Meia Lua escrita por Nanda Vladstav


Capítulo 8
Aqueles que retornam


Notas iniciais do capítulo

Meus agradecimentos à incrível Arymura. Simplesmente a melhor leitora beta que eu poderia querer ou esperar.

Agradeço também a tantas pessoas que visualizaram e continuam acompanhando.



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Aparentemente a realidade resistiu a mais uma viagem. Mauro chegou enjoado e tonto (de novo), e não era o cheiro já familiar do ambiente. Cássio estava tão verde quanto ele. O doce doutor continuava dormindo. Assustado, resistiu a ser levado numa viagem temporal, e foi difícil evitar lhe dar uns tapas pra chamá-lo a razão. Agora ele estava deitado no chão da máquina, sorrindo e balbuciando coisas sem sentido (cortesia de algum remédio de nome complicado) entre as malas e sacolas. Começava a pensar que até nisso o desgraçado tinha sorte.

Quando o mundo parou de girar e a náusea ficou mais forte ainda, viu os rostos de Luca e Fred. Saiu correndo atrás de um balde, enquanto Cássio sentava na plataforma da máquina, na frente do cientista desmaiado.

Cássio levantou-se e caminhou oscilante, o mundo girou loucamente e não fosse por Fred, teria caído. Ouvir Mauro vomitando, em algum outro lugar, não estava ajudando. Ouviu a voz de Fred, parecendo que vinha de uma caverna:

—Tem um balde na sua frente, Cas. Vomita aí, se quiser- Opa, opa! Não em mim, cara!  Ok, está melhor? Quem é aquele? Vocês trouxeram o... Puta merda, é Ele? — Cássio, com a cabeça abaixada, pediu um momento com a mão. Fred e Luca olharam pra plataforma da máquina estarrecidos. Fred subiu e confirmou com a cabeça, pálido.

— Cássio, qual de vocês dois teve a ideia imbecil de trazer o puto do Shkreli?

Fred não tirava os olhos do homem de meia idade que ressonava a seus pés. Tinha os punhos tão cerrados que podia sentir as unhas cortando a pele, mas não se importava.

Não conseguia falar. As palavras embolavam-se na sua mente e não sabia bem o que saía de sua boca naquela hora. Mas as lembranças queimavam seu cérebro com força.

Seus pais e amigos mortos; O trabalho da sua vida virando sucata e ferrugem; seu cãozinho devorado no quintal, diante dos seus olhos. Sua namorada, sozinha no inferno um ano.

Um ANO inteiro.

Por muito tempo, Fred ignorara as vozes em sua cabeça, ou se forçava a distrair-se com qualquer coisa. Agora elas o tomavam inteiro, como um coral de demônios, pedindo ódio, vingança. Sangue.

Dessa vez ele queria obedecer.

— Meu Deus...Cássio, levanta! Levanta, porra! O Fred vai matar o porco! Por que uma máquina do tempo precisa ter degrau, caralho? LEVANTA!

Cássio cambaleou de volta e o que viu quase o fez fugir. Céus, o Fred estava possuído? Estrangulava e batia a cabeça do doutor no chão gritando como um animal selvagem. Tentou puxar Fred, arrancá-lo de cima do homem, mas o cara parecia feito de cimento. Pôde ouvir a voz de Mauro atrás dele. De onde ele surgiu?

— Vou no pescoço, você tira as mãos dele. Vai! — Mauro desceu numa gravata, puxando Fred pro lado, enquanto Cássio forçava a automail até o limite pra arrancar as mãos do amigo do pescoço do homem caído.

— Tirei uma! Joga ele no chão! — Os dois jogaram o peso contra o Fred, que fazia um esforço sobre-humano pra voltar a atacar Shkreli. — Segura com mais força, Mauro!

— Tô quase estrangulando o cara aqui! O Fred não cai!

— Então apaga ele, cacete! Tô levando uma surra! Luca? Que merda você tá fazendo? Sai daqui, animal! Você vai se machucar!

Luca descera da cadeira e segurava uma das pernas com força.

— Trouxe uma corda. Cas, ajuda a amarrar as pernas do Fred.

Mauro se agarrou como pôde, e não fosse Cássio e Luca prendendo-lhe as pernas, sabia que Fred se levantaria como se Mauro fosse uma criança brincando de cavalinho.

— Terminei aqui. Aguenta mais, Mauro. — Depois de muito suor, três homens machucados contemplavam um Fred desmaiado, amarrado pelos pés e mãos, ao lado do Shkreli numa poça de sangue.

Luca voltara pra cadeira, agradecendo pelos ajustes que permitiam que sentasse nela sem ajuda.

— Venham aqui. — Os dois se sentaram, e Luca puxou os dois pela camisa, com uma rudeza que não combinava com a voz mais uma vez calma e muito baixa, sinal que estava muito, muito furioso.

— Tem um resto do último obsessivo na entrada. Vou planejar um trajeto. Vocês vão encontrar a Marina assim que eu terminar. Se ela não estiver mais louca que ele, convençam-na a vir pra cá. Supliquem, manipulem, mintam o quanto for necessário. Ela vai acalmar o Fred. — Não havia qualquer traço de empatia ou compaixão nos olhos fixos neles. Era mais uma vez Odin, que não aceitava qualquer questionamento ou desculpa.

— Por que se ela não conseguir, e Fred continuar perigoso assim... Se eu perder um de vocês três por causa dessa merda, juro que o deixo fazer o Shkreli em pedacinhos antes de fazer um de vocês dois apertar a porra do gatilho. — Empurrou os dois no chão. — Agora enfiem esse merda na sala de contenção, enquanto eu penso em algum jeito de Fred não matar todos nós quando acordar.

***

Depois de arrastar o Fred para seu antigo quarto e trancá-lo a pedido de Luca, Cássio finalmente encontrou Mauro na frente do Arquivo, como chamavam o cemitério improvisado com pilhas e pilhas de caixas de papelão que em tempos mais felizes guardavam as pesquisas do Fred. Os papéis que continham há muito eram cinzas, de fogueiras para ferver água ou preparar comida. Mauro olhava as caixas, nomes e datas riscados com pincel grosso, com uma expressão perdida.

—Tá na hora, Mauro.

Os olhos amarelados viraram pra ele indiferentes. Levantou-se com a facilidade felina de sempre e seguiu, enquanto Cássio mancava atrás dele. A prótese da perna parecia morder, e algo no braço não movia como antes. Mas podia andar, correr e lutar, então estava bem o suficiente.

Aprumou-se e caminhava de forma normal quando chegaram até a porção de telas na frente de Luca. O drone flutuava, o zumbido grave preenchendo o silêncio. Luca entregou os comunicadores, e virou-se para as telas. Os dois passaram a porta interna e vestiram-se com as roupas de couro furtadas dos mortos, depois com as mochilas, por último as máscaras de sucata, luvas de borracha compridas e botas de couro. Um lobo arreganhava os dentes no rosto de Mauro, e no de Cássio um javali mostrava as presas. Tiraram duas pás afiadas das paredes e caminharam até o cadáver. Dois ponchos de lona de algodão muito manchados cobriam a parede oposta.

Por um tempo, só havia aquele barulho úmido e os estalos horríveis, enquanto os dois cobriam os ponchos com os restos apodrecidos numa rotina que seria cansativa se não fosse tão nauseante. O drone flutuava imóvel acima das suas cabeças. Quando terminaram, ouviram Luca no comunicador dentro do ouvido.

“Comunicação padrão. Não vão forçá-la fisicamente a vir. Tem uma lona extra na mochila. Se não puder ser convencida ela fica, e Deus nos ajude se isso acontecer.  Voltem vivos.”

“Copiado.”

“Abrindo porta externa.”

***

Arrastavam-se no compasso dos obsessivos errantes, num caminho já percorrido tantas e tantas vezes. Estavam mortos de cansaço, a ponto de toda a vontade ser necessária pra manter um pé após o outro em silêncio. Cássio já não disfarçava o manquejar, mas viraria um infectado mil vezes antes de admitir a dor ou diminuir o ritmo.

Fora aquilo, não havia nada errado com eles exceto a exaustão. Tiveram uma única noite de sono decente em meses, e cinco vezes por semana percorriam toda a área em busca de comida, água ou remédios deixados para trás. Parte do tempo, não encontravam nada comestível, às vezes lutavam com urubus pra conseguir algo.

O drone acima deles permitia a Luca desviá-los de grupos de Obsessivos, cães ferozes ou mesmo sobreviventes desconhecidos. Desespero e fome deixam as pessoas perigosas, e depois da experiência com o grupo de Toni, não tinham vontade de arriscar de novo.

“Casa segura à esquerda. Boa noite, equipe.”

Caminhar à noite seria mais fácil e rápido — As roupas eram muito quentes e os infectados enxergavam mal no escuro. Mas eles também não enxergavam bem, e não podiam arriscar tropeçar e torcer o tornozelo longe do laboratório. Então abrigaram-se na antiga casa de Aninha. Uma vez lá dentro, podiam mover-se na velocidade normal sem atrair atenção.

Enquanto Mauro bloqueava a porta, Cássio inspecionava rapidamente o resto e trancava as janelas. Quando terminou, desceu com a mão humana apoiada na parede, sussurrando uma série de palavrões. O clique que indicava o comunicador ligado o surpreendeu.

“Cássio, mova a cabeça. Ok, olhe pra Mauro. Fred do passado mexeu no teu automail do olho também?”

— Sim, por quê?

“Você tem uma câmera térmica dentro da lente. Uma das telas aqui se conectou automaticamente e eu estou vendo bem.”

— Ele instalou, mas não esperava que funcionasse. Espero que não exploda.

“Tranquilo, uma invenção de Fred não explode desde...em que mês estamos?”

— Hilário, Luca. Estou rolando de rir. Boa noite, Odin.

“Boa noite.” Desligou. Com um grunhido, Cássio puxou a prótese da perna direita e apoiou o antebraço metálico na coxa esquerda. Merda, aquilo doía, e doeria mais pela manhã. Precisava que Luca e Fred descobrissem o que havia de errado, mas voltar pra aquela mesa metálica o apavorava. Mauro ajustou a mordaça em Cássio com delicadeza, e sentou-se apoiado nas suas costas. Olhou ao redor, suspirando.

Era muito triste saber o que aquela casa foi apenas um ano antes. Ter memórias nítidas de quando tudo estava tão certo. A visão de seus amigos reunidos e rindo no que pra ele tinha sido o dia anterior o assombraria por muito tempo.

Pra piorar tudo, o único outro ser humano que sabia o que estava sentindo estava escondido dentro de si mesmo, deixando aquela coisa incompleta de olhos amarelos no lugar. Estava sozinho no escuro com as lembranças e a dor persistente na perna. Dormir não era nem mesmo uma possibilidade.

***

Voltaram a caminhar ao amanhecer. A dor abrandou um pouco com o repouso, mas voltou com disposição renovada depois da primeira hora. Insistiu e não demorou até chegarem numa esquina conhecida.

“Aguardem em posição até eu confirmar...Corram pra lá agora. Matilha do Rúfius atrás de vocês às 05 horas.”

O Rúfius da infância era assustador, mas seus filhos e netos eram piores. Vira-latas criados soltos, quando o mundo acabou passaram a alimentar-se de carniça e não tinham medo de seres humanos. Cássio e Mauro começaram a procurar abrigo, mas o local tinha apenas prédios com muros altos e lojas com portões arrombados, além da casa da Marina. A porta da casa era madeira sólida, e estava aberta. Podiam ouvir as vozes dos obsessivos à distância, e as respostas dela num tom alegre e artificial.  

Cássio vasculhou o caminho até a casa atrás de algum obsessivo recente, enquanto Mauro localizava os cães. E ali estavam eles, uns quinze ou vinte animais a uns cem metros da esquina.

— Para a casa de Marina. Agora. — Foi um choque ouvi-lo falar lá fora. Eles nunca falavam na rua.

— Tem duzentos metros até lá. Vamos enfrentá-los aqui.

“O que vocês estão fazendo? Calem a boca e corram, merda!”

— Aqueles bichos correm muito mais que a gente. Vamos espantá-los aqui, e depois corremos pra Marina.

Podia ver que Mauro não acreditava, mas não discutiu. Os dois recuaram até um muro alto, e Cássio retirou o poncho, o mantendo no braço esquerdo como uma capa de toureiro. Nem ferrando cometeria os erros da última vez. Podia ver o líder, um castanho com orelhas erguidas, avaliando os dois, e sorriu. Aquele projetinho de demônio lhe devia uma perna. Mauro o imitou, e logo estavam rodeados de cães famintos de pelo em pé.

Logo o mais afoito pulou na garganta de Mauro e caiu, com o focinho rasgado pela lâmina. Como se fosse um sinal, todos avançaram, confusos de tanta raiva e ansiedade de abater as presas, tentando lhe alcançar os pés, os braços ou a garganta. Aos poucos Cássio avançou, e mesmo as mordidas potentes não lhe quebraram o automail do braço.

As armas de Mauro não eram as melhores pra lutar atrás de outra pessoa, mas aos socos e chutes conseguiu se defender. Podia mesmo ouvir Cássio rindo e rosnando enquanto revidava os golpes e mordidas, convidando com as mãos o cão marrom a vir tirar mais um pedaço dele.

Percebeu o que aconteceria um segundo antes. Um cachorro marrom e branco avançou em seu antebraço e mordeu com tanta força que ficou pendurado, mesmo depois que um golpe da foice o matou. Cássio afugentava os cães mais insistentes com uma atuação que faria um javali verdadeiro ficar orgulhoso. Vestiu a capa rasgada e manchada, e estendeu a mão para trás, procurando pela dele. O cachorro morto finalmente caiu.

Mauro estendeu a mão, tentando lidar com a dor. Não podiam ficar ali, e o sangue pingando iria enlouquecer qualquer obsessivo por perto. Quando o Cássio começou a mancar? Teria sido aquela última briga? Ele nem disfarçava, o que era mau sinal. Ouviu Luca no seu comunicador, no canal individual.

“Voltarei com o drone pra mandar ajuda. Aguente.” Murmurou uma concordância. Caminhou com Cássio até a porta aberta, o braço ferido junto ao peito, pra encontrar uma turba de infectados ansiosos em torno de uma...jaula? Cássio, embriagado pela vitória anterior já entrou cortando e perfurando sem esperar por ele, aquele idiota descuidado. Puxou as foices mais uma vez.

Ouviram os gritos, mas não compreendiam e não tinha importância. Após um tempo, o espaço ao redor da jaula estava repleto de cadáveres, e Cássio barricava a porta enquanto Mauro perseguia os sobreviventes.

— Está feito.

— Vocês mataram a Isa! Monstros! Demônios! Se afastem de mim!

Mauro caminhava entre os caídos, se certificando que todos estavam mesmo mortos, antes de arrastar os corpos para outra sala. Quando tudo estava fechado e as cortinas abaixadas, começaram a tirar o poncho e as luvas. Cássio apoiou-se praguejando a um canto, mantendo a perna metálica esticada.

— Finalmente acabou. Mau, dá uma mão aqui, a perna tá doendo pra ca...Mauro?

Foi aos pulos até perto do homem curvado sobre a mochila. Mauro mantinha o braço direito imóvel ao lado enquanto lutava para abrir o zíper da mochila com uma mão. Ajoelhou-se e abriu a mochila. Foi quando viu os rasgos no antebraço. A risada e o choro de Marina continuavam atrás dos dois, mas agora ele mal percebia. Segurou o braço do amigo com delicadeza, viu os rasgos fundos e irregulares da mordida embaixo de todo o sangue. A impotência e a raiva entraram em ebulição e ele levantou-se como um louco, mostrando os dentes, procurando algum culpado, algo que ele pudesse matar. Sua expressão era tão terrível que Marina encolheu-se em silêncio.

— Foi o Cujo, Cas, não um obsessivo. O Luca tá mandando ajuda. O pior que pode acontecer é eu entrar pro clube do Robocop. Se acalma, você tá assustando a Marina.


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Notas finais do capítulo

* Cujo é o nome de um São Bernardo maníaco nas histórias de Stephen King. Mauro e Cássio tiveram tantos problemas com esses cachorros que nomearam todos com nomes de cães diabólicos ou infernais: Cérbero, Garm, Fenrir, Hellhound, Cujo, e por aí vai.



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