha cabeça, encaixo a alça da caixa com Pan e os arquivos em meu braço e com a mão seguro a pistola. Uso meu outro membro superior para me equilibrar enquanto saio pela janela do quarto. Apoio minha perna no parapeito enquanto me inclino para pular na escada de incêndio. Subo mais dois lances, o máximo, pois meu prédio não tem mais andares. Isso é algo que me intriga: entre tantos prédios altos e com vistas mais claras, por que escolher o meu apartamento, uma janela tão pequena e mal localizada? Penso nisso e sinto as pontadas no cérebro enquanto contorno a saída da escada na cobertura do edifício e olho para cima. É aí que vejo o alvo do vingador e entendo a resposta para minha pergunta. O homem de porte ostensivo trajado com roupas não convencionais se encontra em cima de uma espécie de carruagem suspensa que flutua. De onde se encontra, ele tem em seu campo de visão todas as janelas da corporação à sua frente bem como de um bom pedaço do Central Park à sua direita. Mas não da janela insignificante do meu apartamento bem abaixo, às suas costas. Não tenho tempo de observá-lo para tentar identificá-lo, as dores só aumentam e preciso agir rápido se quiser dar-lhe uma chance.

 

— Ei! - grito, mas sem sucesso. Longe demais. Ainda corro o risco de ser vista pelo vingador. Tomo então uma decisão que talvez não seja das melhores, mas dadas as circunstâncias... Aponto a Glock para seu aparelho planador, e torço pra que minha mira não esteja tão ruim. Atiro. Para minha sorte, acerto a blindagem da estrutura próxima a seu pé, como imaginado. E também como imaginado, ele se vira com uma expressão um tanto alterada em minha direção. Tenho pouco tempo para apontar enfaticamente para baixo, esperando que ele não seja míope, quando uma flecha é atirada em sua direção e eu mesma não consigo acompanhar a rapidez com que sua mão se posiciona a tempo de segurá-la a centímetros de seu rosto. Qualquer um capaz disso com certeza deve estar na lista VIP do governo americano como "eliminar". Um sorriso desponta gradativamente em sua face virada para baixo quando ele identifica a origem de seu ataque, e eu suspiro satisfeita pela boa ação de hoje. Me preparo para seguir meu curso quando o som de passos a poucos metros de mim me supreendem.

 

— O que você pensa que está fazendo? - não tenho tempo de contemplar o rosto pertencente àquela voz feminina, pois ela se apressa em me desferir um golpe no rosto que me deixa desnorteada. Caio no chão, ainda com a sorte de não ter tombado para o lado contrário e despencado do prédio. Mal tenho tempo de abrir os olhos e recebo um chute no lado do meu corpo que ainda estava inteiro forte o suficiente para me roubar o ar por alguns segundos. Percebo que minha arma deslizou para longe de mim, e tento manter a concentração e alcançar a caixa que deixei cair. Se eu apenas pegá-la, poderemos sair daqui... Mas quando demonstro a intenção de me levantar e estender a mão em direção à caixa, recebo um golpe na perna machucada hoje de manhã, me desequilibrando, e não consigo conter um grito de dor quando o pé de meu algoz elimina todas as distâncias entre o chão, minha mão e a sola de sua bota.

 

— Barton não te ensinou muitos modos desde a última vez que nos vimos, não é, Romanoff? - ouço uma voz aveludada, que não reconheço, entrar em cena. Minha agressora parece perder o interesse em mim, pois caminha na direção desse novo elemento. Tento ignorar as pontadas na cabeça. Quanto mais tempo fico com o soro sem realizar a viagem, mais ele incomoda meu sistema nervoso.

 

— Você...- ela começava uma frase de ameaça quando ouço um som semelhante ao de um impacto, e ela é lançada a metros dali. Finalmente consigo levantar minha cabeça e examinar a figura ali presente, e qual não é minha surpresa quando percebo ser o mesmo homem que acabei de beneficiar. Será que está tentando nos deixar quites? De qualquer maneira, ele não se demora mais que o necessário olhando para mim. Apenas chuta sem muito esforço a caixa que por alguns centímetros ainda não estava ao meu alcance. Em outras circunstâncias eu com certeza reclamaria de sua rudeza, principalmente com Pan estando lá dentro, mas agora isso apenas facilita minha vida. Agarro a caixa com a mão que não foi esmagada a tempo de ver a agente se levantar e empunhar sua arma. Ouço o som desacelerado de um disparo enquanto sinto o vento parar de soprar contra meu rosto, e logo não pertenço mais àquele cenário.

 


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