Truque do Destino escrita por Akiel


Capítulo 7
VII – Céadmil, Cáermewedd




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VII – Céadmil, Cáermewedd

 

“Não há ninguém que possa fazer Ileanna se ajoelhar. Ninguém além de Auberon. Ela é quase o poder que carrega, uma força da natureza. E, se ela chamar, Cirilla irá responder. Há algo que as une, uma ligação entre os poderes e os sangues que possuem. Mas, no final, será Cirilla a comandar e Ileanna a seguir. Se a Andorinha é a rainha, a Rosa é a general. Por Cirilla, Ileanna irá ajoelhar e, juntas, elas poderão incendiar o Caminho dos Mundos.

(Trecho do diário do Sábio Avallac’h)

 

 

Kaer Trolde

A manhã traz consigo a fria brisa para a fortaleza de Ard Skellig. O sopro gelado dança por entre os presentes no jardim exterior, dando um clima definitivo para a despedida que se desenrola. Há curiosidade no olhar do jarl, as írises azuis observando o modo como a postura de Yennefer tende sutilmente para a direção de Ileanna, quase como se a feiticeira de olhos violetas se recusasse a se afastar da mais nova. O witcher, por sua vez, permanece como uma sólida presença ao lado de Yennefer. Contudo, o atento olhar de Crach percebe como o olhar dourado é constantemente atraído para Ileanna, como se o Lobo Branco temesse que, em um segundo, a jovem feiticeira pudesse desaparecer.

— Obrigada pela hospitalidade, Crach. – a feiticeira de olhos violetas diz, um suave sorriso nos lábios finos.

— Não há o que agradecer. Vocês são sempre bem-vindos. – o líder dos na Craite responde e a atenção dos olhos azuis é desviada para a feiticeira de olhos dourados. Por longos segundos, Crach e Ileanna permanecem em silêncio, conectados pelo olhar, a jovem com olhos de witcher percebendo como o guerreiro parece lutar consigo mesmo para colocar os pensamentos em ordem e expressá-los através da voz – Aqui, em Skellige... – o jarl começa com determinação e sem fugir das írises douradas – Nós respeitamos aqueles corajosos o suficiente para pegar o próprio destino nas mãos e transformá-lo para além do que era esperado. – uma genuína surpresa nasce nos olhos da jovem feiticeira diante das palavras do jarl, para o divertimento de Geralt e Yennefer, que observam com pequenos sorrisos nos lábios. O olhar azul é elevado para o witcher e para a feiticeira mais velha – Se precisarem de qualquer ajuda, não hesitem em me chamar.

— Obrigada, Crach. – Geralt agradece, sorrindo para o amigo.

Com um breve aceno da cabeça, o jarl de Ard Skellig se despede, seguindo o caminho de volta para o interior da fortaleza, os passos sendo acompanhados por um curioso e ainda surpreso olhar dourado. As palavras ditas pelo guerreiro ecoam na mente da jovem feiticeira junto com a incredulidade que bate forte no peito.

— Isso foi... Inesperado. – Ileanna comenta ainda observando a figura cada vez mais distante do jarl.

— Você conquistou o respeito de Crach. – Yennefer diz com um timbre de divertimento na voz – Isso é um feito e tanto. – a feiticeira mais nova assente ante as palavras da mais velha, a surpresa do elogio dado ainda pulsando no coração – Mas já está na hora de irmos. – as írises violetas desviam de Ileanna para o witcher. – Eu abrirei um portal para você. Chegará a Velen mais rápido desse modo.

— Eu acho que prefiro ir do modo tradicional. – Geralt diz cruzando os braços sobre o peito.

— Eu não estava perguntando. – a feiticeira de olhos violetas responde com um sorriso adornando os lábios finos e arrancando um profundo suspiro dos lábios do Lobo Branco.

Não demora para que um portal para Velen seja aberto por Yennefer. Ainda assim, a hesitação é clara na postura do witcher, as írises douradas olhando do portal para o olhar violeta e de volta. Com um movimento da mão, Yennefer indica que Geralt ande logo e o Lobo não consegue segurar o pequeno sorriso que nasce nos lábios ao escutar a baixa e discreta risada que escapa de Ileanna. Respirando fundo e assentindo brevemente para as feiticeiras, o witcher passa pelo portal, a mente se voltando para o caminho a ser traçado de volta para o Poleiro do Corvo. Logo após a partida de Geralt, Yennefer abre outro portal para si e para Ileanna, direito para a capital imperial de Vizima.

Vizima

O vento sopra intensamente, ameaçando derrubar o capuz que emoldura o rosto da jovem feiticeira parada no jardim de neve. Olhos dourados observam a alta estrutura que parece lutar para escapar do toque gelado da nevasca. Fragmentos de uma fortaleza se revelam sob a tempestade, quase como um último pedido de socorro. Um movimento sobre o tapete branco captura a atenção da feiticeira, que abaixa o olhar, encontrando um belo lobo branco, cujos olhos exibem a mesma cor das írises da jovem feiticeira e a observam com profunda atenção. Há uma negra faixa circulando o pescoço do lobo, um pingente sendo mantido escondido em meio ao pálido pelo.

Curiosa com a súbita aparição do animal, a jovem feiticeira dá um passo a frente, a mão esticada na intenção de tocar o pelo da cor da neve. O movimento, contudo, faz com que o lobo comece a correr, as rápidas patas o levando na direção ao pátio interno da fortaleza. Sentindo o coração tremer com a sensação de familiaridade que a imponente construção desperta, a feiticeira decide seguir o caminho tomado pelo lobo branco, os passos lentos deixando marcas profundas sobre a neve.

A jovem feiticeira reencontra o lobo no centro do pátio interior, o atento e dourado olhar do animal observando a chegada da jovem como se a estivesse esperando para poder continuar o caminho. Intrigada e sentindo o coração bater cada vez mais rápido no peito, Ileanna segue o lobo pelo pátio, cada árvore e muro parecendo vibrar com histórias antigas e segredos esquecidos. O caminho do lobo leva a jovem feiticeira até a porta de entrada da fortaleza, abandonada entreaberta. Parecendo não se importar com o estado da entrada, o lobo empurra a porta com o focinho, seguindo rápida e animadamente pelo amplo salão.

A feiticeira segue o companheiro em um ritmo mais lento, o olhar observando as altas janelas e as paredes rachadas, com a tinta desgastada. Dentro da fortaleza, o sentimento de familiaridade se intensifica a ponto de o coração doer a cada ansiosa batida. Ileanna segue pelo chão ladrilhado, por entre camas abandonadas e estantes empoeiradas, a mente tentando encontrar algum ponto de referência, algum detalhe que possa ser reconhecido. Há mesas com o que são claramente instrumentos para preparar poções, mas o que eles fazem é apenas despertar lembranças do laboratório de Avallac’h e não dessa fortaleza.

O lobo branco para ao lado da lareira, o paciente olhar dourado assistindo a tentativa da feiticeira de reconhecer o local onde se encontra. Ileanna se aproxima de onde o lobo está, o animal logo tocando a mão da jovem feiticeira com o focinho tentando empurrá-la para a parede. Sorrindo com a insistência do lobo, a feiticeira decide seguir a orientação e espalma a mão direita contra a parede empoeirada e rachada. O toque é como um gatilho para vozes que parecem ecoar no vazio e abandonado salão.

“Corra! Para a floresta! Vai!”

“Ileanna, fuja!”

“Não!”

Diferentes vozes, mas todas altas e desesperadas, ecoando um ataque que não consegue ser lembrado. Mas de todas, a última é a que mais se destaca, carregada com um medo que congela o sangue com um poder mais intenso do que o da nevasca que cai sobre a fortaleza. Uma voz de mulher, conhecida, familiar, mas de onde? Onde essa voz foi ouvida? A feiticeira afasta a mão da parede, deixando que os dedos caiam sobre o branco lobo, que parece murmurar com apreciação. Ileanna se ajoelha ao lado do animal, os dedos acariciando o macio pelo de modo distraído. A aproximação permite que o pingente pendurado no pescoço do lobo seja finalmente visualizado por completo. E reconhecido. A estrela. A mesma estrela presente em um sonho e no pescoço de uma feiticeira.

A porta da fortaleza é fechada com um bruto baque, o impacto fazendo todo salão tremer e atraindo o olhar dourado para a entrada agora selada. Quando a surpresa passa e a feiticeira se volta para o lobo, não encontra mais o animal. Há duas pessoas a segurando, ajoelhadas com ela, o olhar dourado sendo atraído pelos colares usados. Uma estrela e um medalhão com o formato da cabeça de um lobo. É o medalhão que atrai o toque da jovem feiticeira, mas os dedos enluvados tocam o branco cabelo espalhado pelas ombreiras da armadura. Familiar, tão familiar. Quando a feiticeira tenta levantar a cabeça para ver o rosto do dono do cabelo branco, um toque quente no rosto faz com que Ileanna se volte para a outra pessoa.

— Você está bem? – ela pergunta e é a mesma voz. A mesma dos ecos. A mesma voz familiar. E o calor do toque também foi sentido antes... Não foi?

Os olhos dourados se abrem no momento em que a mente se prepara para responder a pergunta feita, encontrando írises violentas observando com curiosa preocupação. O toque de Yennefer é suave e quente contra o rosto de Ileanna, evocando a memória do sonho e de outros sonhos. A presença sempre constante, a dona da estrela sempre vista... Não poderia ser Yennefer, poderia? A voz no sonho, gritando e então perguntando, era a voz da feiticeira de olhos violetas, o calor do toque era o mesmo. Mas como Yennefer poderia assombrar os sonhos da jovem feiticeira se ela só se tornou conhecida há poucos dias atrás? E ainda assim, a sensação de familiaridade que a feiticeira passa é como se Yennefer fosse há muito já conhecida...

— Você está bem? – a poderosa feiticeira questiona sem afastar o toque do rosto da mais nova – Você estava tremendo, parecia estar tendo um sonho ruim. – a voz de Yennefer é baixa e suave, quase um sussurro em um sonho.

Ileanna apenas assente, o único movimento que é permitido ao corpo, a mente e o coração não querendo perder o carinho e o calor dado tão livremente e desejado desde o momento em que foi sentido pela primeira vez, durante uma conversa em Kaer Trolde. O silêncio cai sobre o quarto e Yennefer afasta alguns fios negros de perto dos olhos dourados, a mente perdida na familiaridade do gesto – feito muitas vezes quando a jovem feiticeira era apenas uma criança. Os olhos violetas não deixam de perceber, contudo, a forte semelhança dos olhos dourados de Ileanna e o olhar de um certo witcher, a mesma força presente nas írises de ouro. Ileanna permite o toque, sentindo a tensão do sonho se desfazer pouco a pouco sob o carinho da feiticeira mais velha. Uma pergunta se forma na mente, mas permanece presa na garganta.

Eu conhecia você antes de Eredin me levar para os Aen Elle?

Um leve bater na porta do quarto, que se abre de modo hesitante, quebra o silêncio e o feitiço do momento. As írises violetas logo se voltam para a jovem parada na entrada, que anuncia o desejo do imperador em ver as feiticeiras. Os olhos dourados de witcher, entretanto, permanecem fixos no perfil de Yennefer, mais precisamente na estrela que repousa no pescoço da poderosa feiticeira. Sem pensar, Ileanna ergue a mão para o pingente, os dedos sentindo o relevo das pedras que o decoram. O toque suave captura a atenção da feiticeira mais velha, que permite o toque curioso, a mensageira já dispensada e esquecida. O contato desperta uma memória na mente da feiticeira de olhos violetas, uma lembrança antiga, mas guardada próxima ao coração.

“Ela gosta da sua estrela” Geralt diz com divertimento na voz, os olhos dourados observando como as mãos da pequena nos braços de Yennefer se recusam a se afastar do pingente. “Ela sente a magia” a feiticeira diz com orgulho na voz. “Ela vai ser uma feiticeira” Yennefer completa, abaixando o rosto para tocar o nariz da pequena com um beijo. O riso que escapa dos lábios de Ileanna encontra eco na risada de Geralt.”

— Tem magia nele. – a jovem feiticeira diz sem desviar o olhar da pulsante estrela.

— Como o seu. – Yennefer responde, os dedos colocando alguns longos fios negros atrás da orelha da feiticeira de olhos dourados, um suave sorriso esticando os lábios finos – Temos que nos arrumar, o imperador nos aguarda.

— O imperador... – Ileanna repete devagar, como se somente agora estivesse realmente despertando do sonho – Quando chegamos, você disse que ele é o pai de Zireael.

— Ele é. – Yennefer confirma enquanto se levanta da cama, permitindo que a jovem feiticeira possa se sentar sobre o colchão – E ele não é conhecido pela paciência, então devemos nos arrumar. – com um sorriso, a feiticeira de olhos violetas oferece a mão para ajudar a mais nova a se levantar.

O silêncio retorna para o aposento enquanto as feiticeiras se arrumam para a audiência com o imperador de Nilfgaard. Enquanto atenta com a própria maquiagem, o olhar de Yennefer é constantemente desviado para a jovem feiticeira que se apronta com uma habilidade certamente nascida da convivência com o antigo Rei da Caçada Selvagem. A feiticeira de olhos violetas não consegue deixar de imaginar como Ileanna vivia na corte, se agia do modo esperado de uma cortesã ou se era mais rebelde, como Ciri. Algo diz a poderosa feiticeira que a primeira opção é a mais provável. Ileanna tem o jeito de uma pessoa acostumada com a corte, com uma posição de poder e respeito. O sorriso nos lábios de Yennefer aumenta levemente. A jovem feiticeira não irá encontrar nenhuma dificuldade em lidar com Emhyr.

Por alguns segundos, as írises violetas observam a feiticeira mais nova escovando o longo cabelo negro. Sem se dar muito tempo para pensar, Yennefer se aproxima e pega a escova da mão de Ileanna com um toque delicado e um baixo “Permita-me”. A feiticeira de olhos dourados não nega o pedido, permitindo que a mais velha arrume o cabelo como desejar. O mesmo carinho oferecido antes retorna para o toque que alinha os longos fios negros e faz com que Ileanna sinta uma calma e uma segurança encontradas antes somente na presença de um rei e daqueles que a tiraram das garras da Morte. No meio da tarefa, o olhar e o toque da feiticeira de olhos violetas caem para a cicatriz que marca o lado esquerdo do rosto da jovem feiticeira. Com as pontas dos dedos, Yennefer segue a linha que começa no meio da bochecha e desce até a metade do pescoço.

— Foi Eredin, certo? – a feiticeira questiona procurando pelo olhar dourado no reflexo do espelho e se recordando do que foi dito em Kaer Trolde.

— Sim. – Ileanna responde, sentindo o calor do toque que parece transformar a cicatriz em chamas – Em Tedd Deireadh.

Yennefer continua tocando a cicatriz no pescoço da filha, a lembrança de outra cicatriz deixada por Eredin despertando na mente. Apesar de toda dor causada pelo cavaleiro vermelho, Ileanna continuou em frente, mostrando uma força e uma determinação que, aos olhos violetas, a deixam ainda mais parecida com o pai. Os dedos da feiticeira mais velha se enrolam de modo distraído nos longos fios negros e Yennefer se pega sorrindo para a mais nova no espelho. Mesmo ainda não entendendo a familiaridade despertada pela mais velha, a feiticeira de olhos de witcher se permite retribuir o sorriso, a cabeça inclinando um pouco para trás, o suficiente para encostar no colo de Yennefer e encontrar as írises violetas. O toque da poderosa feiticeira muda para o rosto jovem e belo, o coração batendo com toda força, movido pela felicidade do reencontro.

— Devemos ir? – Ileanna questiona sem fazer nenhuma menção de se mover.

— Sim. – Yennefer responde se concentrando em manter a vontade de envolver a filha em um forte abraço saciada pelo suave carinho oferecido ao rosto que a observa com curiosidade e confiança.

Anos atrás

Através das altas e decoradas janelas, a luz da lua invade o corredor, se espalhando pelo chão até alcançar a pequena menina encolhida contra a parede, as pernas permanecendo abraçadas contra o corpo. Baixos soluços escapam por entre os lábios finos, acompanhando as lágrimas que escapam das írises douradas com pupilas verticais. Passos decididos ecoam no corredor, se aproximando da pequena, que se encolhe ainda mais diante da nova presença. Um imponente elfo se ajoelha em frente a menina, as írises aquamarines procurando pelo olhar que o observa com medo, mas sem a intenção de fugir. Um toque gentil afasta os fios negros de perto dos olhos dourados e seca as lágrimas derramadas.

— Sou Avallac’h. – o recém-chegado diz em um sussurro – Você não tem nada a temer.

A pequena respira fundo, os soluços silenciando lentamente. Por longos minutos, as írises douradas apenas observam o elfo, que aguarda com calma paciência. Os dedos do Aen Saevherne tocam o rosto marcado pelas lágrimas, sentindo a magia que pulsa adormecida sob a pele. No silencioso corredor, Avallac’h reflete sobre as possíveis consequências da decisão de Auberon de trazer o Truque do Destino para si. Com o poder guardado em Ileanna, os Aen Elle podem ter de volta a habilidade de navegar livremente entre os mundos e se proteger da ameaça natural que aguarda a todos no Caminho dos Mundos, mas para que tudo isso seja alcançado, a pequena menina deve ser conquistada, deve se tornar leal a eles. E olhando nas írises de um vatth’ger que Ileanna possui, o Sábio não sabe dizer se a força que espera para ser despertada na pequena pode ser controlada ou subjugada.

Um pouco hesitante, Ileanna assente, a respiração retornando ao ritmo normal e a postura relaxando levemente. Oferecendo um pequeno sorriso, o Aen Saevherne se coloca de pé e oferece a mão para a pequena menina. A oferta é aceita sem medo e Avallac’h ajuda a pequena a se levantar, os dedos do feiticeiro sendo rápidos em arrumar o cabelo negro e apagar as marcas deixadas pelas lágrimas no rosto que já não mostra mais sinais de medo, apenas uma intensa curiosidade dirigida ao poderoso elfo. Ainda segurando a mão de Ileanna, o Sábio começa a caminhar pelo corredor, os passos familiares com o caminho que leva para o salão do trono.

— Venha. – o elfo diz – O rei aguarda para conhecê-la.

Presente

Vizima

Foi estranho para o witcher retornar ao Poleiro do Corvo após a morte do Barão Sanguinário e tudo que a envolveu, mas ainda mais estranho foi ser cercado por guardas imperiais durante a cavalgada na estrada. Geralt logo percebeu que o mais sábio era seguir os guerreiros até Vizima, nada poderia ser ganho lutando contra a guarda de Emhyr no meio de lugar nenhum. Nada além de mais desprezo por parte do imperador, pelo menos. Segurando e equilibrando Uma na sela de Plotka, o Lobo Branco segue os guardas até a capital imperial, o silêncio pesando na comitiva, mas não parecendo incomodar a inquieta criatura nos braços do witcher.

Ao alcançar novamente a entrada do palácio de Vizima, Geralt é imediatamente recepcionado pelo familiar mordomo e levado até o imperador. As írises douradas observam os corredores belamente pintados e decorados, os cortesões quase se perdendo no quadro formado, quase como peças indispensáveis para a correta montagem da corte de um imperador tão poderoso quanto Emhyr var Emreis. O witcher não deixa que as observações o distraiam o suficiente para que perca Uma de vista. A pequena criatura permanece próxima ao Lobo Branco, os olhos brilhando com uma fascinada confusão. Por um momento, Geralt não consegue deixar de imaginar se Yennefer e Ileanna ainda estão no palácio ou se já partiram para Kaer Morhen.

Quando cruza a entrada do aposento imperial, o witcher encontra o imperador em uma reunião estratégica com Morvran Voorhis, que é logo encerrada, libertando a atenção de Emhyr para se focar completamente em Geralt e Uma. Contudo, antes que o imperador possa dizer qualquer coisa, o olhar dourado do Lobo Branco é atraído para as feiticeiras que chegam com passos silenciosos. O witcher não consegue impedir o sorriso que nasce nos lábios ao ver Ileanna seguir atrás de Yennefer, quase como uma sombra e um reflexo da feiticeira de olhos violetas. A semelhança entre as feiticeiras é clara como o dia, desde da beleza compartilhada até a firmeza dos passos e a altivez das posturas. Írises violetas não demoram para encontrar o olhar dourado, os lábios finos oferecendo um pequeno e rápido sorriso.

Após a partida de Voorhis e estando sob o duro olhar de Emhyr, Geralt faz uma desajeitada reverência ao imperador, Uma imitando o movimento de forma desengonçada e atraindo a atenção da feiticeira de olhos dourados. O inquieto olhar da pequena criatura encontra foco na jovem de írises douradas e algo no vago olhar de Uma faz com que um arrepio corra pelo corpo de Ileanna e desperte uma apreensiva sensação de familiaridade.

— Eu não o trouxe aqui para trocar cortesias. – Emhyr diz de modo severo – Reporte.

— Ciri... – Geralt começa respirando fundo para manter a compostura e não começar uma discussão com o imperador – Esse homem é a chave para encontrá-la. – o witcher indica a pequena criatura, novamente perdida em seu próprio mundo.

— Eu lhe dou três sólidas pistas, rastros tão frescos quanto o orvalho da manhã e o auxílio dos meus espiões e da minha feiticeira. – o tom de voz do imperador se torna cada vez mais duro – E ainda assim, ao invés da minha filha, você me traz essa... Monstruosidade. Eu espero que tenha mais a dizer, para o seu bem. – a ameaça é clara para os ouvidos do witcher.

— Escute, eu estou procurando por uma agulha no palheiro. – Geralt responde, perdendo a pouca paciência que possui para cortesias com a nobreza – Uma agulha que a qualquer momento...

— É uma tarefa difícil. – o soberano de Nilfgaard interrompe – E daí?

— Vossa Excelência. – Ileanna diz de modo suave, se aproximando do imperador. Sob o autoritário e questionador olhar de Emhyr, a jovem feiticeira faz uma rápida e elegante reverência – Sou Ileanna, conheci Cirilla durante o tempo que ela passou longe de casa. Por favor, nos permita dividir o que descobrimos.

Por um longo momento, o silêncio domina o aposento imperial, os olhos de Emhyr observando atentamente a jovem feiticeira. Mesmo com a força exibida nas írises castanhas do imperador, o olhar dourado de Ileanna não treme. A bela feiticeira permanece firme, um suave sorriso nos lábios vermelhos e a postura passando uma discreta imagem de submissão. Uma que Geralt sabe ser completamente falsa, mas que parece ser satisfatória para Emhyr. O witcher não consegue decidir o que o surpreende mais: a calma com que Ileanna se dirige ao imperador ou o fato de que a atitude da jovem feiticeira não desperta a ira do soberano. O Lobo Branco arrisca um rápido olhar para Yennefer, encontrando as írises violetas brilhantes com orgulho. Contentamento preenche o coração da poderosa feiticeira ao observar a peculiar cena, junto com a certeza de que estava certa e não havia o que temer acerca de qualquer dificuldade que Ileanna poderia ter para lidar com Emhyr.

— Então, sejam diretos e breves. – o imperador responde no mesmo tom de voz usado com Geralt.

— Obrigada, meu senhor. – Ileanna responde e oferece um discreto sorriso para o witcher.

Após assentir discretamente para a feiticeira mais nova, Geralt relata as descobertas feitas a partir das pistas oferecidas pelo imperador e o caminho traçado por Ciri ao fugir da Caçada Selvagem, terminando na aparição da pequena criatura ao lado do witcher. O relato, entretanto, não conquista a aprovação ou a simpatia de Emhyr, deixando a paciência do Lobo Branco perigosamente perto do final.

— Essa “monstruosidade” pode muito bem ser a sua filha. – Geralt diz, a raiva começando a transparecer na voz – Seu corpo é o produto de uma maldição. Alguém está escondido dentro dele.

— Você pode desfazer essa maldição? – o imperador questiona, o duro olhar se voltando para Yennefer.

— Eu fiz algumas pesquisas, mas para desfazê-la, eu teria que saber as palavras exatas que foram utilizadas para lançá-la. – a feiticeira de olhos violetas responde se aproximando – E isso...

“Va fail, elaine - caedʼmil, folie! Glaeddyv dorne aep tʼenaid, bunnʼdroh ithne iʼyachus”— o witcher recita para a surpresa de todos os presentes – Dandelion me contou. Ciri conversou com ele sobre uma maldição.

Distraídos com o feitiço dito, Geralt e Yennefer falham em notar o modo como o olhar dourado da feiticeira mais nova é dirigido para Uma, um brilho de compreensão nascendo nas írises de witcher. Adeus, beleza – olá, loucura. As palavras ecoam na mente de Ileanna com a cor da familiaridade, a maldição lançada sendo imediatamente reconhecida. Sendo Ciri ou não na pequena criatura, o objetivo de Eredin é claro para a jovem feiticeira: torturar com humilhação.

— Finalmente, você oferece uma agradável surpresa. – Emhyr diz – Senhora Yennefer, minha pergunta permanece.

— Sim, eu acredito que poderia, mas...

— Os detalhes não me interessam. – o imperador corta a resposta da feiticeira de modo brusco e seco.

A audiência é encerrada com uma última ameaça contra qualquer intenção de desobediência. O witcher respira fundo, segurando a língua para não enfrentar Emhyr com insultos que não levariam a nenhum lugar, mas o coração do Lobo Branco sabe o que deseja e não é retornar Ciri para o pai. Se a vontade de Geralt for a única a ser contada, Ciri permanecerá com ele e Yennefer. E Ileanna. O witcher não tem nenhuma intenção de se separar das filhas novamente. Em silêncio, o witcher segue as feiticeiras para o corredor que dá acesso ao aposento imperial, Uma seguindo com passos lentos e pouco graciosos.

— Então, como iremos desfazer a maldição de Uma? – Geralt questiona procurando afastar a mente de pensamentos sobre o imperador.

— Seguiremos com o que havíamos combinado. – Yennefer responde com simplicidade – O levaremos para Kaer Morhen. Eu tenho uma ideia, mas explicarei quando estivermos lá.

Enquanto o witcher e a feiticeira de olhos violetas conversam, a pequena criatura se aproxima de Ileanna, o brilhante e vago olhar parecendo procurar por algo na jovem feiticeira. Uma vez mais, a jovem de olhos dourados sente a agoniada familiaridade que Uma desperta, como se a feiticeira conhecesse quem se esconde debaixo do véu da maldição. Se abaixando diante da pequena criatura, Ileanna não consegue deixar de questionar se esse inquieto reconhecimento é uma indicação de que foi Ciri a vítima do feitiço lançado por Eredin ou se foi outra pessoa também conhecida. É então que a imagem de um feiticeiro elfo desperta na mente da jovem de olhos de witcher.

Avallac’h, é você? O pensamento acompanha o movimento da jovem feiticeira, que ergue a mão na direção de Uma, mas sem realmente tocar a pequena criatura. Ileanna pode sentir a energia, a magia, que emana da criatura amaldiçoada como ondas pulsantes, como um coração aprisionado. Mas a energia está distorcida, dobrada e redobrada em si mesma, se afastando de como é em seu verdadeiro estado e impedindo que seja verdadeiramente identificada. Só resta a sensação de familiaridade que arrepia a pele e acelera o coração. Não há como saber se Uma é Ciri ou Avallac’h ou até mesmo outra pessoa.

— Ileanna? – o chamado de Yennefer desperta a jovem feiticeira que, ao erguer o olhar dourado, encontra a feiticeira mais velha e o witcher a observando com curiosidade.

— Eu conheço a maldição. – Ileanna responde se colocando de pé – É antiga e poderosa. Eu pensei que poderia identificar quem está dentro dele, mas... – as írises douradas caem para a pequena criatura que ainda se encontra completamente focada na jovem feiticeira – É impossível. A maldição deixou a energia original irreconhecível.

— Nós desfaremos a maldição em Kaer Morhen. – Yennefer diz, sorrindo para a feiticeira mais nova e percebendo o curioso e questionador olhar que nasce nos olhos do witcher. Mesmo sem ler a mente de Geralt, a feiticeira de olhos violetas sabe que o Lobo Branco imagina quais serão os verdadeiros limites do poder de Ileanna. Sem dizer mais nada, Yennefer abre um portal para a fortaleza dos witchers, mas a ação arranca um baixo e temeroso gemido de Uma, que se encolhe em uma tentativa de ficar longe do portal.

— Acho que ele não gosta de portais. – Ileanna comenta observando o medo que parece dominar a pequena criatura.

— Eu não posso discordar dele. – Geralt diz voltando o olhar para Yennefer, que tenta não retribuir o sorriso que é oferecido pelo witcher – Vá com Ileanna pelo portal, eu levarei Uma com Plotka. – a feiticeira assente e, com um movimento da mão, chama a mais nova – E leve isso. – o witcher entrega o artefato achado com o Filho da Puta Jr.

— Tenha cuidado. – Yennefer pede se aproximando e tocando o rosto do witcher. A feiticeira mais nova apenas desvia o olhar em uma tentativa de oferecer privacidade – Vejo-o em Kaer Morhen.

— Vejo vocês lá. – Geralt responde e sorri para as feiticeiras que passam pelo portal. 

Anos atrás

Tir Ná Lia

Írises aquamarines observam os jovens feiticeiros que estudam os mapas silenciosamente no meio do salão de treino, a atenção sendo divida entre os alunos e o livro aberto sobre a mesa. Avallac’h percebe que uma conversa acontece entre os pupilos, palavras cuidadosamente sussurradas para permanecerem distantes do alcance do professor. E, embora a curiosidade inquiete a mente, o Aen Saevherne sabe que o melhor é não questionar ou tentar espionar, os alunos já se encontram familiarizados demais com os truques do poderoso feiticeiro. Além disso, uma atitude desse tipo somente despertaria a ira ou a desconfiança dos mais novos e Avallac’h não deseja perder o controle sobre os próprios pupilos.

— Diga-me, você acha que ele tem planos para nós? – o jovem elfo questiona sem levantar o olhar, o longo cabelo negro caindo parcialmente sobre o semblante pensativo.

— Quem é “ele”? – a jovem feiticeira questiona, as írises douradas se desviando do mapa e seguindo para a face do companheiro de treino.

— Avallac’h. – Caranthir responde, o olhar azul sendo dirigido para os olhos dourados de witcher – Você realmente acredita que ele não tem nenhuma intenção de usar nossos poderes para o próprio benefício?

Por longos segundos, os jovens feiticeiros ficam apenas se observando. O brilho de puro poder manchado com raiva nas írises azuis faz com um profundo e discreto suspiro escape por entre os lábios de Ileanna. Quanto mais o treino deles se aproxima do final, mais Caranthir mostra sinais de desconfiança e receio com relação a Avallac’h e o futuro na Caçada Selvagem. A origem do jovem feiticeiro parece estar corrompendo-o cada dia mais, o empurrando para uma busca por um objetivo que se encontre fora da influência do Aen Saevherne.

— Quais planos ele poderia ter? – a feiticeira de olhos dourados questiona, tentando manter a própria desconfiança sobre Avallac’h escondida.

— Nós somos diferentes, Rosa. – o jovem elfo responde, enfatizando o título da companheira – Você é um truque do destino, algo que acontece uma vez em cada século, quando acontece. Você nem ao menos nasceu aqui. E eu... – Caranthir faz uma pausa, parecendo engolir um nó garganta – Eu sou o resultado de estudo e pesquisa, fui construído, feito. Ele não me criou, ele me moldou. E ele molda você, segundo o que ele diz, de acordo com a vontade do rei. Mas o que garante que a vontade dele não está envolvida também? O que garante que Avallac’h não está construindo nós dois para realizar algum desejo dele?

As írises azuis são abaixadas para o mapa, o feiticeiro não esperando por uma resposta. Por um longo momento, os olhos dourados permanecem observando a face do jovem elfo, notando a tensão sob a pele. O coração da feiticeira com olhos de witcher bate rapidamente no peito, alimentado pela própria desconfiança, pelas próprias observações acerca de Avallac’h, e a mente não consegue deixar de imaginar se realmente poderia haver alguma verdade nas palavras de Caranthir.

Presente

 

Kaer Morhen

Uma onda de nostalgia envolve o coração do witcher quando os olhos dourados avistam a silhueta da antiga fortaleza. O interior das resistentes paredes foi o único lar conhecido e o retorno não deixa de parecer, para Geralt, com uma volta para casa. Um jovem tordo faz um voo baixo, assustando Plotka e Uma, que se acalmam sob o efeito de um rapidamente executado Axii. O rápido encontro leva os pensamentos do witcher para Eskel, o amigo tendo como passatempo a caça a esses draconídeos. A lembrança de Eskel leva a mente para as lembranças de Lambert e Vesemir. E Yennefer e Ileanna. Durante o restante da cavalgada até Kaer Morhen, uma dúvida nasce na mente do Lobo Branco, como um eco das recordações despertadas. Qual terá sido a reação dos outros witchers ao reencontrarem Ileanna?

Entretanto, Geralt não tem muito tempo para se dedicar a esse questionamento. Quando os portões da fortaleza são alcançados, uma familiar figura se aproxima para recepcionar o witcher, um pequeno sorriso no rosto marcado pelas rugas do tempo. Geralt desmonta de Plotka, tomando cuidado para que Uma não caia da sela, o toque firme do Lobo Branco o ajudando a sair da montaria e alcançar o chão com segurança. Todo movimento é acompanhado pelo olhar atento do witcher mais velho, que não consegue evitar que um suspiro escape por entre os lábios ao ver a pequena criatura.

— Vejo que Yennefer não exagerou quando disse que ele era feio. – Vesemir comenta se ajoelhando diante de Uma e examinando as marcas exibidas pelo pequeno corpo – Pelo o que eu posso observar, ele realmente foi vítima de uma maldição. – as palavras do witcher parecem não registrar na mente de Uma, que apenas gira no mesmo lugar, repetindo o que se tornou seu nome de modo quase incessante.

— Como Yen está? – Geralt questiona observando o mentor se colocar de pé.

— Como uma imparável força da natureza. – Vesemir responde começando a caminhar para o interior da fortaleza e sendo acompanhado pelo witcher mais novo e Uma – Ela mal pisou em Kaer Morhen e já foi distribuindo ordens e tarefas. Não disse nem ao menos um “Olá, é bom ver vocês”.

— Essa é a Yen. – o Lobo Branco diz com um pequeno sorriso nos lábios.

— Sim. – Vesemir concorda de modo distraído, os olhos dourados se voltando para o antigo pupilo – Mas devo admitir que o que mais nos surpreendeu foi a companhia com que Yennefer chegou. – ante o comentário do mais velho, Geralt para a caminhada, o olhar sendo abaixado com um leve embaraço – Uma jovem feiticeira chamada Ileanna que tem os olhos de um witcher.

— Vesemir... – Geralt tenta começar com um pesado suspiro, mas é logo interrompido pelo mais velho.

— Não se preocupe, Lobo. – o mestre dos witchers diz com um eco de divertimento na voz – Yennefer tirou um tempo para nos explicar isso, pelo menos.

— Ileanna não se lembra de nada. – o witcher mais novo comenta voltando a andar, o tom de voz baixo e pesado – Ela não tem nenhuma lembrança da vida que tinha antes da Caçada Selvagem levá-la.

— Yennefer nos contou. – Vesemir diz e alguns segundos se passam em silêncio antes que o veterano witcher volte a falar – Ela cresceu, Lobo. Ela se tornou muito parecida com você.

— É mesmo? – Geralt questiona com a energia retornando à voz – Para mim, ela está muito parecida com a Yen.

— Na aparência, talvez. – as írises douradas do witcher procuram pelos olhos do aluno – Mas na personalidade, ela é mais você.

Geralt não consegue evitar que um sorriso pintado com orgulho nasça nos lábios com o comentário de Vesemir, o coração se enchendo com a satisfação de saber que uma parte de si mesmo foi herdada pela filha. Olhando no perfil do velho mentor, cuja atenção retornou para o caminho a ser seguido para o interior da fortaleza, o Lobo Branco se recorda de um comentário feito sob uma árvore em Kaer Trolde.

— O medalhão que você deu para ela... – o witcher começa.

— Ela usa, eu vi. – Vesemir diz com rapidez sem olhar par ao mais novo.

— Ela não lembra como conseguiu, mas ela sabe que é importante. – Geralt termina sem se deixar abalar pela interrupção, conseguindo conquistar a atenção das írises douradas do veterano witcher.

— Isso... Me deixa satisfeito. – o velho witcher responde tentando se mostrar inabalado pelas palavras do aluno, mas o Lobo Branco nota o pequeno sorriso que nasce nos lábios de Vesemir, pintado com uma satisfação muito mais profunda do que as palavras foram permitidas mostrar.

— Ileanna está com Yen? – Geralt questiona voltando o olhar para as torres da fortaleza.

— Não, ela foi caçar um tordo com Eskel. – Vesemir responde, percebendo a surpresa que as palavras causam no witcher mais novo – Você tinha que ver a cara da Yennefer fez ao perceber que não podia dizer nada contra a decisão de Ileanna de aceitar o convite que Eskel fez – divertimento colore a voz do mestre dos witchers.

— Eskel convidou Ileanna para uma caçada? – a surpresa ainda colore a voz do witcher ao perguntar.

— Yennefer disse que precisa do fluído espinhal de um tordo para seja lá o que for que ela está planejando. Eskel já estava de saída para caçar alguns tordos, então ele ficou com a tarefa. – o mais velho responde abrindo as portas da fortaleza – Ileanna ficou curiosa com o que seria um tordo, então Eskel a convidou para ir junto. – Vesemir para no meio do salão, o olhar retornando para a face do antigo aluno e encontrando o discreto sorriso que parece não abandonar os lábios do mais novo – Ela é muito curiosa, Lobo.

— Com certeza, ela é. – outra voz diz capturando a atenção dos witchers, que então percebem a aproximação de Lambert – E eu estava certo, ela cresceu e se tornou uma cópia da mãe. – os lábios do witcher se esticam em um desafiante sorriso que é oferecido para o Lobo Branco.

Tir Ná Lia

Os últimos raios de sol mergulham o salão do Palácio do Despertar em uma dançante penumbra. Sombras bailam pelas paredes, escondendo e revelando quadros belamente pintados para os atentos olhos da cor do mel. Passos lentos guiam o vice-rei pela galeria de rostos familiares, os pensamentos viajando entre a tinta e a mensagem recentemente recebida. Com os braços cruzados nas costas, Ge’els deixa que o olhar pule de uma imagem para outra até um quadro que permanece quase completamente na escuridão. A tela, alta e larga, decorada com uma elegante moldura, mostra o rei sentado em seu trono, a altivez de Auberon reconhecível mesmo sob o toque das sombras. E, aos pés do soberano, uma jovem e bela feiticeira, ajoelhada com um rosa de gelo em uma das mãos, o rosto encostado nas pernas do rei e sob o suave toque dos dedos de Auberon. A Rosa e o Rei. Ge’els se lembra da noite em que o quadro foi pintado, sob a luz da lua e das velas.

O vice-rei dos Aen Elle também se recorda do dia em que o quadro seguinte foi criado. Ao lado da tela do rei e da feiticeira, em um ponto onde a luz da lua alcança com mais liberdade, está uma antiga pintura, mas ainda parecendo tão fresca quanto no dia em que foi pintada. As írises da cor de mel seguem as linhas que montam a imagem de Auberon de braços dados com Lara, a beleza da jovem princesa remetendo aos traços herdados por sua descendente. Por um momento, Ge’els deixa que o olhar caminhe entre Lara e Ileanna, as únicas feiticeiras, além de Shiadhal, a conquistarem um lugar ao lado de Auberon. Os olhos do vice-rei percebem como Lara permanece de pé ao lado do rei enquanto Ileanna foi pintada ajoelhada. A observação faz com que os pensamentos do poderoso elfo sejam levados para a jovem que Eredin persegue, a mente imaginando se os caminhos de Ileanna e Cirilla já voltaram a se cruzar.

Se Lara estivesse viva quando o Truque do Destino foi trazido para Tir Ná Lia, Ileanna acabaria se ajoelhando para a filha de Auberon, Ge’els tem certeza disso. Então, se a Rosa voltar a encontrar a Andorinha, se ajoelhará também? Um pequeno sorriso curva os lábios do vice-rei, a mente despertando as memórias das duas jovens juntas nos jardins do Palácio da Lua. Ileanna era quem liderava com relação a Zireael. Era a Rosa quem mostrava e ensinava, quem fazia os olhos verdes como esmeraldas queimarem com ciúmes e inveja. Ileanna guiava e Cirilla seguia, o coração da Andorinha desejando desesperadamente ser capaz de alcançar a Rosa de Auberon. Os olhos da cor do mel se fixam na imagem da princesa ao lado do pai, dois dos mais poderosos Aen Saevherne entre os Aen Elle. E mesmo que o sangue reivindique o título de Senhora do Tempo e do Espaço para Cirilla, a Andorinha ainda tem muito a aprender antes alcançar o nível de Lara. E até mesmo o de Ileanna.

Então, quando a encontrar, Ileanna continuará a guiar a Andorinha. O pensamento é como a última peça a completar o plano do vice-rei, o ressurgimento da jovem feiticeira tendo agitado antigas desconfianças, há muito enterradas. E uma profunda curiosidade acerca das intenções da Rosa. Vridhiel a encontrou na companhia dos pais biológicos, então um encontro com a Andorinha é apenas uma questão de tempo. Mesmo se Eredin a encontrar primeiro, Ileanna não negará ajuda para recuperar Cirilla. E quando elas se encontrarem uma vez mais, a visão de Auberon irá se realizar? Ge’els não consegue deixar de se perguntar se a Rosa e a Andorinha serão realmente capazes de quebrar todas as barreiras e incendiar o Caminho dos Mundos. O som da porta do salão sendo aberta retira o vice-rei dos próprios pensamentos, mas não é o suficiente para afastar o olhar de mel dos quadros pendurados.

— Meu senhor. – o jovem soldado diz se ajoelhando a alguns passos de distância da porta.

— Vridhiel. – Ge’els cumprimenta sem se virar para o cavaleiro vermelho – Eu tenho uma missão para você.

— Eu estou às suas ordens, meu senhor. – o capitão responde sem hesitação.

— Quero que vá para o mundo dos Aen Seidhe. – o vice-rei diz em um autoritário tom de voz, se voltando para o rapaz ajoelhado – Leve apenas o navegador necessário para que faça a viagem e permaneçam escondidos de Eredin.

— Iremos procurar pela Andorinha, meu senhor? – Vridhiel questiona sem levantar o olhar, escondendo a curiosidade presente nos olhos verdes.

— Não. Quero que encontrem Ileanna. – as palavras de Ge’els apenas aumentam a curiosidade e inquietam o coração do cavaleiro vermelho – Se o caminho dela cruzar com o de Cirilla ou qualquer outro, quero que reporte para mim.— o tom de voz do vice-rei não deixa espaço para mais questionamentos.

— Como ordenar, meu senhor. – o soldado responde, inclinando ainda mais a cabeça em respeito.

— Parta imediatamente. – Ge’els ordena por fim, o olhar de mel observando o jovem capitão se levantar e se retirar do salão.

Não demora para que as írises do vice-rei retornem para os quadros tocados pela luz e pelas sombras, a mente navegando pelas memórias de uma morte repentina e da ascensão de um rei que governa uma Caçada mais do que a um reino.

Kaer Morhen

Após conversar com Vesemir e Lambert, o witcher segue caminho para a torre que Yennefer tomou para si. A caminhada pelo interior da fortaleza é como seguir uma trilha de lembranças para Geralt. Já faz um tempo desde que o Lobo Branco pisou no interior de Kaer Morhen, a última vez sendo o ataque da Salamandra, logo após o witcher acordar perdido na floresta nos arredores da fortaleza. Ainda assim, o caminho do witcher até os aposentos de Yennefer é confiante e certeiro, cada passo sendo dado com calma e despreocupação. Na escadaria que oferece acesso à torre, entretanto, Geralt ouve a voz da feiticeira seguida por um crise de tosse e adjetivos nada elogiosos para um cristal.

Com a curiosidade despertada, o Lobo Branco ultrapassa os últimos degraus e encontra Yennefer afastando a fumaça de perto do megascópio com um movimento da mão. A raiva que ecoa na voz da poderosa feiticeira deixa claro os sentimentos sentidos com relação ao cristal recém-explodido. Deixando que um sorriso nasça nos lábios finos, Geralt se aproxima do local onde o megascópio foi colocado, a aproximação do witcher não atraindo nenhuma reação por parte da feiticeira de olhos violetas.

— O que o cristal fez de errado para despertar a sua ira? – Geralt questiona com o divertimento claro na voz e arrancando um suspiro exasperado dos lábios de Yennefer.

— Não estou no humor para brincadeiras, Geralt. – Yennefer responde se virando para o witcher, as írises violetas flamejando em raiva – Esse maldito cristal se recusa a funcionar! – o olhar fulminante da feiticeira é dirigido para o megascópio.

— Você tem certeza de que o cristal é o único motivo para a sua raiva? – o Lobo Branco pergunta no mesmo tom de voz, se aproximando ainda mais de Yennefer.

— O que isso deveria significar? – as chamas nas írises violetas são novamente dirigidas para os olhos dourados do witcher, encontrando no conhecido olhar a resposta para a questão feita – Não me incomoda que Ileanna tenha ido caçar com Eskel.

— Tem certeza? – Geral questiona cruzando os braços sobre o peito, uma sobrancelha branca arqueando em descrença – Pelo que eu me lembro, você nunca gostou de deixar Ileanna fora da sua visão, ainda mais com um witcher que poderia ceder ao desejo dela de aprender a usar uma espada... – a cada palavra dita, o sorriso nos lábios do witcher aumenta e o tom de divertida provocação se torna mais intenso.

— Ela já sabe como usar uma espada. – Yennefer responde de modo exasperado, o olhar se voltando para o megascópio e o cabelo negro caindo sobre o belo perfil, mas ainda incapaz de esconder o sorriso que treme os lábios finos.

Sorrindo de modo mais suave, Geralt se aproxima ainda mais da feiticeira, os dedos enluvados afastando os ondulados fios negros do rosto belo. A feiticeira segue o movimento, os olhos sendo erguidos para a face do witcher, as chamas nas írises violetas se transformando em um fogo mais brando, os lábios finos se permitindo sorrir de modo suave e caloroso. Sem pensar, Yennefer inclina o pescoço na direção do toque e dá um passo para o frente, o corpo encostando ao do Lobo Branco, que não demora para envolver a cintura fina com o braço livre. Os braços da feiticeira retribuem o abraço rodeando a cintura do witcher, oferecendo um apoio para que Yennefer possa encostar o rosto no peito coberto pela armadura. Por longos segundos, o casal permanece em silêncio, aproveitando a presença e o calor um do outro.

— Nós não tivemos a oportunidade de conversar sobre Ileanna. – Geralt diz em um sussurro sem quebrar o abraço – Sobre o que ela nos contou em Kaer Trolde.

— Eu quero ainda mais arrancar o coração de Eredin. – a feiticeira responde arrancando uma fraca risada dos lábios do witcher.

— Eu também, mas...

— Eu sei que ela não contou tudo, Geralt. – Yennefer diz levantando o rosto, as íris violetas procurando pelos olhos dourados – Mas ela contou o suficiente. Eu tenho paciência para esperar ate que ela queira contar mais.

O witcher assente, concordando com as palavras da feiticeira e compartilhando da ausência de vontade de forçar Ileanna a compartilhar qualquer coisa que não esteja confortável ou pronta para dizer. Os dedos enluvados seguem os contornos da face bela, o coração acelerando no peito, ansioso com a pergunta que surge na mente.

— Ela te contou mais alguma coisa em Vizima? – o Lobo Branco questiona em um tom de voz um pouco acima de um sussurro.

— Não. – Yennefer responde se desvencilhando do abraço – Mas acho que ela reconheceu minha estrela. – os dedos da feiticeira tocam o pingente que repousa no pescoço, a mente recordando do toque curioso da filha enquanto o sono ainda pesava nos olhos dourados – Eu acho... – as írises violetas encontram o curioso olhar do witcher – Eu acho que Ileanna se lembra, Geralt. Inconscientemente.

— O que quer dizer? – Geralt questiona cruzando os braços sobre o peito e sentindo a inquietação começar a fazer o sangue coçar.

— Quero dizer que, mesmo sem ter consciência, Ileanna se lembra. – a feiticeira responde, o tom de voz se tornando mais forte e duro. Percebendo o choque nos olhos dourados, Yennefer respira fundo, a voz perdendo o contorno afiado – Em Vizima, ela teve um pesadelo. Pelo menos, pareceu um pesadelo. – uma sombra de incerteza nasce nas írises violetas – Quando ela acordou, o modo como ela me olhou... Era como se estivesse tentando se lembrar de mim. E o jeito como ela tocou minha estrela... – o olhar violeta se foca intensamente nos olhos do witcher – Eu realmente acredito que ela se lembra, Geralt. Ela apenas não sabe.

As palavras de Yennefer ecoam na mente do Lobo Branco, quebrando o ritmo com o que o inquieto coração bate no peito protegido pela armadura. A perspectiva de que Ileanna possa se lembrar é o suficiente para desfazer a calma que tomou conta do witcher com a chegada a Kaer Morhen. Nos olhos violetas, Geralt vê uma sincera crença manchada com as sombras do medo. Medo de que Ileanna nunca se recorde, mas também das consequências – do que a jovem feiticeira pode sentir e pensar — ao se lembrar.

— E o que nós fazemos, então? – o witcher questiona com a voz colorida com a ansiedade sentida pelo coração.

— Nós deixamos que ela se lembre. – a feiticeira responde com simplicidade.

Tir Ná Lia

As írises verdes observam enquanto Faolin termina de arrumar o próprio cavalo, as mãos do navegador são rápidas e habilidosas ao preparar a montaria, o cajado já firmemente preso nas costas. A atenção do jovem capitão se volta para o próprio cavalo, a negra égua relinchando brevemente, como se percebesse a inquietação que domina o coração do cavaleiro. A ordem dada pelo vice-rei ecoa na mente de Vridhiel sem pausa ou descanso, entrelaçada a dúvida acerca dos objetivos que Ge’els possa querer atingir ao buscar a Rosa de Auberon. O soldado acaricia a crina da montaria de modo distraído. Não há nenhum desejo no coração de entregar Ileanna para uma punição ou qualquer outra situação que a possa ferir. A lealdade no cavaleiro vermelho não permitiria. E muito menos o carinho mantido em segredo no coração de Vridhiel.

Respirando fundo para estabilizar os próprios pensamentos, o capitão monta na negra égua, o verde olhar procurando e encontrando Faolin já sobre o negro cavalo. Assentindo para o navegador, Vridhiel começa a cavalgada para fora dos limites da cidade, o pulo entre mundos somente acontecendo na neutra área que divide o território dos Aen Elle daquele dominado pelos unicórnios. A fria brisa noturna é incapaz de acalmar o fogo que consome o sangue do jovem capitão ou estabilizar os batimentos do inquieto coração. Os cavaleiros vermelhos passam pelas ruas e cruzam as pontes de Tir Ná Lia com rapidez e destreza, as negras montarias passando como sombras sob a luz da lua, longe de testemunhas e do conhecimento do próprio rei.

Os soldados param poucos quilômetros dentro da área neutra, lado a lado. Vridhiel pode sentir o peso do azul olhar sobre si, queimando com o calor da curiosidade. Entretanto, nenhuma palavra deixa os lábios do navegador. Faolin aguarda quieta e pacientemente, o cajado na mão esquerda, pronto para abrir o caminho para o mundo dos Aen Seidhe. As írises verdes do capitão procuram os olhos do subordinado, encontrando prontidão em meio a curiosidade. Vridhiel sabe que Faolin também não acredita na traição da Rosa, nenhum dos soldados que serviam sob o comando de Ileanna – e agora de Vridhiel – acreditam. Mas por lealdade ao trono, eles permaneceram em silêncio. Talvez, apenas talvez, a ordem do vice-rei possa oferecer uma oportunidade de ajudar aquela que um dia os comandou.

— Posso confiar na sua discrição nessa missão, Faolin? – o jovem capitão questiona com seriedade.

— É claro, senhor. – o navegador responde sem hesitação, o braço direito sendo colocado sobre o peito e o rosto abaixando levemente, fazendo com que os fios dourados caiam sobre o rosto jovem.

— Então, abra o portal para o mundo dos Aen Seidhe. – Vridhiel ordena, colocando a máscara de caveira sobre o rosto – Para o último lugar em que estivemos.

O movimento é copiado pelo navegador, que usa a mão direita para esconder a face sob a máscara. Com a esquerda, Faolin ergue o cajado, o cristal na ponta brilhando intensamente com uma luz azulada. Logo, um portal é aberto sob a luz da lua, sendo prontamente cruzado pelos dois soldados. Durante o pulo entre os mundos, há apenas uma imagem na mente do jovem capitão: a de uma rosa de gelo.

Kaer Morhen

Após a conversa com Yennefer, Geralt deixa a fortaleza em busca de Eskel e Ileanna. Com a mente ainda fervendo com a hipótese levantada pela feiticeira, o Lobo Branco respira fundo ao sentir a gentil brisa que sopra entre as montanhas e deixa que o trabalho de rastrear o amigo e a filha afastem os inquietos pensamentos. Ainda assim, o witcher não consegue apagar a imagem de rara insegurança mostrada pelos olhos violetas. Tudo que é relacionado a Ileanna sempre afetou a poderosa feiticeira mais intensamente do que qualquer outra coisa, mas Geralt não pode deixar de compartilhar o medo sentido por Yennefer, a imprevisibilidade da reação da jovem feiticeira sobre a verdade, sobre o passado esquecido, tendo o poder de desestabilizar até mesmo o coração de um bem treinado witcher.

Geralt segue os rastros de Eskel e Ileanna até uma área afastada da fortaleza, encontrando Escorpião, o cavalo do amigo, acompanhado por uma negra égua e pelos restos de um acampamento. Procurando por uma nova trilha para seguir, o witcher encontra pegadas humanas misturadas com as de uma cabra. A nova descoberta faz com que um pequeno sorriso nasça nos lábios do Lobo Branco. Parece que Eskel trouxe uma isca para o tordo. O pensamento segue a caminhada de Geralt pela mesma trilha marcada pelas pegadas. Um pequeno desvio para capturar uma amostra do cheiro da cabra quando o rastro para em algumas rochas e logo o witcher se encontra seguindo novas pegadas que o levam diretamente a uma cabra amarrada em uma estaca.

— Não acho que tenha se amarrado sozinha. – Geralt comenta se abaixando ao lado do animal.

— Você viu, Ileanna? – uma voz familiar diz com claro divertimento – Parece que essa isca funciona com witchers também.

O Lobo Branco se vira na direção da voz, encontrando Eskel e Ileanna escondidos atrás de algumas árvores baixas, um sorriso brincando nos lábios de ambos. Deixando que um sorriso próprio apareça, Geralt caminha até o amigo e a filha, Eskel não perdendo tempo em provocar o velho amigo. Os olhos dourados do Lobo procuram as írises de mesma cor da jovem feiticeira, que assente em reconhecimento e cumprimento.

— Yen tem mantido vocês ocupados? – Geralt questiona.

— Dei sorte, eu acho. – Eskel responde dando de ombros – Ela me deu uma tarefa que eu já planejava fazer de qualquer jeito. – percebendo como a atenção do amigo parece deslizar para a jovem feiticeira que o acompanha, o witcher completa – E Ileanna estava curiosa em descobrir o que é um tordo, então eu achei que ela poderia vir comigo.

— Seu mundo tem criaturas muito estranhas. – a feiticeira de olhos dourados comenta, o sorriso ainda esticando os lábios vermelhos.

Uma baixa e breve risada escapa por entre os lábios de Geralt diante das palavras de Ileanna. Contudo, o witcher não pode negar a satisfação que acalma e aquece o coração ao ver a filha se divertir com o trabalho de um caçador de monstros. Olhando nos olhos do amigo, o Lobo Branco encontra o conhecimento sobre quem Ileanna é, mas também a silenciosa garantia de que nada foi dito. Geralt assente em agradecimento, recebendo o mesmo movimento em resposta. Nesse momento, um familiar som viaja pelo ar e a sombra que se revela na grama denuncia a chegada do tordo.

O draconídeo aterrissa próximo a cabra, pronto para atacar, mas um Aard de Geralt o afasta do animal e desvia a atenção do tordo para os witchers e a feiticeira. Três espadas de prata são sacadas ao mesmo tempo, o trio se movimentando de modo a circular o draconídeo. Quando o tordo avança na direção de Geralt, Eskel aproveita para atacar atrás da asa, o afiado ataque da lâmina arrancando um forte rugido do monstro. Focando a própria magia na espada e fazendo as runas brilharem com uma luz azulada, Ileanna movimenta a lâmina de baixo para cima, soltando uma onda de energia que atinge a cauda do tordo, cortando através das escamas e indo fundo na carne. A resposta do tordo é imediata, o draconídeo não perdendo tempo em avançar na direção da feiticeira. Os witchers seguem, usando os sinais para tentar parar o tordo, mas em um segundo Ileanna some da linha de visão do draconídeo, reaparecendo entre Geralt e Eskel.

Por um momento, Eskel olha do amigo para a feiticeira, uma clara pergunta nos olhos dourados. Entretanto, o tordo não permite que uma conversa começa e avança novamente. Os witchers e a feiticeira desviam com rapidez e o draconídeo alça voo. Atentos ao preparo para aterrissar do tordo, Geralt e Eskel se posicionam de modo a ficarem a próximos às asas do draconídeo e Ileanna se coloca próxima ao witcher de cabelos brancos. Quando o tordo mergulha, os três atacam de uma vez. As lâminas dos witchers cortam sob as asas do draconídeo e a de Ileanna rasga através das escamas do pescoço. Desviando com rapidez, os três evitam ser atingidos quando o tordo cai morrendo sobre a grama. O silêncio permanece por alguns segundos, enquanto três pares de olhos dourados se certificam de que o draconídeo está morto.

— Bem, vamos coletar o fluído espinhal e voltar. – Eskel diz e Geralt assente, concordando.

— Yen mencionou para que ela precisa disso? – o Lobo Branco questiona enquanto o amigo se ocupa em cortar abaixo do crânio do tordo e coletar o fluído da espinha.

— Quer dizer que você não sabe? – o outro witcher rebate.

— Não. – Geralt responde, o olhar dourado sendo dirigido para a jovem feiticeira com uma muda pergunta.

— Eu também não sei. – Ileanna diz.

Um suspiro escapa por entre os lábios do witcher, a mente imaginando o que Yennefer pode estar planejando. Geralt sabe melhor do que pergunta, a ausência de uma resposta por parte da feiticeira sendo uma certeza na mente do Lobo Branco. Voltando a atenção para o presente, Geralt observa enquanto Ileanna se aproxima de Eskel para ver como o fluído espinhal é recolhido. O witcher se recorda da observação de Vesemir sobre a curiosidade da jovem feiticeira e não consegue evitar de concordar. Não apenas pelo que acontece agora, mas também pelas perguntas feitas em Kaer Trolde. Consciente ou não, Ileanna parece se sentir confortável entre witchers. Essa observação traz as palavras de Yennefer de volta para a mente do witcher. Talvez – apenas talvez— Yennefer possa estar certa e Ileanna se lembre de tudo sem ao menos saber.

— O que achou? – o Lobo Branco pergunta, o olhar dourado observando a jovem feiticeira se afastar do tordo com Eskel.

— Foi divertido. – Ileanna responde com um sorriso nos lábios vermelhos – Diferente das lutas com que estou acostumada.

— Você daria uma boa witcher. – Eskel comenta, mas as írises douradas se focam no amigo e não na feiticeira, um sorriso cheio de provocação nos lábios.

Ileanna ri do comentário e Geralt decide responder da mesma maneira. Com suaves sorrisos nos lábios, os witchers e a jovem feiticeira seguem o caminho de volta para Kaer Morhen.

Anos atrás

Tir Ná Lia

A luz das velas dança pela sala de jantar, o silêncio pesando no ar. Sozinhos e longe do olhar do antigo professor, os jovens feiticeiros trocam rápidos olhares, as mentes imaginando e questionando, mas não conseguindo transformar os pensamentos em palavras que as vozes possam pronunciar. Írises douradas se voltam para as altas janelas que oferecem uma vista para a cidade, adormecida sob o toque da lua cheia, e dedos longos brincam com a taça de vinho. Atentos olhos azuis acompanham o movimento, as írises claras observando o perfil da feiticeira que senta na ponta oposta da mesa. Anos se passaram desde o término do treinamento, mas Ileanna permanece um enigma para Caranthir. A única certeza que o navegador tem sobre a feiticeira é a lealdade da Rosa para com o rei. O jovem elfo sabe que Ileanna não se ajoelhará para ninguém além de Auberon. Nem mesmo para Avallac’h.

— Como ela é? – o feiticeiro questiona, a voz suave ecoando no silêncio quebrado.

— Ela quem? – a dona dos olhos dourados rebate, as írises se voltando para o companheiro.

Zireael. – Caranthir responde, um provocativo sorriso esticando os lábios finos – Parece que vocês duas têm passado muito tempo juntas.

— Ela é... Rebelde. – Ileanna diz retribuindo o sorriso com a mesma dose de provocação – Impulsiva, impetuosa, um tanto quanto imatura. Mas também talentosa, ela tem potencial. – a jovem feiticeira toma um gole da taça de vinho, o olhar dourado observando a reação do companheiro. O sorriso vermelho aumenta com a baixa risada que deixa os lábios de Caranthir.

— Isso explica por que Avallac’h parece tão interessado nela. – o cavaleiro vermelho comenta.

— O poder de Zireael não é exatamente o que interessa a Avallac’h. – a navegadora diz conseguindo um olhar descrente como resposta – É a lembrança de Lara.

— Oh. – o feiticeiro responde, um brilho de compreensão nascendo nas írises azuis – Então é sobre isso. – uma baixa risada escapa por entre os lábios do navegador – Mesmo após todo esse tempo... Avallac’h ainda não esqueceu Lara.

— Nem a perdoou. – Ileanna completa – Ou ao mundo que ele acredita que a roubou.

— Então, para nosso querido mestre... – as palavras de Caranthir são coloridas com ironia, a última ganhando uma adição de ressentimento – Zireael é a preservação da memória de Lara?

— Sim. – a feiticeira de olhos dourados concorda – É o que eu observo. O poder em Zireael... É o último fragmento do sangue de Lara que restou em todos os mundos. Uma última lembrança.

— Que obsessão. – Caranthir diz de modo desdenhoso, os dedos levando a taça de vinho aos lábios.

Que obsessão, realmente. O pensamento acompanha as írises douradas que observam o companheiro, deixando que o silêncio volte a dominar o aposento. Por um momento, a jovem feiticeira permite que os pensamentos se voltem para a Andorinha, a mente não deixando de indagar se Zireael percebe que a ajuda de Avallac’h não vem sem preço ou interesse, que há um intento em cada ação feita pelo Aen Saevherne. Uma intenção cujo objetivo é preservar alguém há muito tempo perdido.

Presente

Kaer Morhen

A lua cheia derrama um suave brilho sobre um dos quartos da fortaleza, onde poucas velas ainda permanecem acesas iluminando o livro que se encontra aberto sobre as pernas de uma jovem feiticeira. Horas se passaram desde que Vesemir partiu com Uma e as vozes dos witchers pararam de ecoar entre as paredes, mas o sono ainda parece evadir a jovem de olhos dourados. Até mesmo a leitura parece embaçar na mente, se desfazendo sob o peso da lembrança de um sonho. Sob a luz do dia, foi fácil evitar pensar e reconhecer as semelhanças entre Kaer Morhen e uma fortaleza coberta em neve, entre o salão bagunçado e aquele visto na companhia de um lobo. Escola do Lobo. Um pesado suspiro deixa os lábios vermelhos e as írises douradas tentam se focar no livro emprestado por Vesemir.

Vampiros superiores são a classe vampírica mais difícil de identificar devido a sua aparência humana, o que os presenteia com uma habilidade de se misturar entre os humanos com enorme facilidade. Até mesmo entre eles uma classificação se torna difícil, uma vez que há um espectro de poderes que os vampiros superiores podem manifestar e muitas vezes essas habilidades não são compartilhadas entre dois exemplares dessas criaturas.

Por mais que a mente tente se concentrar, as palavras se entrelaçam na página, o significado sendo registrado com dificuldade. O silêncio da noite parece ser apenas um convite para os ecos do sonho, para os sussurros que usam o vento para falarem. O coração bate forte no peito da jovem feiticeira, seguindo os passos da consciência na fuga da familiaridade despertada com as imagens vistas. Um medalhão na forma da cabeça de um lobo e um pingente no formato de uma estrela. Cabelos brancos e uma voz... Uma voz encontrada no mundo desperto, dona de um toque quente que passa tranquilidade e segurança. Geralt. Yennefer. Ileanna balança a cabeça tentando afastar os fantasmas do sonho, o cabelo negro caindo sobre os olhos dourados e dificultando ainda mais a leitura.

Até mesmo witchers podem encontrar dificuldade em discernir um vampiro superior de um humano comum, uma vez que os medalhões permanecem imóveis na presença dessas criaturas. E ao contrário de humanos – e witchers – vampiros superiores são imortais. O que significa que até mesmo o mais habilidoso e corajoso witcher deve pensar antes de aceitar um combate contra uma criatura dessa. Pois vampiros superiores são raros, mas ainda mais raros são aqueles que os enfrentaram e viveram para contar a história.

Pálpebras se fecham sobre írises douradas, abandonando as palavras escritas e caindo em uma armadilha inconsciente, pois, na escuridão, os fantasmas sussurram mais alto e as memórias arranham a consciência com mais insistência, trazendo consigo lembranças que não pertencem ao reino dos sonhos. Um sorriso oferecido sob uma árvore em Kaer Trolde, um toque gentil que desperta a mente e ajuda a arrumar o longo cabelo, uma risada após uma batalha contra um tordo. A sensação de familiaridade envolve o coração em um abraço que parece ser feito de ferro tamanha sua força e seu peso. E ainda parece que algo falta, uma última peça para formar o quebra-cabeça, para dar sentido ao sonho. Para explicar se o que a mente vê quando adormecida é realmente um sonho... Ou uma lembrança esquecida. As pálpebras se abrem para encontrarem a página molhada com as lágrimas derramadas sem consciência.

Um vampiro superior

As palavras molhadas fazem o coração doer e as mãos são rápidas em empurrar o livro para o chão, as lágrimas caindo livremente pelo rosto marcado pela confusão sentida. A feiticeira deixa o corpo cair sobre a cama, o choro tão silencioso quanto a noite. As írises douradas caem sobre o livro descartado, o desenho de um corvo levando a mente para a memória de um encontro em Skellige. E um belo corvo que não era nada além de um lembrete de uma vida pausada para que o passado pudesse ser finalizado, um novo começo oferecido pelas mesmas mãos que a tiraram do toque da Morte. Eu queria que estivesse aqui. O pensamento é alto e intenso na mente perdida. Queria que estivesse aqui para me ajudar a entender. A jovem feiticeira se encolhe sobre o lençol, as pálpebras se fechando mais uma vez.

Entretanto, dessa vez a mente viaja para um lugar conhecido. Escondido do mundo e protegido pela luz da lua, onde o silêncio era quebrado por histórias de aventuras e de encontros favorecidos por tropeços do destino. Onde o perfume de ervas era forte e os únicos sussurros eram aqueles que convidavam para dormir, para descansar e assim recuperar a força. Onde as estrelas brilhavam intensamente no céu noturno e faziam com que as lembranças da Tir Ná Lia não doessem tanto. Onde eles foram deixados, com as presenças tão cálidas e fortes, donas de uma segurança sentida novamente sob o toque de uma poderosa feiticeira. Quero vocês seguros, longe da Caçada. O pensamento acompanha a saudade que é como uma agulhada no coração. Longe de witchers.

Sob a lua cheia e as fracas chamas das velas, a jovem feiticeira adormece com a lembrança do crocitar de corvos como canção de ninar.

Anos atrás

Tir Ná Lia

Írises douradas procuram por um apoio no calmo olhar da cor de chumbo derretido, uma proteção contra o frio que penetra sob a pele e transforma o sangue em uma corrente de diminutos flocos de neve. Fragmentos de gelo nascem entre os dedos, estralando com uma vontade própria, uma força que ameaça submeter a mente aos próprios caprichos e desejos. Há sangue e gelo na língua, um gélido e metálico sabor que faz o coração acelerar, desesperado para escapar da tempestade. O frio continua a avançar, parecendo querer alcançar o centro do coração, o refúgio da alma. É um injusto duelo, uma batalha de força. Submeter e sucumbir. E, então, a vontade quebra, a ponte desaba, o gelo se desfaz e a jovem feiticeira cai de joelhos na grama do jardim.

— Quase, minha rosa. – Auberon diz em um tom de voz baixo e suave, as írises da cor de chumbo derretido observando a feiticeira que tenta recuperar o fôlego – Você está quase lá.

— Não tema. – as palavras de Avallac’h são mais firmes do que as do soberano – Esse poder é seu, é parte de você. Para controlá-lo, você deve aceitá-lo ao invés de temê-lo.

Ileanna apenas assente em silêncio, a respiração descompassada demais para permitir que a voz se manifeste. Respirando fundo, a jovem feiticeira se coloca de pé, a pura vontade forçando os músculos a não tremerem e sustentarem o corpo ereto. Procurando o sereno olhar do soberano, as írises douradas mostram a resolução que obriga o coração a recuperar a calma e a coragem. Há incentivo e certeza no claro olhar de Auberon, uma convicção que ancora o olhar dourado e permite que uma lenta expiração escape por entre os lábios da feiticeira, um convite para que o frio retorne. Dessa vez, o abraço do gelo é mais lento e calmo, mais como uma dança do que um combate e toda força que existe no coração está concentrada em não tentar escapar.

O olhar dourado não abandona as írises da cor de chumbo derretido, a serenidade nos olhos do soberano sendo como uma âncora em meio a um afogamento. Sob a vontade que se submete, o frio se espalha sem obstáculo, esfriando a pele e se entrelaçando aos músculos, levando a nevasca de volta para o sangue. A tempestade sussurra na mente, uma delicada brisa que pede por mais, por um controle que não é dado. Ao contrário, é tomado. Batendo com toda força, o coração se coloca contra o frio, uma vontade que coloca um limite, impõe a submissão que foi oferecida. A dança para e a luta é ameaçada, mas a vontade do coração prevalece. Sem fugas ou medo, apenas coragem e força. E o frio para, concorda, se submete. A nevasca se torna uma suave chuva de neve, o gélido abraço como um lençol sob a pele e os sussurros se calam. O limite foi alcançado e o frio cede seu poder, o gelo estralando entre os dedos para então explodir em um estouro de magia e frio que pinta o jardim com a neve.

Mais uma vez, a jovem feiticeira cai, mas dessa vez, mãos seguram o corpo enfraquecido antes que possa alcançar a grama congelada. Tremendo, Ileanna coloca as mãos sobre os braços de Avallac’h em uma valente tentativa de se manter de pé. Um toque quente é oferecido para o rosto gelado, atraindo as írises douradas de volta para o olhar da cor de chumbo derretido. Satisfação e orgulho brilham no sereno olhar do rei dos Aen Elle, os dedos acariciando a face da feiticeira de modo suave e quase distraído. Írises aquamarines observam em uma silenciosa cautela, a mente parcialmente concentrada em oferecer apoio para o corpo da aluna e impedi-la de desabar no chão.

— Um passo de cada vez, você está se aproximando da Geada Branca. – Auberon diz sem afastar o toque ou desviar o olhar – Um passo de cada vez, você está se tornando o farol para o frio que irá destruir todos os mundos. – um pequeno sorriso nasce nos lábios do soberano – Logo, minha rosa, você irá caminhar com a própria Geada e, então, nenhum portal permanecerá fechado para você.

Presente

Kaer Morhen

Na manhã seguinte, Geralt desperta com os fracos traços de ressaca ainda envolvendo os músculos duros sob a pele e a cama fria sem a presença de uma certa feiticeira. Respirando fundo, o witcher alonga os músculos enquanto deixa o colchão, os olhos procurando pela roupa e por algum traço do paradeiro de Yennefer. O objetivo da feiticeira permanece na mente do Lobo Branco misturado aos efeitos da última noite. É difícil acreditar que Yennefer tenha escolhido fazer o Teste das Ervas com Uma em ordem de desfazer a maldição, mas isso também explica o motivo por trás do silêncio da feiticeira. Nenhum witcher guarda boas lembranças do Teste e nenhum witcher escolheria realizá-lo novamente, se dada a escolha.

Pronto e arrumado, Geralt deixa o quarto e segue para o salão, encontrando não apenas Yennefer, mas todo mundo já desperto e esperando. Os olhos dourados percebem a fraca sombra que parece envolver as írises da feiticeira mais nova, denunciando uma noite mal dormida. Contudo, a preocupação não tem muito tempo para permanecer na mente do witcher, pois assim que a presença do Lobo Branco é percebida, a atmosfera no aposento muda, se tornando mais pesada e tensa. Geralt se aproxima do ponto onde todos estão reunidos, Uma já preso na cama usada para o Teste das Ervas, a imagem despertando antigas lembranças na mente do witcher, memórias que são melhores quando deixadas adormecidas e esquecidas no passado.

— Pensei que tivéssemos nos livrado dessa mesa há muito tempo. – Geralt comenta tentando afastar os pensamentos acerca do que aconteceu há quase um século atrás.

— Hm, deve fazer uns cinquenta anos desde a última vez que vi o Triste Albert. – Eskel responde usando o apelido dado para a mesa.

— Não pude me desfazer dela. Pensei que pudesse ter algum uso um dia. – Vesemir diz – Vocês sabem como os velhos são.

— Claro. – Lambert concorda com ironia – Todo vovô tem um sótão cheio de aparelhos de tortura.

— Senhores, por favor. – Yennefer pede tentando impedir que uma discussão se inicie entre os witchers – Nós podemos começar, mas primeiro temos que preparar as poções.

Ao comando da feiticeira de olhos violetas, Geralt se encaminha para preparar as poções enquanto Eskel se encarrega de desinfetar as ferramentas. Vesemir e Lambert permanecem com Yennefer ao lado de Uma enquanto Ileanna segue o Lobo Branco até a cozinha. A companhia é logo notada pelo witcher, que permanece em silêncio enquanto pega os ingredientes necessários. A jovem feiticeira se aproxima da mesa, os dedos tocando as ervas separadas de modo quase distraído e fazendo com que a preocupada curiosidade volte a queimar no peito de Geralt.

— Você está bem? – o witcher questiona, as írises douradas observando o jovem perfil sob a luz da manhã.

— Sim. – Ileanna responde, o olhar sendo dirigido para o mais velho – Mas tenho a sensação de que o que irá acontecer não será agradável. – as palavras da feiticeira arrancam uma fraca risada dos lábios do Lobo Branco.

— Você pode dizer isso. – Geralt concorda começando a preparar as poções necessárias – O Teste das Ervas não é fácil de assistir.

— O que é esse teste? – a jovem feiticeira questiona, os dedos brincando com as ervas ainda não usadas.

— É parte do processo que passamos para nos transformar em witchers. – um pesado e desconfortável suspiro escapa por entre os lábios de Geralt – É o que nos dá nossas mutações, nossas habilidades que nos diferenciam dos humanos. Mas também é muito perigoso, poucos sobrevivem.

— Você acha que Uma irá resistir? – Ileanna pergunta em um tom um pouco mais alto que um sussurro, quase como um pensamento que escapou para a voz.

— Eu confio na Yen. – o witcher diz sorrindo para a jovem feiticeira e mantendo os próprios receios guardados. Se for Ciri presa no corpo da pequena criatura, o Lobo Branco prefere não pensar nas consequências que o Teste das Ervas pode acarretar para a filha. Receber um sorriso como resposta da outra filha também ajuda a acalmar os temores no coração de Geralt, que percebe a familiaridade com que Ileanna separa os ingredientes para as poções – Você parece familiarizada com o preparo de poções. – o comentário é feito com uma ponta de provocação, o que aumenta o sorriso nos lábios vermelhos da feiticeira.

— Meu amigo, uma das pessoas que me salvou quando escapei de Eredin, conhece e mexe bastante com ervas. – Ileanna explica – Eu acabei aprendendo um pouco também.

— Você não fala muito sobre as pessoas que te ajudaram. – Geralt diz colocando a primeira poção terminada em um frasco.

— Eu prefiro que elas fiquem longe do que estou fazendo. – a feiticeira de olhos dourados responde, o olhar se voltando para as ervas na mesa. – Mandrágora. – Ileanna aponta – Tem várias utilidades, inclusive servindo para fazer destilados.

— É. – o witcher diz, uma memória despertando na mente. A lembrança de uma noite passada sob o efeito de licor de mandrágora na companhia de amigos e de um recém-conhecido que se tornou um valioso aliado e amigo— Eu tenho um amigo que faz uma bebida bem potente com mandrágora. Deixa a língua bem solta.

Ileanna ri da observação e Geralt a acompanha. Contudo, a mente da feiticeira se recorda de uma história contada sob o silêncio da noite, quando a fraqueza ainda pesava nos músculos da jovem feiticeira e nos olhos daquele que contava o conto. Uma história sobre um encontro inesperado com uma estranha companhia liderada por um witcher. A lembrança traz consigo o eco de um sonho, de dúvidas e incertezas que parecem apenas se fortalecer dentro das paredes de Kaer Morhen. Uma pergunta mantida presa na garganta em Vizima retorna, agora dirigida para o witcher. Eu conhecia você antes? Eu conhecia esse lugar? Mas assim como na capital, a questão permanece no silêncio, contida. No lugar dela, Ileanna ajuda Geralt a terminar as poções, o coração procurando um refúgio das incertezas na forte presença do Lobo Branco.

— Hora de voltar para os outros. – o witcher diz pegando os frascos das poções e vendo a feiticeira assentir em concordância.

Geralt e Ileanna retornam para o salão, encontrando Eskel também de volta e com as ferramentas já prontas e posicionadas. Enquanto Vesemir usa uma erva analgésica para ajudar Uma com o pior dos efeitos, o Lobo Branco coloca os frascos nos lugares corretos. Com a permissão de Yennefer, Eskel realiza as incisões e insere os tubos no corpo da pequena criatura. Quando Geralt abre a primeira válvula, Uma começa a gemer em clara agonia, o corpo diminuto se contorcendo contra as tiras de couro que o prendem na mesa. Ao abrir a segunda válvula, Geralt arrisca um rápido olhar para Ileanna, encontrando a jovem feiticeira com o semblante sério e concentrado, as linhas que unem as sobrancelhas deixando evidente a falta de prazer em ver Uma sofrendo. O mesmo pode ser dito sobre as faces de todos os presentes. Após a terceira e última válvula ser aberta, Yennefer realiza um rápido feitiço, ancorando Uma e o mantendo estável.

— E agora? – Geralt questiona.

— Agora, nós esperamos até que as poções façam efeito. – Vesemir explica – Pode levar um dia, pode levar mais.

— Vocês precisam apenas esperar, verdade. – Yennefer completa – Mas eu preciso manter o feitiço estabilizador. O corpo de Uma não é tão resistente quanto o de um jovem candidato a witcher.

— Você pode dividir o peso comigo. – Ileanna diz, o olhar dourado focado na feiticeira mais velha – Eu posso ajudar a mantê-lo estável, desse modo não ficará tão desgastante para você.

As palavras da mais nova fazem com que um suave sorriso nasça nos lábios de Yennefer, o coração se aquecendo com a consideração demonstrada. Contudo, a feiticeira de olhos violetas balança a cabeça em uma negativa, recusando a ajuda oferecida.

— Está tudo bem. – Yennefer responde – Eu posso aguentar. Obrigada, Ileanna.

A feiticeira com olhos de witcher assente, a atenção sendo desviada para Uma, que ainda treme e se contorce sobre a mesa, o nome sendo murmurado entre agudos gemidos de dor. As írises douradas de Geralt, entretanto, se mantêm focadas na face da feiticeira mais velha, a mente imaginando o motivo por trás da recusa. Ileanna já provou ser uma poderosa feiticeira, uma capaz de dividir o fardo do feitiço com Yennefer. É então que a verdade atinge o witcher com a intensidade da luz do sol. Yennefer não quer envolver a filha no processo mais do que o estritamente necessário, o que também pode ser aplicado para os witchers. A poderosa feiticeira de olhos violetas pegou a responsabilidade para si de desfazer a maldição. Um pequeno sorriso nasce nos lábios de Geralt com a teimosia de Yennefer.

Com o passar das horas, o lugar ocupado por cada um dos presentes muda. Lambert se afasta até a lareira, observando todo o processo com uma clara desaprovação no olhar. Eskel decide sentar em algumas caixas amontoadas e se mantém ocupado polindo e afiando a espada de prata. Vesemir também se afasta, mas apenas alguns passos, o atento e experiente olhar observando por qualquer reação fora do esperado. Geralt permanece junto a Yennefer, cada um em um lado da mesa. E Ileanna reflete a ideia de Eskel, sentando no chão próximo a mesa com a espada sobre o colo, as runas brilhando fracamente sob o suave toque que afia a lâmina.

— Yen, você está cochilando. – Geralt chama com suavidade depois que algumas horas já se passaram.

— Não. – a feiticeira responde lutando para manter os olhos abertos – Só estou... Descansando meus olhos.

— Sim, se chama cochilar. – o witcher responde ganhando um olhar fracamente irritado das írises violetas.

Olhando ao redor para tentar se manter desperta, Yennefer percebe que o restante dos witchers caíram no sono, apenas Geralt e Ileanna permanecem acordados. O olhar violeta se foca por um momento na jovem feiticeira sentada no chão, os dedos seguindo os contornos das runas gravadas na prata, fazendo com que a lâmina emita fracos pulsos de uma energia azulada. A feiticeira mais velha se recorda da luta contra os nevolosos em Ard Skellig e o brilho que parecia envolver a espada em cada golpe dado por Ileanna. É óbvio para Yennefer que o medalhão na forma da cabeça de um lobo não é a única âncora que a filha usa para o próprio poder.

— Como você conseguiu essa espada? – a feiticeira de olhos violetas questiona ganhando a atenção de dois pares de írises douradas – Ela canaliza seu poder, não é?

— Sim. – Ileanna responde se colocando de pé e segurando a lâmina de forma a mostrar as linhas que decoram a prata – Foi um presente do rei. Uma recompensa.

— Recompensa pelo o quê? – Geralt questiona com a curiosidade ecoando na voz.

— Por mostrar que ainda era capaz de usar uma lâmina para lutar, mesmo depois de ter sido machucada. – a jovem feiticeira responde voltando a atenção para o witcher. – Por lealdade. – as últimas palavras são ditas em um tom mais baixo, mas ainda alto no silêncio do salão.

— Conte-nos. – Yennefer pede com gentileza na voz, os lábios finos se esticando em um sorriso encorajador.

— Depois que Eredin me feriu, eu passei alguns meses me recuperando. – a jovem com olhos de witcher começa a contar, após um breve momento de hesitação, o olhar dourado se focando na face da feiticeira mais velha – Mesmo com o auxílio da magia para que o corte cicatrizasse, levou um tempo até que eu conseguisse reaver a força e a firmeza do meu braço direito. Precisei de um treino completamente diferente para fortalecer os músculos que foram machucados. Foi difícil ter paciência e seguir as recomendações, mas eu consegui. – Geralt e Yennefer trocam um breve olhar e pequenos sorrisos ao reconhecerem a impaciência e a teimosia um do outro em Ileanna – Depois de recuperar a força do meu braço, eu tive que me reaproximar do uso da espada, reaprender. Foram mais meses até que eu tivesse a mesma facilidade de manejar uma lâmina que possuía antes. Eu acredito que, ao todo, minha reabilitação demorou um ano. Quando já conseguia lutar sem dificuldade, sem sentir a espada pesada na minha mão, eu realizei uma demonstração para o rei. – curiosidade nasce nas írises violetas com as palavras – Com a ajuda do meu professor em magia, eu invoquei espectros dos cavaleiros vermelhos. Formas de pura energia que simulam a força e a habilidade dos soldados da Caçada Selvagem. E, na frente do rei, eu derrotei todos usando apenas a espada, sem nenhum auxílio da magia. – a jovem feiticeira faz uma pausa, o olhar dourado caindo para a lâmina decorada – Eu provei que era capaz de lutar como uma soldada, não apenas como uma feiticeira. E, como recompensa, o rei me deu essa espada. É feita de pura prata e foi forjada pelo melhor ferreiro de Tir Ná Lia. – uma luz azulada envolve os dedos de Ileanna, se espalhando por toda lâmina e pulsando especialmente nas runas desenhadas.

— E as runas? – Geralt questiona apontando para os pontos onde a energia brilha com mais intensidade e se recordando da espada carregada por Ciri, gravada com “Zireael” na lâmina – Elas têm algum significado?

— Elas dizem “Rosa” – a feiticeira de olhos dourados responde.

Entretanto, antes que qualquer outra pergunta possa ser feita, Uma desperta na mesa, um confuso murmuro escapando por entre os lábios da criatura. Percebendo que o momento de desfazer a maldição chegou, Yennefer pede que Geralt pegue o filactério. Ileanna se afasta alguns passos, a espada sendo deixada encostada em uma das colunas de sustentação. Como que percebendo a mudança no ar, os witchers também despertam um a um, os olhares procurando e encontrando a feiticeira de olhos violetas usando todo o poder para remover a maldição em Uma.

Nevid, cyvir!— Yennefer entoa com concentração, a energia nas mãos se tornando mais intensa e se espalhando por todo corpo da pequena criatura sobre a mesa – Caniatad... Nevid... Cyvir...

Despertos, os witchers se aproximam com curiosa cautela, Ileanna permanecendo mais próxima de Geralt. Sob o peso do poder de Yennefer, Uma murmura sem pausa, como se tentasse lutar contra a energia que tenta libertá-lo, a inquietação do diminuto corpo dando ainda mais força à aparência de luta e fuga.

Coalle... Ariva... Aendir...— a feiticeira de olhos violetas continua a entoar, a voz quase se perdendo em meio aos gemidos cada vez mais altos e dolorosos de Uma.

Subitamente, a energia quebra e a luz envolvendo a pequena criatura se desfaz, o impacto fazendo com que Yennefer cambaleie levemente para trás. O silêncio que cai sobre o salão é pesado e quase ensurdecedor, sendo quebrado pela baixa e desesperada negação da poderosa feiticeira, que se recusa a aceitar o término do feitiço, as mãos fechadas sendo batidas contra o peito de Uma. É então a vez de Vesemir sair do choque, as mãos segurando e afastando a feiticeira. Os aguçados sentidos do witcher captam o sussurro que estrala no ar, uma voz lutando para ser ouvida até conseguir ecoar no salão, manchada com dor:

Coalle... Coalle... Caniatad...

Se desvencilhando do witcher mais velho, Yennefer retoma o feitiço, seguindo a instrução da voz que parece surgir do verdadeiro ser preso no corpo de Uma. Dessa vez, o feitiço parece funcionar, a energia da maldição deixando a pequena criatura sob o comando e controle da poderosa feiticeira. Entretanto, as írises douradas de outra feiticeira brilham com choque, a voz sendo reconhecida imediatamente, tendo sido ouvida durante toda uma vida. O olhar de Ileanna permanece preso a figura de Uma, não sendo desviado nem mesmo quando a energia estrala no ar e é jogada no filactério segurado por Geralt. E o choque nas írises douradas apenas aumenta quando o corpo escondido em Uma é revelado, um sussurro de magia seguindo a aparição de roupas a cobrirem a trêmula pele.

— Avallac’h? – Geralt murmura, ecoando o pensamento da jovem feiticeira.

— Você o conhece? – Vesemir questiona.

— Sim. – o Lobo Branco responde sem desviar a atenção do corpo sobre a mesa – Um elfo, um Aen Elle. Um Sábio...

— Onde está Ciri? – Yennefer pergunta, as írises violetas focadas em Avallac’h e a voz ecoando com firmeza.

— Escondida... – o elfo responde com dificuldade – Na Ilha da Neblina...

— A Ilha da Neblina. – o witcher de cabelos brancos repete – Onde fica?

— Em todo lugar... – Avallac’h responde em um rouco sussurro – E em nenhum lugar...

— Escute, Sábio. – Lambert começa com impaciência – Nós não desfizemos aquela maldição para ficar brincando de charadas com você.

Como resposta, o Aen Saevherne murmura um feitiço e uma pequena espera de luz branca aparece, voando diretamente para as mãos de Geralt. Uma direção é dada pelo elfo ferido, para Skellige. A feiticeira de olhos dourados observa a troca de palavras em silêncio, mas a mente reconhece o feitiço feito e o que ele envolve, em que estado Avallac’h deixou Zireael na Ilha da Neblina.

— Eu tentei protegê-la... – o Sábio murmura – Mas a maldição...

— Já chega, Geralt. – Yennefer diz – Ele ainda não está livre do alcance da Morte.

Enquanto a feiticeira e o witcher discutem as possíveis consequências do Teste das Ervas para Avallac’h, com alguns complementos por parte de Vesemir, Ileanna se aproxima um pouco mais da mesa, os dedos tocando o contorno do móvel. Como se pressentindo a proximidade de alguém, a cabeça do Aen Saevherne se vira para a direção ocupada pela feiticeira de olhos dourados.

— Eu vou até a Ciri. – o Lobo Branco diz de modo decisivo.

— Espere um pouco. – Eskel diz – Você não acha que nos deve algumas respostas? Como você conhecesse esse Avallac’h? O que Ciri fazia com ele?

— Nossos caminhos se cruzaram uma vez, há muito tempo atrás. – Geralt responde – O mantenha sob vigilância. Ele não é um amigo.

— Talvez não. – Vesemir comenta – Mas Ciri parece confiar nele.

— E não é a única. – Lambert complementa atraindo a atenção de todos.

Só então os olhares dos witchers e da feiticeira de olhos violetas se voltam para o Aen Elle sobre a mesa. Com dificuldade, Avallac’h ergue um dos braços, o esticando na direção de Ileanna, os olhos aquamarines quase fechados sob o cansaço e a fraqueza causados pela quebra da maldição. Sem pensar, a jovem feiticeira aceita a mão estendida, o coração batendo acelerado no peito com o encontro desejado, mas, ainda assim, inesperado. Os lábios do elfo tremem e a rouca voz adquire uma leve coloração de provocação ao se dirigir para a antiga aluna:

— Sua beleza não murchou, Rosa de Auberon.


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Notas finais do capítulo

Sobre o título desse capítulo: Céadmil, Cáermewedd = Bem vinda, Criança do Destino. Um brincadeira em referência a missão Vá Fail, Elaine (Adeus, Beleza).

Por favor, deixem comentários. Críticas e sugestões são sempre bem vindas. Obrigada.



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