Meia Lua escrita por Nanda Vladstav


Capítulo 14
Pedaços de primavera


Notas iniciais do capítulo

Desculpem a demora, tive problemas com a internet e precisei publicar de outro lugar. Esse capítulo é menos linear que outros, e abrange algumas semanas comuns, cheias de rotina.



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— Tô me sentindo de novo na escola. Meditação de manhã com Mauro, depois exercício com Fred, ajudar a Marina e você com a preparação da comida, combate e tiro com você e Mauro, aula, mais meditação e a gente só para no fim da tarde. Além de tudo, essas muletas. Tô com saudade da minha perna, Luca.

— Você virou um velho resmungão, Cachorro Louco. Se quiser voltar a andar de cadeira, minha reserva está lá trás.

— Quando vocês vão parar com esse apelido escroto?

— Você nos deu o direito de perturbar até o fim dos tempos, Cachorro Louco.  Por falar em tempo, quando o Mauro vai te pedir em casamento?

— O que?

— Ele anda com aquela caixa de joias no bolso, lembra? Ele acha mesmo que eu não vi?

— São do Fred. A versão passada dele mandou com a gente, pra ele e Marina. Não sei porque Mauro não entregou ainda.

— Deveria. Ele e Marina passam cada vez mais tempo um com o outro. Qualquer dia ele a convence a dormirem juntos. Teremos que arranjar outro canto pra dormir.

— E o doutor?

— Todo dia tento falar com ele. Ele não diz nada, come o que damos e fica ali, olhando pro jornal. Já faz mais de um mês. Tô começando a achar que não vamos ter nenhuma ajuda dele. Talvez seja mais humano atirar logo.

— Ele é um desperdício de oxigênio, cara. Mas não faz barulho, isso eu admito. Fale com ele. Você, Mauro e Marina são a melhor chance de convencê-lo. Pelo menos agora, que a gente convenceu Fred a não matá-lo. Ele até deu o colchão pro velho a pedido da Ma. Se precisar de mim, pode me chamar.

— Cássio, eu espero que não cheguemos a isso, mas se chegarmos... Eu não vou entregar essa responsabilidade pra ninguém. Vou tentar um pouco mais.

***

— Doutor, ainda espero sua resposta.

—...

— Só vai ficar sentado aí até morrer? Ou o senhor quer que eu o mate?  

—...

— Eu sei qual a sensação de viver sob um peso insuportável. Eu sei. Mas sei também que precisávamos salvar o futuro dos erros do senhor. Algum futuro, pelo menos. Então deixar o senhor seguir com a vida estava fora de cogitação. Ainda acredito que o senhor possa ser lembrado como o cientista que ajudou a salvar a humanidade. Se decidir ajudar, me chame. Meu nome é Luca. Boa noite.

E saiu em silêncio.

***

— Luca?

— Hmm?

— Você tava dormindo durante o exercício? — O rapaz deitado o olhou, um tanto desorientado.

— Dormi mal essa noite.

— Luca, não quer mesmo falar sobre isso?

Tinha algo grave acontecendo, mas não sabia ao certo o que. Luca pesava menos, cada vez mais distraído e calado. Quando os outros não estavam perto, ele só olhava pra lugar nenhum, como um robô desligado. Então ouvia qualquer outra pessoa chegar, e ligava a versão tranquila e despreocupada, como o virar de uma chave. Fazia semanas desde a cirurgia de Cássio, e todo o resto parecia bem.

— Eu estou bem, Fred. Só um tanto cansado. — Fred desceu as pernas de Luca e segurou-lhe o ombro.

— Você evita os rapazes e confia na Marina só um pouco, então pensa que ninguém viu. Está mais que cansado, Luca, e precisa fazer alguma coisa a respeito. Você não está bem. Só para de fingir, e me deixa te ajudar.

Luca sentou-se e fechou os olhos.

— Você sempre foi inteligente demais. — admitiu, com um sorriso derrotado. — Só está errado numa coisa: Eu confio na Marina. Dei meu celular a ela. A vi lendo um dia desses.

— O que tem no seu celular, Luca?

— Tudo. — respondeu simplesmente. — Tenho que ter certeza que alguém vai pensar com clareza quando eu não estiver mais aqui. Às vezes vocês três não saem de um saco de papel sem ajuda.

— Luca...

— Tenho três planos que precisam de ajustes. O mais viável ainda é convencer Viviane a nos aceitar na dimensão que mora. O Astronauta ainda tem aquela regra rígida de não deixar ninguém da Terra subir na-

Luca. — Fred aproximou-se, a voz tão firme quanto a postura, mas tinha uma ponta de incredulidade. — Quando? Não se, quando?

— Eu... não sei. Tinha certeza que não, principalmente depois da presepada do Quim mas agora... Você não faz ideia, Fred. Se eu falasse alguma coisa naquele dia, não conseguiria me controlar. Todos vocês iriam descobrir, perderiam a confiança em mim. E eu só tenho isso.

Respirou fundo, como se tivesse que forçar o ar a voltar pros pulmões. Falava como se não conseguisse parar. — Estou tão cansado que sinto como se todo meu peito fosse concreto. Antes eu até chorava, mas hoje nem isso consigo. Cuidar de vocês é o que me faz continuar, mas não tá funcionando mais. Sinto como se tivesse dado tudo de mim... Acabou. A única coisa que ainda quero, que ainda peço à noite é não acordar de manhã.

Fred não se sentia muito esperto agora. No receio de dizer a coisa errada, quase chegara tarde demais. Era como quando uma das suas invenções estava prestes a explodir: A mente acelerava tentando descobrir o que tinha dado errado, enquanto procurava abrigo ou aceitava o impacto.

Até que encontrou o que podia ser o problema e olhou pro amigo desolado em cima da mesa com algo que parecia esperança. Luca olhava pra baixo, e não percebeu.  

— Não quero me matar, mas faria qualquer coisa pra tudo...— Fechou o punho na frente do peito. — isso ir embora.

— Luca, você sabe que tá deprimido?

— Que? Do que você tá falando?

— Depressão, ou algo bem parecido. Falta de serotonina. Você deve estar cansado pra caramba, mas tá doente. Li um pouco disso enquanto tentava entender...— Apontou pra si mesmo. — Que diabos acontece comigo. Pedi alguns remédios desse tipo quando os rapazes voltaram no tempo. Lemos as bulas e tentamos algum. Vai te ajudar também.

— Então essa sensação horrível... Espera, você tá tomando remédio?

— Claro. Há semanas. Nem sempre funciona, mas ajuda a ter dias normais. Ou você achava que eu não surtar tanto foi milagre de Santa Marina?

— Apostaria minha cadeira que foi ela quem te convenceu a começar.

— Ela me fez continuar... Sabe, aquilo dá um sono infernal. Mas ela me convenceu que ficar sonolento e meio burro por um tempo valeria a pena. Você precisa descansar mais, nós todos dependemos de você.

— Por favor, Fred. Não fala pros outros.

— Não se preocupe, Odin. Não direi a ninguém que você é humano.

Luca estava surpreso. Não imaginava que estivesse doente fisicamente, com falta de alguma coisa. Era estranho demais imaginar-se doente sem ver nada de diferente com seu corpo.

Se pensasse bem, estranho mesmo seria estar saudável com tanta coisa errada ao redor.

***

— Cássio, aquele remédio que você estava tomando pra perna se chama morfina?

— Sim. Aquele troço me deixa chapado, suando, bagunça minhas tripas. É horrível.

— Aqui diz “Efeitos adversos: sonolência, tontura, confusão mental, náusea, vômito” e mais uma porção de coisas até chegar em “Menos comumente: alucinações, insônia, rigidez muscular...”

— Me deixa ver. Rapaz, pode dar isso tudo? Quer dizer que eu não sou tão ruim assim, só não posso tomar esse remédio?

 — Menos mal, né? Vou riscar na sua perna “Morfina” com um X no meio, pra lembrar o Luca na próxima.

— Já deu, né Mauro?  Já chega de me tirar pedaço!

— Relaxa, bobalhão. Vem, vamos encontrar nessa pilha algum remédio dos que o Fred falou pro Luca. Você sabe porque diabos ele decidiu que precisava disso?

— Boa sorte entendendo o que acontece com Odin. Insônia, sei lá. Por falar nele, aniversário de Luca é quando, mês que vem?  

— Por aí. Tinha pensado em leva-lo lá fora, mas foi antes da sua perna quebrar. A gente faz o quê?

— Tô guardando uma barra de chocolate pra uma ocasião dessas, e sei que tem uma garrafa de vinho que o Franja escondeu lá trás. Aí... não sei.

— Eu e o Franja (Tô pegando essa mania da Marina) podemos leva-lo lá em cima. Se ninguém acender luzes, não vai atrair atenção. E faz um ano e pouco que ele não vai lá fora. Você e Marina ficam de olho nas câmeras.

— Boa, Mau! Combina com Fred. Será que a Marina topa fazer uma cadeira daquelas de alpinismo com aquele lápis overpower? Nunca acaba, faz qualquer coisa, de qualquer tamanho... Foi bom que ela tenha vindo com a gente.

— Ela não faz qualquer coisa, e cansa demais. Lembra daquela vez em que ela foi desenhar uma escada e caiu de sono ali pelo décimo degrau? Mas realmente é o item mágico mais poderoso que eu vi. Ainda bem que só funciona direito com ela. Ela vivia perdendo, lembra?

— Vem, que ainda temos uma pilha daqueles nomes complicados pra ler.

***

Fred carregava uma impressora quebrada para seu quarto quando viu Mauro, Cássio e Marina parados atrás da parede, tentando conter a risada.

— Mas o que... — Mauro tapou a boca dele, sinalizando pra ele fazer silêncio. Podiam ouvir a voz de Luca na cozinha, lavando pratos.

— ...E nessa loucura de dizer que não te quero, vou negando as aparências, disfarçando as evidências, mas pra que viver fingindo, se não posso enganar meu coraçãaaaao.... Eu sei que te amo!

Franja começou a agitar a mão livre, articulando “Mas o que é isso?” com os lábios. Do outro lado da parede, era claro que Luca estava entusiasmado com a música.

— Chega de mentiras... De negar o meu desejo! Eu te quero mais que tudo, eu preciso do teu beijo! Eu entrego a minha vida...

Cássio, com os dedos levantados, orquestrava uma contagem regressiva. Três, dois, um...

Os três começaram a cantar junto. — ...Pra você fazer o que quiser de mim! Só quero ouvir você dizer que sim! — Luca parou de cantar, os olhos arregalados. Nenhum dos três conseguiu continuar, e Cássio teve que segurar na bancada pra não cair de tanto rir.

— Vão se ferrar. Todos vocês.

— Faz muito tempo que a gente não ouvia tuas músicas de vó. Não fica assim, achava mesmo que ninguém te ouvia? — Os três se aproximaram, Luca parecia querer afundar no chão, vermelho até as orelhas.

— Sério, Luca? Evidências? – Marina sorria com os outros.

— Eu quero morrer. — murmurou pra si mesmo.

— Eu prefiro quando ele canta Fagner. — Mauro respondeu casual, recolhendo os pratos limpos.

— Por favor me matem. — Não sabia que era possível ficar tão constrangido.

— Ma, precisa ouvi-lo cantando Reginaldo! Toda a breguice nacional sobreviveu no Luca. Ei, é legal te ouvir cantar. Não devia ter vergonha disso. — Luca grunhiu, o rosto entre as mãos.

— Deixem disso, rapazes. — Ficava muito feliz de ouvi-lo cantar. Nem lembrava quando foi a última vez. O remédio estava funcionando. — Vou deixar a impressora no quarto e vamos nos exercitar um pouco.

Marina ficou ao lado, esperando Luca se recuperar da vergonha. — Luca? Eu preciso de ajuda com uma coisa. Me disseram que você é quem sabe cozinhar melhor.

— Pode falar, Ma. O que é?

— Me ajuda a fazer um bolo?

Por um tempo, a conversa resumiu-se a pedidos de ingredientes e instruções em geral.

— Não é tão difícil quanto parecia.

— Entendo a vontade de fazer as coisas com as próprias mãos, mas por que não desenhar, ao invés de cozinhar? Ok, agora vai o leite. Não mexe tão rápido, só mistura.

— Tudo bem... assim tá bom? Posso até desenhar a cobertura, mas o bolo não fica saboroso. Hoje faz três anos que Franja me pediu em namoro, e dois meses que vocês me resgataram. Não se faz uma comemoração sem bolo.

— Bom, no aniversário do Cássio nós só tínhamos umas quatro garrafas de bebida, dois pacotes de bolacha e um de goiabada, e foi sensacional. Um dia você vai conhecer o Mauro bêbado.

— O mundo inteiro acaba, e os homens continuam iguais, affe! Por falar em homens, vocês deviam pôr aviso na porta quando os rapazes voltam lá de fora. Isso não é história ecchi, não quero ver aqueles dois de cueca por aí!

— Você lembra do cheiro? Num lugar fechado, parece que entra até no cérebro.

— Luca! Marina? Você na cozinha? Cozinhando, não desenhando?

— Oi, Franja. — Tentou disfarçar o rubor, não conseguiu.

— Diga aí, Fred, estamos no meio da receita.

— Vocês podem ficar de olho no sabão por mim? Aquilo vai demorar umas três horas ainda, e preciso fazer o check-up mensal dos sistemas. Se eu não começar agora, só termino à noite.

— Vai tranquilo. Me dê notícias quando terminar, ok? Hoje a noite é especial, então começa logo.

— É verdade! Como eu poderia esquecer? Dois meses com a gente, né Ma? Eu volto assim que puder — Mandou um beijo de longe e saiu.

Luca quase não conteve a risada. — Sério?

— Ele nunca foi muito bom com datas, mas fica uma graça quando lembra.

— O que você tá esperando, Marina? Vai lá pedir o cara em namoro.

— E-eu? Pe-pedir a ele? Isso não seria certo! O melhor é esperar ele se decidir e...

— É ele quem você quer? Certeza?

— Sim, eu tenho certeza. Por quê?

— Olha que eu tô solteiro. — Ela riu com vontade.

— Obrigada Luca. Eu tenho certeza do Fred, com maluquice e tudo o mais.

— Eu conheço um pouco o Fred. Ele tá com medo de assustar você, não de se comprometer. Tem medo de tocar você e despertar lembranças ruins. E não tem confiança nele mesmo, tem medo de ter um surto e machucar você. Se você quiser ter algo mais sério com ele nessa década, melhor ir atrás.

— Mas a gente vive junto. E se não der certo? Como é que a gente fica?

— Escute um amigo que se arrepende até hoje de não ter feito isso. Não deixe o que te faz feliz pra depois. Às vezes o “depois” não chega.

— Foi a Isa, não foi?

— Eu era encantado pelo brilho da Bailarina desde que ela chegou ao colégio. Tão feliz, tão espontânea, tão afetuosa. Quando acabou o namoro dela, fui me aproximando, mas fui devagar demais. Se ela estivesse namorando comigo, estaria aqui enquanto o Fred arrumava minha cadeira. No dia em que a praga aconteceu. Ela estaria viva hoje, Marina.

— Eu sinto muito, Luca. Mas não se culpe por isso, não adianta.  

— Vou olhar o sabão. Continue mexendo, eu já volto. Não mexa forte nem rápido demais.  

***

— E aí, Luca? Como está o sabão?

— Mais umas duas horas e meia, acho. Tá ficando com uma consistência boa. E o óleo de laranja deu um cheiro ótimo. O Fred começou os testes?

— Sim. Mauro está lá com ele. E você? Porque essa cara besta?

— Eu tava me lembrando da Isa, Cas. Lembrando dela dançando.

— Sei como é. Às vezes penso no que eu não daria pra ver o sorriso da Cassandra mais uma vez.

— Às vezes a Marina me lembra a Isa, Cássio.

— Luca... Ela é a mulher do Fred.

— E ela o ama, eu sei. Ele a ama de volta, sei disso também. E eu sei que nem olharia pra ela se nossa vida estivesse normal. Acabei de dizer a ela que fosse atrás do Fred. Mas você já olhou pra ela? Olhou de verdade?

— É a única mulher que eu vi em um ano inteiro. Tem como não olhar? — respondeu baixinho. — Marina é realmente bonita. Não sei como o Fred tá se controlando, juro.

— Ela é uma pessoa sensacional, Cas. E consegue ficar bonita depois do apocalipse. Parece irreal, cara. Às vezes aquela garota passa, com a roupa arrumada, e o cheiro... o cheiro dela me tira de órbita.

— Luca, olha pra mim. Não bota essas coisas na cabeça, que vai ser foda pra tirar. Marina é a mulher do Fred enquanto quiser ser. Nós três vamos continuar se virando sozinhos.

— Nós três? Sério que tu não é bi?

— Não, cacete! Mas juro que às vezes eu queria ser gay como todo mundo parece achar que eu sou! Não tem mais mulher no mundo, e a gente só se sente atraído por elas? E mesmo que eu fosse, iria adiantar o que, já que todo mundo é hétero nessa bosta? — E falou bem mais baixo. — E não me olha com essa cara de “Me engana que eu gosto”, velho. O esquema é o seguinte: Tira a Marina da cabeça. Fim.

— Você tem razão, Cássio. Não importa a atração que sinto. Ela é uma das pessoas que protejo. Eu sou um homem, então posso e vou me controlar. Obrigado. Onde você vai?

— Eu tenho que ver a turma. Eles me esperaram tempo demais.

***

— Como é que os sobreviventes de Caminhantes Mortos viviam limpinhos e bem-penteados daquele jeito? As roupas deles nem ficam manchadas. Eu mataria por um desodorante e um barbeador elétrico.

— Fica quieto, Fred. Culpa sua, de ter um laboratório tão distante de casa e ter comprado uma casa pros pais do outro lado da cidade. Como você não tinha nem uma tesoura no laboratório? Nem um espelho? Fica quieto senão não acerto cortar teu cabelo. O que tem de diferente hoje, que o cheiro na cozinha está tão bom?

— Para aí, me deixa ver como está indo o teste. Hum, tudo bem. Claro que eu botei meus pais numa casa distante. Faz ideia da quantidade de barulho que isso tudo fazia? Hoje faz dois meses que vocês trouxeram a Marina de volta. E o aniversário do Luca é essa semana.

— É isso? Porque lembro que ano passado você surtou uma semana inteira nessa época. Ah, e eu fiquei te devendo uma coisa. Tua versão do passado me mandou te entregar uma caixa, mas eu não sabia se você ficaria bem. Agora que as coisas com a Marina parecem andar pra frente, é melhor entregar de uma vez.

— O que é... Ah. Eu me lembro. — Abriu com delicadeza — Sonhei um monte de coisa quando vi esses anéis na joalheria. Lembra dela na festa de quinze anos? Deus, ela era a própria Titânia, cara.

— Titânia?

— A rainha das fadas, Mauro. Shakespeare.

— Ah, certo. Continua.

— Ela brilhava. Como se todas as coisas boas de que falam os poetas estivessem num lugar só. Claro que teria sido melhor se todo mundo não tivesse virado mobília e eu não tivesse virado cachorro, mas eu só me lembrei dela descendo aquela escadaria quando vi esse anel. Eu vou criar coragem e pedir a ela. Obrigado, Mauro.

— Por nada. Só vai devagar, certo? Agora me deixa acertar a barba. Depois é sua vez, meu cabelo tá muito grande.

***

— Cascão? Cascão, onde está você?

Marina nunca tinha ido para aquele lado do laboratório depois da epidemia. Mas Cascão não estava em lugar nenhum, a comida estava pronta e os outros rapazes ocupados. Marina ainda tinha um pouco de medo do novo Cascão, mas decidiu que era hora de lidar com o receio e procurar por ele. Estava prestes a dar a volta, quando ouviu a voz dele de longe. O eco nos corredores de metal enganava, então ela seguiu devagar.

— ...tive coragem pra voltar aqui, irmãozinho. Posso te chamar assim, já sou mais velho que você. Que todos vocês. Mauro, quero dizer, o Nimbus e os outros já vieram aqui, mas eu não sabia o que dizer, galera. Eu estou melhor agora, tenho menos raiva, mas ainda sinto saudade de vocês. Tanta saudade. Éramos a turma clássica, eu conhecia vocês desde sempre, nunca pensei que- Quem está aí?

— Desculpe, Cascão. Sou eu, Marina. Não queria interromper, só vim avisar que a janta está pronta.

— Pode vir, Marina.

Ele estava sentado na frente de um painel de vidro, com caixas de arquivo grandes do outro lado. Diversos besouros negros andavam atrás do vidro.

— O que são essas... Oh.

— Chamamos de Arquivo. Nome ruim eu sei, mas melhor que “Cemitério que nos faz sentir fracassados.” Tudo que pudemos trazer deles. Os besouros ajudam a limpar os ossos. Cebola, Mônica, Magali, Maria Cassandra, Joaquim, Maria Melo, Jeremias, Dorinha, Isadora. Os meus pais, os do Mauro, os do Luca, o Bidu, o Chovinista. O DC tá lá fora. Não sabemos o quanto o vírus é transmissível, então deixamos eles aí até podermos sair e dar um descanso melhor.

— Mas essas são um tanto pequenas. Uma pessoa não cabe ali... — Quando ela entendeu ficou nauseada. — Inteira. Vocês... vocês es...

Cássio confirmou com a cabeça. — Não podíamos abandoná-los lá fora, e você sabe tanto quanto a gente que decomposição não é algo bonito de ver. Fred tem algo nessas caixas que absorve umidade.

— O que são aquelas caixas ali fora? Quem...?

— Estão vazias, relaxa. São a minha e a do Mauro.

— Isso não é meio mórbido?

— “É a verdade da veracidade da vida”, como diria Denise. A gente quase morreu um monte de vezes. O Mauro ficou tão ruim uma vez que eu me tranquei com ele, achando que ele viraria um obsessivo ou morreria. Eu perdi o pé, e depois perdi o braço. Cada uma delas Luca e Fred acharam que eu não viveria até de manhã. Acabaram nomeando as caixas e deixando aí.

“Uma vez eu acordei da cirurgia, com uma ressaca fenomenal, e tinham esquecido essa caixa do meu lado. Fiquei mais assustado que com raiva. Tinha visto isso com o Mauro, meses antes, mas é sempre mais assustador quando você acorda e vê que seus amigos se despediram de você, de tão ruim que a coisa ficou.”

— Você ama o Nimbus, né?

— Amo. Não tenho tesão por ele, mas ele é meu melhor amigo. Eu morreria por ele se fosse necessário, e sei que ele faria o mesmo por mim. Vamos, a comida está esfriando.

— Espera. Se você não o visse há muito tempo, e precisasse dizer isso a ele... como você faria?

— Como isso tem a v- acho que entendi. Mantenha as coisas simples, Ma. O Fred é meio complicado, mas te ama. Ficou perdido quando você não chegou. Foi fo-quero, dizer, terrível ver aquilo, e não poder fazer nada. Só fala com ele, diz o que sente. E se vocês decidirem terminar, não esquenta, vai ficar tudo bem. Não é como se você tivesse a obrigação de ficar com ele. Mas não nego que seria legal se alguém fosse feliz na droga do fim do mundo.

— Vai na frente, Cas. Eu preciso de um minuto pra pensar.

— Tudo bem. Mas vê se lembra: Também somos sua família, desde que você chegou. Você não tá sozinha. E nossa promessa ainda tá valendo. — Marina olhava pra parede de caixas enquanto ouvia o barulho das muletas se afastando.

— Mônica, meninas... Se vocês estiverem me escutando aí de cima, podem me apoiar? Me dar um pouco de força? Eu o amo, mas tenho medo. Não sei se é o momento certo. Queria tanto ouvir os conselhos de vocês uma última vez. Me sinto meio deslocada no meio dos rapazes. Me ajudem, por favor.

Nenhum raio de luz apareceu. Nenhuma voz foi ouvida do além. Ainda assim, depois de uns minutos, Marina respirou fundo e se sentia melhor.

— Têm razão. Agora é a hora de ser corajosa e lutar por quem eu quero. Me desejem sorte.

 


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Notas finais do capítulo

É importante lembrar: Ninguém precisa aguentar tudo sozinho. Penso no Luca como alguém muito forte, mas isso não significa não precisar de ajuda.

Meus agradecimentos à pessoa que continua acompanhando e a todos que lêem minha história. Não tenho talento pra notas de capítulo, mas estou muito feliz. Continuarei dando o meu melhor, e até o próximo capítulo.



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