Meia Lua escrita por Nanda Vladstav


Capítulo 38
De volta ao começo




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— Sejam bem-vindos, pessoal.

Apenas Mauro estava ali pra recebê-los, vestido com uma calça de tecido, uma camisa branca e um sorriso maior que o rosto. Os quatro ficaram um minuto em silêncio, absorvendo o reencontro e as mudanças nos rostos tão familiares. 

— Vocês parecem ótimos. Senti tanta falta de vocês. O que aconteceu com seus braços, Fred? Brigou com um urso? — Fred percorreu o espaço em passos largos e o levantou num abraço.

— Tamanduás. — Como se isso explicasse alguma coisa. — Também sentimos sua falta. Você não faz ideia. Imagina só: você é tio, cara!

— Sério? Então aquela menininha que vi é sua e da Marina? Pergunta idiota, claro que sim.

— Isso! Ela tem um irmão gêmeo, Leo. Mas quem o vê correr jura que é parente do Cas. Ele não para quieto nunca. Você trouxe o retrato, amor? Nós tínhamos tantos livros? Onde tá o Bidu? Bidu!

— Claro, tá aqui. — Mauro olhou enternecido pro retrato a lápis das crianças.

— Você continua desenhando bem pra cacete. Ma. E eles são lindos, ainda bem que herdaram isso da mãe. Trouxemos alguns livros de criança pra ela, achamos por aí.

— Obrigada.

— Também conseguimos um monte de papel, e todas as coisas que Odin pediu. Estão ali, nas malas. 

— Sério? Maravilhoso! Você é o melhor, primo! Nem eu nem Fred conseguimos fazer... O que é isso? — Marina prestou atenção no rosto dele, e tocou de leve as marcas que seguiam do maxilar até a clavícula. Colocou as mãos dele entre as suas, e delicadamente deslizou os dedos na pele dos antebraços de Mauro. Tantas cicatrizes. Ele sorriu com bondade.

— Estou bem, Ma. Não dói mais. E quem fez isso não vai machucar mais ninguém.

— Tem certeza que vocês não querem voltar com a gente? Aqui é tão perigoso.

— Não podemos mais, priminha. Mas vamos ficar bem. Prometo que peço ajuda se precisar, ok? — E mais alto, para o Fred:

— Cara, Bidu tá carregando. Deve terminar numas duas horas. Os livros são do Cas. Não se preocupe conosco, Ma. Mas o Fred deveria maneirar no café.

— Você não faz ideia.

Olhou por cima do ombro de Marina para o homem sentado atrás dela. — E você, Luca? Assumiu o posto de tio solteirão pela eternidade, ou achou alguém louco suficiente pra te querer? Tem filhos?

Ouviram de algum lugar lá trás: “Já chegaram?”

— Eu disse que eles chegariam na hora! É o Odin, animal! Acelera isso aí!

“Já tô acabando! Mais cinco minutos!”

Marina e Fred riram alto.

— Sério, Mau, não fala disso perto de Ramona. Ela vai surtar.

— Por que? Espera, a Ramona e o Luca...?

Luca fez uma cara de repulsa. — Eu e a Ramona? Céus, Mauro. Não, claro que não.

— Ei, Luca, sacanagem falar assim dela. Ela é uma pessoa sensacional. Por que a careta? Você é gay?

— Você entendeu tudo errado, Mauro. Ela nem se adaptou à ideia de ser enteada dele, quanto mais com a ideia de ter irmãos.

— Às vezes acho que nem eu me acostumei por completo, amor.

Mauro afastou-se e olhou pro rosto de cada um deles, o queixo caído.

— Você... Ramona... Enteada? Puta merda!

Luca o olhava divertido, mas estava um tanto corado. — Sua eloquência me comove, Mauro. Sim, eu sou padrasto de Ramona. Há uns dois anos. — Tirou a luva, deixando à mostra o anel prateado na mão esquerda. — Acredita agora?

— Sim, mas... Caramba, Luca, eu nunca imaginei. Quando..?

— Eu também não pensava que você daria um fora na Ramona pra ficar com o Cássio, e aqui está você. — Escutaram um “Acabei! Podem vir!” e seguiram a voz.

— Tá-dá! — Cássio mostrou entusiasmado a mesa posta perto das telas, com uma carne assada no centro e decorada com frutas. — Porco com abacaxi à moda da casa. Sentem e fiquem à vontade, devem estar com fome.

— Parece uma delícia mesmo, Cas. Tá cheiroso pra caramba. Luca, quer fazer as honras?

— Cas... Você... — Conviveram com Dorinha por anos, reconheceram na hora a expressão e o tatear leve na mesa. — Mauro?

Cássio virou de cara feia pra Mauro — Você não disse nada pra eles? Não fiquem assim, eu estou bem. Só não enxergo. Faz tanto tempo que o babaca aqui acostumou.

— Desculpem. Esqueci completamente de falar.

—...

— Sério, gente. Isso tá ficando esquisito. Eu não vou explodir ou algo assim. A Dorinha iria reclamar pra valer se visse esse trio de estátuas.

— Nunca pensei que diria isso, mas Cássio tem razão.

— Ei, como assim nunca?

— Desculpe, Cas. Fred, você não vem?

— Meu automail... — gemeu Fred. — Vinte semanas de trabalho, e virou lixo... Era blindado, Cássio! Sairia inteiro de uma viagem espacial! Como você os destrói tão rápido?

— Foi mal, Fred. Tive um acidente uns anos atrás. Não deu pra evitar. — Abriu um sorriso travesso. — Você não faria outro, faria?

— Não seja mau, Cas! — Marina censurou, tentando permanecer séria enquanto Franja inundava Cássio de xingamentos. — Ah, esse clima é tão bom. Não acha, Luca?

— Até disso eu tenho saudade. E aí, Mau, alguma novidade?

— Nenhuma, Luca... Destruindo toneladas de lixo e alguns milhões de vidas humanas por aí... o de sempre. E vocês?

— Estamos construindo uma casa.

— Que ótimo! Conta mais, como é?

— ... Seu cosplay anabolizado de Licurgo, dessa vez eu farei um automail que resista a uma bomba atômica! À superfície da droga do Sol! Nem você vai conseguir estragar!

— Cosplay de Li... Licença aí, Luca, qual é a cor da roupa que tô vestindo?

— Uma calça rosa e uma camisa verde... abacate. Listrada.

Mauro já estava chorando de tanto rir quando desviou do tapa de Cássio como se tivessem ensaiado. — Seu sacana duma figa! Primeira vez que encontro os caras depois de seis anos, e você deixa eu me vestir feito um porra de bandinha adolescente colorida?

— Ué, se não quiser essa, pode tirar. Eu não ligo.  — Desviou-se. — Se eu não fizer nada, esse daí fica com um ego maior que o do Cebola original. — Desviou-se de novo. — Tenho que botá-lo no lugar dele de vez em quando. Essa chegou quase perto, Cas.

— Vocês dois, chega de maluquice! Sentem aí e vamos comer.

Os dois voltaram em silêncio e viraram pra Luca na ponta da mesa, que ergueu o copo.

— Por eles, e por nós.  

***

Estavam espalhados em poltronas macias descombinadas, aproveitando um descanso após um almoço farto. Fred assistia Bidu e Mingau correrem um atrás do outro pela sala. — Não aguento mais nada. Quem diria que você aprenderia a cozinhar tão bem, Cas.

— Ainda não entendi. Cebola? Por que Cebola?

— Nunca quis dominar o mundo, Ma. Então, ponho uma máscara e me chamo Cebola lá fora. — E desenhou os cincos fios estilizados na poeira. — De certo jeito, ele conseguiu. O mundo inteiro agora teme e respeita esse nome. E eu tenho sossego quando tiro a máscara. Ma — falou o mais baixo que conseguiu. — toda vez que falo de coisas assim, Mau faz um silêncio estranho. O que ele tá fazendo?

O mago tinha orgulho transbordando dos olhos e um sorriso emocionado. Marina podia ver o rosto dos outros, eles pareciam sentir tanta ternura quanto ela.

— Nada demais, Cas. Ele só está acompanhando a conversa. — sussurrou em resposta. Mauro agradeceu com um aceno e comentou zombeteiro:

— Ele só não quer admitir que não encontramos nenhuma fantasia do Cosmo Guerreiro do tamanho dele. Eu não lamentaria nem um pouco vê-lo com aquelas roupas justíssimas de super-heróis. — Como se fosse combinado, todos voltaram ao normal.

— Parem com isso, não quero essa imagem na minha cabeça.

— Mauro! — Cássio retrucou, vermelho.

— Marina, você tá vermelha?

— É só impressão sua, Luca. Só impressão.

— Você imaginou, não é? — sussurrou zombeteiro.

— Vamos falar de outra coisa?

— Vamos logo vocês dois, ou o Mauro vai pensar em mais maneiras de me deixar sem graça.  — Espanou a roupa e levantou-se. —Prontos? Vai na frente, pai.

— Vocês também? Já não bastam esses dois?

— Prefere Vovô Luca?

— Ah, vai pro inferno, Cas. — disse, rodando na direção do Arquivo. Cássio pareceu que tentava engolir uma bola de gude, mas recompôs-se e deu um sorriso amarelo.

— Tá muito cheio nessa época do ano. Fica pra uma outra vez.

Marina e Fred olharam intrigados pra Mauro. Ele os encarou com uma expressão que não admitia perguntas e seguiu atrás de Cássio. Fred apertou a mão de Marina com mais força.

Foi só um instante, mas Marina respirou aliviada quando Mauro desviou os olhos, como se um tubarão muito grande tivesse passado por eles em paz. Geralmente esquecia a natureza do trabalho dos amigos e por que sobreviviam a ele.

Chegaram em silêncio na parede transparente. Cássio balançava a cabeça, concentrado num tom que só ele ouvia. Então ergueu a mão, ajeitando coisas no ar.

A camada grossa de poeira saiu e desceu comportada até um canto. As caixas começaram a vibrar ao mesmo tempo, e pararam.

— Está feito. Levamos tudo junto, ou nas caixas?

— Juntas, Cas. — Ele assentiu e abriu a porta. Virou pro antebraço, como se pudesse ver as cicatrizes da mordida ali, e no instante seguinte o pó escapou das caixas, e girava numa esfera na palma da mão. — Estou com uma caixa no colo, Cas. Mais pra esquerda. Aí mesmo.

— Mais um minuto. — Com um ruído de papel rasgado, as caixas viraram pó. Ele abriu o bolso e elas entraram como num aspirador. — Se vocês imaginassem a quantidade insana de lixo que tinha por aí... Passei um ano desmanchando uma ilha de plástico maior que Minas Gerais. Vocês têm ideia do tamanho de Minas Gerais? Não fosse pela ajuda do barbudo com o tridente, eu ainda estaria lá hoje. Até a porra do céu estava entupida de lixo! Arrumar os erros daquela espécie ridícula e prepotente do caralho vai tomar décadas.

Sentiu o silêncio pesado atrás dele. — Quis dizer nossa, da nossa espécie. Vamos?

Quando finalmente Mauro ficou satisfeito com o resultado da magia, abriram a porta e a lufada de ar fresco não era familiar. Uma parte de Luca tinha quinze anos novamente, rodando pelo quintal de Fred, o que pensava ser tão impossível quanto na Lua. Cássio encaixou uma bengala de alumínio bem comum e foi pelo caminho até chegar numa lança de três pontas já gasta pelos elementos.

Mauro carregava uma trouxa de roupas com um cheiro ácido e familiar. Cássio afundou a mão na terra, cochichando alguma coisa perto do solo antes de voltar com um punhado de um pó branco. Os ponchos desmoronaram como se feitos de cinza e foram levados pelo vento. — Mau, estende as mãos. Ei, tudo bem chorar, não precisa do lobo agora.

— É pra não derrubar tudo no chão. — Sentiu a mão de Cássio abaixo das suas. Mauro firmou-se, mas não abriu os olhos.

— Odin? — Luca pegou a caixa e derramou a favor do vento. Mauro também.

— Não há mais despedidas a serem feitas pra eles, Cas. Estamos aqui pra dizer a nós mesmos: Ainda estamos aqui. Conseguimos, e levaremos as histórias deles conosco. Mas todo o peso podemos deixar aqui.  

Olhou para o grupo reunido ao seu redor. — Agradeço principalmente a vocês, Fred, Marina, Cássio e Mauro. Esse mundo está ficando muito bonito, e quero de verdade ver o que vocês dois farão dele.

“Levem o tempo que quiserem. Estarei esperando vocês lá dentro.”

***

— Eles foram embora. Acho que está na hora de voltarmos pra nossa casa, Cas.

— Verdade. Já imaginou como devem ser os miudinhos do Fred e da Marina? Devem ser legais. Não faz essa cara, Mau. Eu sei que nós não podemos ir até lá, mas Luca disse que voltariam. E Fred não sossega enquanto não fabricar um automail indestrutível até pra mim.

Ouviu o risinho de Mauro. — Às vezes me pergunto se você realmente não enxerga.

— Cego como uma pedra. Mas não importa hoje em dia. — Pegou na mão do mago. Aquilo não tinha mudado, então o resto não tinha mesmo importância. — Vamos pra casa.

FIM


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Notas finais do capítulo

É isso, senhoras e senhores. Meia Lua acabou. Foi uma experiência e tanto, e pude crescer como autora e pessoa enquanto publiquei essa história. A todos que leram e acompanharam essa história (principalmente à Themis e Adormecida), minha profunda gratidão.



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