The Kostroma Dynasty escrita por Mialee Aurestelar


Capítulo 36
Parte III: A Hora Mais Escura


Notas iniciais do capítulo

Olá olá!
Demorei, pra variar, mas voltei! E esse ano ainda!!! Tô contando minhas vitórias kkkkk
Tenho mais uns recadinhos nas notas finais, mas, por agora, boa leitura!



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“The saints can't help me now

The ropes have been unbound

I hunt for you with bloodied feet

Across the hallowed ground”

Howl — Florence + The Machine

 

A meia noite viera e passara há algum tempo, contudo, entre as paredes daquele palácio, não havia espaço para o silêncio característico da madrugada. O baile estava se encaminhando para o seu final, mas não tinha chegado lá ainda. Fosse de embriaguez ou de sono, as pessoas cambaleavam por aí, rindo alto, bem menos preocupadas com pompa e etiqueta esperada num salão real. O clima era bom, fervilhando de energia e tranquilidade, o sinal de uma festa bem feita e bem aproveitada.

O baile de aniversário do czareviche seria tópico de conversas por muitas semanas. Era compreensível: em um momento de tensão e incerteza, não havia quem não desejasse um pouco de escapismo – especialmente a nobreza acostumada a uma vida sem empecilho algum. E haveria escape melhor do que dançar entre estrelas, valsar debaixo de duas luas – a verdadeira e a de mentira, mas tão bonita quanto? 

Para Elizaveta, porém, luzes e música estavam longe de ser distração o suficiente. 

Desde que descobrira seu passado inteiro guardado em uma caixa de papelão, empilhado entre relatórios de colheita e requisições jurídicas como se não fosse nada, ela vinha gastando toda sua energia para se manter sob controle. Engolir suas emoções, chorar apenas um décimo do que precisava, abrir sorrisos confiantes toda vez que Katherine lhe perguntava se estava tudo bem. 

Não tinha decidido se a vigilância e cuidado de Katherine tinham mais atrapalhado ou ajudado. Era certo que, sem ela, não teria aguentado chegar até ali. De fato, só estava naquele baile maldito por causa dela, querendo despedir-se da melhor amiga que tinha feito ali dentro direito. O problema, porém, é que a preocupação de Katherine não tinha feito suas iras se acalmarem; só tinha sido um incentivo a mais para Eliza escondê-las, deixando que elas se avolumassem, ganhando mais força a cada dia que passavam guardadas. 

Elizaveta, mais do que ninguém, devia entender o problema de segurar algo com tanta força até a única opção ser explodir. Suas memórias reprimidas tinham irrompido em pedaços afiados que estavam por toda parte, importunando sua mente, comprimindo o ar em seus pulmões, rasgando seu coração ao meio. Apesar da experiência recente, ou quem sabe por causa dela, Eliza se recusava a aprender qualquer lição pacifista no momento. 

O fato era que ela sabia o que estava fazendo. Sabia que repetir milhões de vezes que estava ali só por Katherine não mudaria o fato de que ela passara os últimos dias andando por aquele palácio em busca de alguém. Que raramente o encontrava e, quando o fazia, nunca estava sozinho. Que tinha certeza de que, naquele baile, não importava quantas horas ela tivesse que esperar, ela daria um jeito de isolá-lo. A música alta e o número de convidados sóbrios diminuindo a cada minuto encobririam o que quer que ela precisasse fazer. 

Elizaveta também sabia que não estava pensando em consequências, não de verdade. Tinha tentado, mas a memória ou a imagem do rosto dele apagavam sua racionalidade numa onda de ira que iria sufocá-la se ela não fizesse alguma coisa e depressa.

A única coisa que ela não sabia era o que pretendia fazer. Respostas? Haveria outra justificativa que não colocasse seus pais como um perigo, algo a ser exterminado pela segurança da inocente população aldiana? Ela poderia gritar, assustá-lo, fazê-lo implorar por um perdão que ela não queria dar. Nada lhe parecia o suficiente e isso por si só deveria tê-la alarmado o suficiente para desistir. 

— Eliza — a voz de Katherine a puxou para a realidade, não pela primeira vez na noite. Ela parecia tão preocupada que, se Elizaveta não estivesse tão consumida por uma raiva escaldante, teria se emocionado um pouco. — Você não está bem.

Não, não estava. Queria gritar isso até a voz ir embora, queria quebrar cada instrumento tocando para ter silêncio, queria criar um tornado que arrasaria aquele palácio inteiro. Se expressasse um milésimo do que estava sentindo, porém, não teria a chance nem de se vingar da pessoa diretamente responsável por aquilo. Assim, Eliza abriu o sorriso mais tranquilo que conseguiu. 

— Só estou um pouco distraída, Kat. Me empolguei com o champanhe — disse, fazendo seu melhor para não parecer tão sóbria quanto estava. — Você se importa de pegar um copo de água pra mim?

Katherine levantou uma sobrancelha, em dúvida sobre comprar aquela história. 

— Por favor — disse Eliza, rindo. — Me poupe do mico de cair no meio do salão, hm?

Katherine não parecia nem um pouco convencida, mas aceitou ir mesmo assim. Talvez porque a Elizaveta que tinha conhecido nos últimos meses não era capaz de machucar alguém. E quem gostaria de acreditar que seu amigo mais próximo teve todas as emoções doces arrancadas à força? Quem gostaria de pensar o pior sobre a pessoa em que mais confiavam naquela competição absurda?

Elizaveta não tinha tempo para gastar com mais essa pequena tragédia.

Assim que Katherine sumiu de seu campo de visão, ela levantou-se e foi até Viktor, parado próximo do centro do salão. Trajado com um terno preto simples – ainda que obviamente caro – e uma expressão vazia, ele tinha estado por ali há horas, mal fazendo outra coisa que não fosse vigiar Aleksei como um falcão. Elizaveta tinha certeza de que seria mais fácil mover o pilar ao lado dele do que tirá-lo dali contra sua vontade. Ela, contudo, tinha gastado horas o suficiente pensando em algo capaz de colocá-lo em movimento. 

— Com licença — disse ela, mal levantando os olhos para Viktor, mexendo as mãos em gestos do nervosismo que não sentia. — O senhor é responsável pela segurança do czareviche, não é?

Viktor assentiu, sua expressão ainda estática e austera. Não dava para ter a menor ideia do que ele esperava daquela interação. 

— Eu… Meu Deus, não sei nem como começar… — Eliza continuou tropeçando em suas palavras, como se estivesse se afogando em angústia, em um teatro até melhor do que esperava. Viktor não a interrompeu em momento algum, não parecendo nem irritado nem alarmado com aquela situação. — Eu acho que o czareviche pode estar em perigo. Acho que pode haver bruxaria envolvida.

Viktor franziu as sobrancelhas, o que parecia pouco diante do que Elizaveta estava contando. Como um caçador experiente, Eliza não esperava que ele se abalaria tão fácil ou mesmo que acreditasse no que ela estava dizendo, de qualquer forma.

— Essa é uma acusação muito séria, senhorita. 

— Eu sei, eu sei… Estou há semanas tentando me convencer de que estou vendo coisas, mas não acho que eu esteja — Ela respirou fundo, pronta para jogar sua cartada final. — Eu tinha reparado antes, mas no último encontro que tive com o czareviche eu vi com certeza… As sombras de onde estávamos estavam se mexendo sozinhas. Sem vento, sem nada que explicasse aquilo. E todas ao redor do czareviche. 

A expressão de Viktor desabou. Por meio segundo, apenas, mas Elizaveta viu quando aquela máscara fria se quebrou não em choque, mas em uma preocupação quase desesperada. Eliza não esperava por aquilo, para ser sincera. Ele podia ser guarda pessoal de Aleksei há anos, mas aquele tipo de inquietação lhe parecia pessoal demais para alguém tão formal e frio quanto Viktor. Era evidente que havia mais coisa ali do que parecia, mas ela também não tinha tempo para pensar sobre isso. 

— Eu posso explicar melhor lá fora — sugeriu ela, finalmente. — Não acho que é seguro falar disso com tanta gente ao redor.

Viktor, que devia estar com um milhão de pensamentos enchendo sua cabeça, concordou e seguiu Elizaveta para os jardins. 

Do lado de fora, sem a música e o barulho das conversas, Eliza conseguia ouvir seu próprio coração batendo tão alto que parecia ter se deslocado para sua cabeça. Pela primeira vez na noite, teve dúvidas sobre o que estava fazendo, com o estômago se revirando de ansiedade e o ar fresco da noite fazendo muito pouco para ajudá-la a respirar direito. Sem o ruído incessante do baile atiçando-lhe a raiva, ela se viu como estava: sozinha com o caçador que tinha não só assassinado seus pais, como muitos outros. Um caçador que não hesitaria em fazer o mesmo com ela, tinha certeza.

Não, ela não se deixaria ter medo. Não depois de ter chegado tão longe, não quando finalmente tinha Viktor na palma de sua mão. Respirou fundo, empurrando suas ansiedades para algum canto da sua mente em que não pretendia mexer, e apressou seu passo o máximo que podia com os malditos saltos altos em seus pés – por que tinha se deixado convencer a usá-los mesmo?

Seguiu marchando floresta adentro, mesmo quando Viktor mandou que ela parasse várias vezes. Quando ele perdeu a paciência e, vencendo a distância entre os dois a pessoas largos, a segurou pelo braço, já estavam rodeados por uma escuridão que só não era completa por conta da lua cheia e sua luz prateada forte o suficiente para alcançá-los mesmo no meio daquelas árvores densas.

— Explique-se — demandou ele, em um tom cortante que teria sido assustador se Eliza não estivesse impossibilitada de sentir qualquer coisa que não fosse ódio. 

Eliza soltou-se das mãos dele com um movimento brusco, deixando de lado todo o teatro que a tinha levado até ali. Sua voz soou pesada de rancor:

— É você quem me deve explicações, Viktor Malenkov. 

Viktor a encarou, confuso e assumindo uma postura defensiva, enfim. Ainda não parecia estar com medo – afinal, o que uma selecionada poderia fazer contra um caçador com décadas de experiência? Eliza, que já tinha reparado no quanto aquele homem parecia querer economizar suas palavras permanentemente, continuou falando:

— Achei que não ia se lembrar de mim. Eu era só uma criança na época — Eliza abriu o sorriso mais desprovido de humor de toda sua vida. — Mas me pareço bastante com a minha mãe e dela você deveria se lembrar.

— Vá direto ao ponto — respondeu ele, os olhos correndo pelo rosto de Elizaveta, procurando algo que ele pudesse reconhecer. — O que isso tem a ver com Aleksei?

Eliza riu, soando um tanto insana para seus próprios ouvidos.

— Com Aleksei? Nada. A magia do czareviche não tem nenhuma relação comigo — ela adorou ver aquela postura arrogante dele desaparecer de novo. Não esperou que ele dissesse nada, continuando. — Se tivermos que discutir alguma magia será a minha e a dos meus pais. E como você achou que tinha direito de matá-los por causa dela. 

Toda a arrogância de Viktor foi embora, trocada por choque. Não havia o menor reconhecimento em sua expressão, porém, o que estava alimentando a ira de Elizaveta em uma intensidade enlouquecedora. Como ele ousava não se lembrar? Tinham sido assassinatos demais para conseguir distinguir as vítimas? Ele conseguia fechar os olhos de noite e não ser assombrado por nada do que fizera? Monstro.

Com as mãos tremendo e a respiração pesada, Eliza demorou um momento para perceber o que estava fazendo, mas, quando o fez, não parou. O vento passando pelos seus dedos, rodeando Viktor, ainda estava fraco, como a ameaça que era. Usar sua dominação depois de tanto tempo sem ousar fazê-lo lhe rendeu uma descarga de adrenalina excelente em levar embora qualquer insegurança que ela ainda tivesse. Sentia-se apenas com poder, no controle, e com muita, muita raiva.

— Nada ainda, caçador? Minha paciência não é grande.

— Como… Como você pode estar aqui? 

— Pergunta errada. 

O vento aumentou de intensidade, enclausurando Viktor. A sensação claustrofóbica devia ter, enfim, feito ele sentir algum senso de urgência, pois ele sacou a arma que levava na cintura.

Com um movimento de mão de Eliza, o revólver foi arrancado de seu punho, desaparecendo entre as árvores.

— Nada? Nada? — Eliza soltou mais uma daquelas risadas medonhas. — Vou te ajudar, já que deve ter sangue demais nas suas mãos para você conseguir distinguir a quem pertence. Há dezesseis anos você liderou uma caçada em Arsen. 

Os olhos de Viktor se arregalaram, evidenciando que ele se lembrava da ocasião. Ele não parecia menos confuso, porém.

— Não é possível… — ele murmurou alguma coisa a mais, lutando contra o ruído do vento e o ar que deveria estar cada vez mais rarefeito ao seu redor. Elizaveta não se preocupou em reduzir as correntes de ar, chegando mais perto. 

— O quê? Não é possível que você tenha deixado uma cria de bruxa escapar? Que eu tenha conseguido encontrá-lo? Que tenha coragem de fazer você pagar por tudo que fez? — Elizaveta estava gritando e não tinha intenção de parar. Logo depois vieram as lágrimas, quentes e volumosas. Era como se ela tivesse estourado, sozinha, a represa que tinha construído para o choro que vinha guardando há dias. 

— Você… Você é nova demais… — ele conseguiu dizer, com as poucas porções de ar que ainda chegavam aos seus pulmões. Tentou dizer alguma coisa a mais, mas a falta de oxigênio finalmente o derrubou de joelhos no chão junto com um acesso de tosse.

Elizaveta tinha percebido muito depressa, naquela conversa, que não queria nada dele. Não queria respostas, nem justificativas. Tinha todas de que precisava. Só havia convencido a si mesma de que se contentaria com alguma coisa, que ele seria capaz de lhe oferecer algo que aplacasse aquela ira que tinha se instalado em seu corpo inteiro. 

Ela não estava entendendo nada do que ele estava tentando dizer, mas tinha sido o suficiente. Não tinha um pingo de reconhecimento do rosto dele. Não tinha nem ao menos tentado pedir perdão, mesmo que fosse falso. 

Era conflitante perceber que ele nem havia tentando lutar de verdade contra ela. Nem com medo ele parecia estar, encarando Eliza com uma mistura de choque e outra coisa que ela não conseguia entender. 

À merda com tudo. Ela precisava matá-lo. Sem palavras finais, sem tempo para que pudesse reavivar suas memórias ou se arrepender. Ele merecia morrer como os pais dela tinham morrido: sem aviso, sem poder dizer adeus, sem entender o que tinham feito para merecer um final tão bruto. 

Eliza ordenou que o vento aumentasse em volume, forçando Viktor a dobrar-se no chão, o ar sendo comprimido para fora de seus pulmões. Sob o ruído daquele vendaval, Elizaveta soluçava, mal conseguia enxergar com a quantidade de lágrimas nublando sua visão. Tonta e aos prantos, ela não fazia ideia se Viktor estava vivo ou morto, só continuava. Em algum momento ele deixaria de respirar. Em algum momento ela iria parar, provavelmente muito depois que ele desse o último suspiro. Não fazia diferença. Ela só precisava deixar que aquele furacão levasse um mínimo da ira e luto que vinha sentindo. Ficaria horas ali, se fosse necessário.

Não houve tempo para nada disso, porém, quando um par de mãos agarraram seus pulsos, sacudindo-a de volta para a realidade e dissipando seu controle sobre o vendaval. Sem o rugido do vento, a floresta caiu em um silêncio absoluto.

Elizaveta não conseguia saber se eram as suas mãos ou as de Aleksei que estavam tremendo. 

***

— Aleksei — chamou Andrey, a voz um pouco acima de um sussurro e tocando o amigo de leve no ombro. — Você precisa de uma pausa?

O czareviche precisou de um momento até para entender do que Andrey estava falando. Estava há alguns minutos em uma roda de conversas com duas selecionadas, dois nobres da família Balakirev e Lady Yousif, uma das maiores fornecedoras de tecidos do país. Ele tinha perdido o fio da meada da conversa, de fato, mas achava que estava fazendo um trabalho convincente em parecer envolvido no assunto.

— Ignorei alguém? — sussurrou de volta, preocupado em estar sendo rude. Andrey negou com a cabeça, com um sorriso calmo.

— Você só estava parecendo muito interessado no reflexo das luzes no chão. Talvez seja bom dar uma volta e ir atrás de uns minutos de silêncio, eu mesmo já fiz isso várias vezes durante a noite.

Era difícil não se deixar admitir cansaço diante de uma abordagem tão tranquila e livre de julgamentos quanto aquela. Aleksei nem mesmo queria encerrar a noite, só estava rodeado de barulho demais por tempo demais. 

— Tudo bem, tem razão — respondeu, enfim, agradecendo Andrey com um sorriso. Despediu-se das pessoas ao seu redor e foi buscar um canto vazio e escuro onde pudesse se esconder dos outros convidados.

Encontrou seu refúgio do lado de fora, em um dos bancos próximos às portas do salão, mas longe o suficiente para que ele não pudesse ser alcançado pela luz e os olhares das pessoas. 

O alívio foi instantâneo. A música, baixinha e agradável, ainda chegava aos seus ouvidos em trechos. Havia os sons da floresta atrás dele, estalos de galhos, animais noturnos cortando o ar com suas asas e cantos. 

Apesar do que aquela necessidade de solidão pudesse indicar, Aleksei estava feliz. Claro que a magnitude daquele baile, os presentes, as congratulações, o espetáculo de luzes e música eram o suficiente para encantar qualquer um e ele não era imune a nada disso. Mas, mais importante, ele sabia o trabalho que era planejar todas aquelas coisas e quanto seus familiares e amigos tinham participado de tudo. E, por isso, tinha sido fácil andar por aquele salão, com mais conforto do que ele estava acostumado. Aquela noite era uma lembrança de que os últimos anos não tinham sido em vão. Ainda tinha sido capaz de amar as pessoas mais importantes da sua vida o suficiente para ser amado de volta, o suficiente para merecer estrelas de presente. 

Levando tudo isso em conta, estava até um tanto chateado por estar se sentindo tão cansado. Em bailes piores já tinha aguentado mais e nunca tivera muito problema com barulho. Dessa vez, porém, parecia que havia vozes demais, falando demais, o tempo inteiro. Era difícil se concentrar, tanto que ele nem mesmo tinha percebido que o ruído não era compatível com o número de pessoas próximas. 

Quando o som voltou, parecendo duas vezes mais alto em contraste com o silêncio do jardim, Aleksei se deu conta de cada problema daquela situação.

O czareviche parou até mesmo de respirar, escutando, imóvel, enquanto o murmúrio de vozes crescia em número e volume, tão próximo como se estivesse dentro da cabeça dele. Ou quase isso. A sensação mais correta era como se estivesse a centímetros dos ouvidos de Aleksei, cercando-o por todos os lados. 

A pior parte, a que fazia menos sentido, era que ele reconhecia algumas das vozes. Tinha ouvido-as por semanas lhe contando histórias, cantando canções – povoando seus sonhos. Talvez por isso ele não as temesse, não esperasse delas más intenções.

Se alguém se aventurasse para aquele lado escuro dos jardins, contudo, veria em Aleksei a expressão do mais puro terror. Estava tão parado que poderia ser confundido com uma estátua, a palidez anormal do seu rosto ajudaria na impressão. Somente seu peito, subindo e descendo em uma respiração descompassada e rápida, se movia. Para seu azar, – ou sorte, pensando nos acontecimentos que se seguiram – ninguém além do czareviche chegou perto daquele canto do palácio naquela noite. 

Isso porque, apesar de não temer as vozes, as mensagens que elas gritavam para Aleksei eram estarrecedoras o suficiente. 

“Viktor Malenkov está morrendo, vossa alteza.”

As vozes discutiam, gritando umas com as outras e com Aleksei. Pedindo que ele fizesse algo. Demandando que ele não fizesse coisa alguma. Que não era a hora de Viktor ainda. Que já era tempo de que ele pagasse pelos assassinatos que cometeu. Não concordavam em nada além do fato de que Viktor estava morrendo. 

Aleksei não conseguia pensar. Tonto, todo seu esforço estava em segurar-se à borda do banco para não cair, empurrado pelas vozes que queriam que ele se afastasse e puxado pelas que queriam que ele salvasse Viktor. Apesar de parecer exagero, não era: uma força tão invisível quanto as vozes o movia, leve, mas o suficiente para fazê-lo oscilar, perdendo seu senso de equilíbrio mais e mais a cada segundo que passava. Talvez fosse justamente por não conseguir raciocinar que ele não duvidou em momento algum do que as vozes estavam lhe alertando. 

O terror envolvendo Aleksei em um aperto crescente pouco tinha a ver com o absurdo da situação e a magia obviamente ligada a tudo aquilo. Viktor estava morrendo. Viktor, a pessoa a quem Aleksei tinha ligado seu senso de segurança por anos. Uma muralha que ele nunca acreditou que podia ser derrubada. Como alguém assim poderia estar em perigo? E nas mãos de quem, do que? Algo capaz de machucar Viktor quebraria o czareviche no meio em segundos. Não? 

Viktor estava morrendo. E, mesmo que Aleksei morresse junto, não podia continuar sentado ali sem fazer nada.

Levantou-se em um solavanco e o mundo girou ao redor dele, fazendo seu estômago se revirar junto. Lutando contra o enjoo e a tontura, Aleksei se dirigiu para a direção das vozes que o puxavam, adentrando, não sem uma nova onda de medo, na floresta cada vez mais densa e escura. 

Até o momento estivera cambaleando, quase tateando às cegas por entre as árvores com os ouvidos cheios de vozes demais para escutar qualquer coisa e a visão embaçada pela tontura. Quando um vento repentino e nada natural o atingiu no rosto, porém, todos os seus sentidos clarearam. 

As vozes se calaram e o rugido do vendaval caiu sobre ele de uma vez só, mais violento do que todos os fantasmas gritando em seus ouvidos. As árvores se dobravam às correntes de vento daquele redemoinho estático, indicando onde o czareviche devia ir. Aleksei, contra todo seu bom senso e o pavor deixando-o trêmulo da cabeça aos pés, correu até o olho daquele furacão.

Por pouco não caiu de joelhos diante da cena que o aguardava, não sabia dizer se pelo vento forte piorando seu equilíbrio já afetado ou pela imagem de Viktor dobrado sobre si mesmo no chão, com o rosto escondido e nenhuma indicação de se estava vivo ou morto. E Elizaveta, controlando aquele vendaval aos prantos, incapaz de perceber qualquer coisa se passando ao seu redor. 

Sabe-se lá com que força, Aleksei se lançou na direção de Eliza, agarrando suas mãos na esperança de que isso quebrasse o controle dela sobre sua dominação. 

No que seria um dos poucos momentos de sorte do czareviche daquele ponto da noite em diante, funcionou.

Os ventos cessaram, substituídos por um silêncio tão absoluto que Aleksei finalmente conseguia ouvir seu coração batendo tão forte na caixa toráxica que chegava a doer. 

Elizaveta e ele se encararam por um segundo, ambos acordando de seus respectivos transes. As informações foram caindo sobre ele, de verdade, aos poucos. Eliza era uma bruxa. No palácio. Uma bruxa no palácio. E era ela quem tinha sido capaz de derrubar Viktor. De matá-lo.

Viktor.

Assustado consigo mesmo por ter esquecido, Aleksei largou Elizaveta e foi até Viktor, ainda imóvel. O czareviche mal tinha forças para segurá-lo, tamanho o tremor em suas mãos, mas conseguiu virar o guarda de barriga para cima, deitando-o no chão.

Ainda estava lutando contra o próprio desespero e tentando lembrar de alguma medida de primeiros-socorros que pudesse usar ali, qualquer uma, quando Viktor tomou um fôlego grande e abrupto, tal qual tivesse sido salvo de um afogamento, seguido de um acesso de tosse. Seus olhos estavam arregalados em um terror completamente justificável depois daquela experiência de quase morte, mas, mesmo assim, era uma expressão que Aleksei nunca sequer imaginara ver no rosto do guarda.

— Respire — Aleksei não sabia o que estava fazendo, ajudando Viktor a se sentar e segurando-o pelos ombros, esperando que sua respiração errática normalizasse. Só conseguia lembrar de sua mãe, o abraçando e murmurando palavras de conforto quando ele tinha pesadelos. O czareviche não sabia como tranquilizar como sua mãe, muito menos no tipo de situação em que estavam, mas sabia que passar por aquilo sozinho seria muito pior. Assim, continuava ao lado de Viktor, esperando que sua presença ajudasse de algum jeito. — Você vai ficar bem. 

— Eu não…

A voz de Elizaveta, trêmula de choro, choque ou raiva, acordou Aleksei para seus entornos mais uma vez. Era como se seu cérebro estivesse com dificuldade de aceitar todos os fatores juntos, então focava em um de cada vez. E, com as informações, suas emoções se revezavam em ocupar a maior parte do novelo de coisas que o czareviche estava sentindo. Com a voz de Eliza, veio uma incompreensão tão dominadora quanto o ódio que a acompanhou.

— Você não o quê? Achou que não o mataria? Perdeu o controle? — Aleksei jamais imaginara que falaria daquele jeito, nesse tom brusco, com uma das selecionadas. Não conseguia pensar nisso, contudo. Estava se esforçando para não gritar. 

Não. Não acredito que, de todas as pessoas, justo você veio parar aqui. — Apesar de estar claramente abalada, Eliza ainda mantinha a mesma resolução firme nos olhos que Aleksei tinha visto quando chegara ali. — Eu sabia que podia matá-lo e que ele mereceria. 

Num impulso, Aleksei estava de pé, encarando Elizaveta com uma determinação tão feroz quanto a dela. E, engolindo todas as ofensas que lhe passaram pela cabeça, ele se obrigou a perguntar o que era realmente importante:

— Por quê?

Elizaveta encarou Aleksei com algo entre surpresa e desdém. 

— Que diferença faz? Tenho certeza de que você já tem tudo de que precisa para me denunciar.

— Você está certa. Fez a estupidez de tentar assassinato com magia no lugar mais seguro do país, ao ar livre, e foi descoberta por um membro da família real. Nem seu tornado mais forte seria capaz de impedir o número de caçadores que estão neste palácio hoje. — Apesar do esforço em parecer confiante, o czareviche viu a arrogância de Eliza vacilar. Por mais que a ira se agitando no peito dele apreciasse isso, não era do que precisava e se obrigou a respirar fundo. — Ainda assim, eu gostaria de acreditar que tamanha impulsividade não foi à toa. Eu quero uma explicação. 

Ela apontou para Viktor, ainda no chão e bastante frágil, mas que parecia ter voltado a si o suficiente para encará-los com uma expressão indecifrável em seu rosto:

— Ele liderou a expedição que matou meus pais, que me roubou até da memória deles. Minha família foi uma das centenas que ele destruiu e eu tive sorte de poder contar a história. Que justiça eu poderia ganhar sob o seu governo senão tirar dele o que ele me tirou? — A menção aos seus pais trouxe as lágrimas de volta aos olhos dela, mas nada mais em sua postura indicava qualquer fragilidade. Ela levantou uma das mãos, comandando uma brisa suave que começou a rodear os dois. — O que pretende fazer agora, vossa alteza?

Aleksei entendeu a ameaça e, apesar disso, não sentiu medo. Pela primeira vez ele olhou para Elizaveta e viu que junto daquela resolução violenta havia dor demais para que ele pudesse entender. Enquanto sua raiva ia esfriando, dava espaço para uma compreensão que estava dilacerando cicatrizes muito antigas. 

Ele passou grande parte de sua vida aprendendo a ignorar a revolta que o governo que seu pai tocava, e esperava que ele continuasse, lhe gerava. A aceitar que ele financiaria os caçadores com discursos de proteção e prisões protetivas, mas que todos eles teriam imunidade para matar – e, no fim, tempo nenhum na cadeia mudaria algo tão fundamental para um bruxo quanto sua magia. A aceitar as mortes de famílias bruxas como causalidades. Mas, se ele que odiava sua magia e rezava todos os dias para ser capaz de arrancar de si o poder obscuro que corria em suas veias, não conseguia evitá-lo, como poderia ser cabível o que faziam com os dominadores há séculos? 

De fato, que justiça alguém como Eliza poderia obter sob o governo que Aleksei herdaria?

— Viktor cuida de mim desde a adolescência. Não posso deixar que você termine o que começou, eu sinto muito. — O pedido de desculpas saiu da boca de Aleksei antes que ele pudesse impedi-lo, verdadeiro demais. Se ele se assustou com aquela atitude, Elizaveta ficou chocada, o vento à sua mercê saindo de seu controle e parando. — Mas também não consigo me convencer de que você merece a punição que os caçadores lhe dariam. 

Toda a postura defensiva de Eliza começou a desmoronar, olhando para Aleksei como se o visse pela primeira vez. Ele próprio não estava familiarizado com a pessoa que estava tomando aquelas decisões. Se pensasse demais sobre o que estava fazendo, começava a ficar tonto novamente. 

— Não estou entendendo. 

— Deixe a Seleção e vá para casa amanhã cedo. Se há algo que você precisa saber sobre seus pais, me comprometo a ajudar a encontrar. E vamos esquecer do que aconteceu hoje. 

Os olhos dela corriam pelo rosto de Aleksei, provavelmente procurando a mentira, a armadilha que ele deveria estar armando. 

— Como posso confiar em você? Como posso confiar nele? — disse, olhando na direção de Viktor.

Ela não podia, claro. Aleksei não podia controlar Viktor e, em circunstâncias normais, sabia que o senso de dever do guarda o faria reportar tudo o que vira assim que pudesse se colocar de pé. Não tinha nada de normal ali, contudo. Viktor não parecia irritado, ofendido ou assustado. Era impossível dizer o que se passava pela sua cabeça mas, talvez, fosse algo que pudesse compreender o que o czareviche iria lhe pedir.

— Viktor, — Aleksei se ajoelhou ao lado do guarda, pronto para implorar se precisasse — conheço sua lealdade. Sei que não tenho direito de lhe pedir nada quando é você quem me protege há anos, mas, por favor guarde esse segredo para mim. Eu lhe dou o que você quiser, faço o que precisar. Por favor.

O guarda encarou Aleksei por instantes que pareceram se alongar infinitamente. A resposta, quando veio, saiu em um sussurro que, apesar de frágil, era carregado daquela honestidade que o czareviche esperava de Viktor.

— Não direi nada, vossa alteza. Tem a minha palavra. 

Para Aleksei, a promessa de Viktor era uma certeza, mas ele não era o único que dependia do guarda. Ele levantou-se e olhou para Eliza, rezando para que fosse o suficiente.

— Tudo bem. — Ela respondeu, por fim. A raiva parecia ter escoado de seu corpo, deixando-a apenas cansada e terrivelmente triste. — Só… Por quê? O que você ganha me ajudando?

Antes que Aleksei conseguisse escolher, dentre as milhares de razões rodando em sua cabeça, a menos comprometedora, uma sensação muito familiar tomou conta dele. Não a sentia há tantos meses e dessa vez parecia mais forte do que todas as outras. A magia que ele mantinha acorrentada, se agitando debaixo de suas amarras e soltando uma a uma, com mais ferocidade do que ele já tinha sentido na vida.

O impacto foi tanto que Aleksei cambaleou. Sua expressão também não deveria estar muito melhor, pela preocupação que ocupou o rosto de Eliza de repente. 

— Aleksei? 

Cada barreira que o czareviche tentava erguer causava pontadas excruciantes, se não soubesse o que estava acontecendo, acharia que estava tendo um ataque do coração. Dessa vez, porém, não podia só correr para algum canto e se esconder. Precisava tirar Eliza dali e não podia abandonar Viktor naquela floresta. Respirou fundo, cerrando a mandíbula para se impedir de fazer qualquer som que denunciasse a dor que estava sentindo.

— Volte para o salão. Arrume suas malas, dê seus adeus, o que precisar. 

— Mas…

Agora, Elizaveta. — Ele encarou a mulher com o olhar mais impositivo que conseguia. Não tinha tempo para discutir.

Pela primeira vez na noite, ela parecia perturbada. Concordou com a cabeça e tomou o caminho de volta para o palácio a passos rápidos. Sem tempo para sentir alívio, Aleksei se abaixou ao lado de Viktor e passou o braço do guarda sobre seus ombros.

— Você não pode ficar aqui. Me ajude.

Sem precisar de maiores explicações, Viktor apoiou-se em Aleksei para se firmar sobre suas pernas trêmulas e, depois de alguns momentos para equilibrarem-se, seguiram para fora daquela floresta. 

Em certo ponto do caminho, mal dava para saber quem estava ajudando quem ali. Aleksei não conseguia mais se impedir de grunhir de dor a cada corrente que “a coisa” estilhaçava. Estava fazendo o possível para manter Viktor de pé, mas a dor estava lhe fazendo cambalear. Estava apavorado. Não seria capaz de impedir o poder de sair de seu controle e o estrago prometia ser maior do que já tinha visto até então. 

Já estavam nos jardins quando uma pontada mais forte fez o estômago de Aleksei revirar e, por algum milagre, ele conseguiu se impedir de vomitar, o refluxo enchendo sua boca. Não conseguiu evitar que um pouco escapasse pelo canto de seus lábios, porém.

Viktor, que até o momento tinha se limitado a olhar para o czareviche com cada vez mais frequência e preocupação, falou no tom mais exasperado que o czareviche já tinha escutado ele usar:

— Aleksei, você está sangrando.

O guarda nunca tinha se referido ao czareviche pelo primeiro nome e isso foi alarmante o suficiente. O choque piorou quando Aleksei tocou o líquido escorrendo pelo canto de sua boca e viu que era muito pior que sangue. Era denso demais e não refletia luz alguma. Completamente preto.

Se obrigou a engolir aquele absurdo e, com o maior cuidado que conseguiu, largou Viktor em um dos bancos perto deles. 

— Logo algum guarda deve passar por aqui em ronda. Peça ajuda e vá para a enfermaria. 

Conseguia ver que Viktor estava se esforçando para levantar, para impedir Aleksei de ir embora, mas ainda estava fraco. O czareviche tinha coisas demais para dizer ao guarda, perguntas a fazer, mas não podia gastar um segundo a mais ali. Já estava performando algum milagre ao conseguir se manter de pé àquela altura. 

Como das outras vezes, ele deveria ter dado meia volta e retornado à floresta, confiando à ela a responsabilidade de lhe dar proteção e silêncio. Para afastá-lo de todos que ele podia machucar com aquela magia vil. Dessa vez, porém, ele estava assustado demais. Com medo de si mesmo e de se juntar à escuridão que residia entre as árvores. Não estava pensando direito. Estava sendo egoísta e precisava de algum senso de segurança. Precisava de luz, mesmo que “a coisa” fosse engoli-la em segundos. Queria que alguém ficasse ao seu lado, segurando sua mão e lhe dizendo que logo passaria como ele fizera com Viktor mais cedo. 

Como não podia nenhuma dessas coisas, seu quarto era o mais próximo de conforto que podia dar a si mesmo. Lá, pelo menos a memória de sua mãe afugentando seus pesadelos de criança estava mais próxima. 

***

Tinha alguma coisa errada. 

Os avisos eram familiares: arrepios eriçando cada pêlo em seu corpo, ondas de eletricidade descendo por sua coluna, os sinais comuns para alguém tão sensível à magia dos outros quanto Aberash. Dessa vez, contudo, também havia uma resposta em seus próprios poderes, se agitando com uma violência que não os movia há muito tempo.

Quando ela correu os olhos pelo salão e não encontrou Aleksei, se permitiu sentir um pouco de pânico. Estava cedo demais. A expansão deveria acontecer muitas horas depois, quando aquele palácio estivesse em silêncio de novo e ela tivesse um ambiente calmo e controlado para trabalhar. 

Ver Elizaveta indo em sua direção com um medo muito mal escondido em sua expressão, acompanhada por uma Katherine e uma Nastya tão perturbadas quanto ela, não ajudou a acalmar seus nervos. 

— O que houve? — perguntou, imaginando que teria poucos minutos para impedir um desastre. Nada lhe preparou para o que Elizaveta lhe relatou, com a rapidez e precisão de alguém que também entendia que algo estava muito errado, contudo. 

Aberash teve que se forçar a escutar até o fim, distraída por ondas de preocupação e ira. Numa resposta automática àquele caos, a voz de sua mentora ressoou em sua cabeça com o conselho que a fizera chegar naquela situação: você não pode controlar as jornadas dos outros. Ampare-os se quiser, mas não interfira. Eles precisam descobrir seus caminhos, por mais difíceis que sejam.

Devia ter adivinhado o tamanho da dor de Elizaveta e como não teria outra saída a não ser a retaliação. Não podia julgar nenhuma decisão que Eliza tinha tomado. Em primeiro lugar porque ela tinha feito muito pior quando tinha sido sua vez de lidar com suas perdas. Racionalmente, ela compreendia. Em se tratando das suas emoções, contudo, Aberash não conseguia se impedir de ressentir Elizaveta por machucar justamente os dois homens com que mais se importava naquele palácio. 

— Onde eles estão? — Sabia, assim que a pergunta saiu de sua boca, que cada sentimento odioso enchendo seu peito tinha aparecido na sua voz. Deuses, tinha achado que estava melhor do que isso, à essa altura.

As três mulheres à sua frente pareceram se encolher um pouco diante daquela demonstração de raiva nada característica.

— Aberash, eu… — Eliza começou a dizer, trêmula, provavelmente tendo que lidar com emoções demais, também.

— Depois, Eliza. — Aberash a cortou, não esperando que ela achasse o que queria dizer. Não aguentaria escutar qualquer justificativa naquele estado. — Eu prometo ter uma conversa decente, mas agora preciso parar a explosão que você colocou em movimento. Onde eles estão?

— Devem estar voltando da floresta, estávamos mais ao leste.

Sem esperar mais, Aberash saiu a passos rápidos. Não demorou muito para identificar a figura de Viktor, sentado em um dos bancos mais afastados do jardim. Até vê-lo, ela não tinha se dado conta de que metade daquela raiva era, na verdade, o pavor de que ele podia ter morrido. O alívio foi tão grande que nem registrou que ele estava sozinho.

Ao vê-la, ele se colocou de pé, com algum esforço, e começou a dizer alguma coisa que parou no meio, em choque, quando Aberash o abraçou. 

Ela não estava pensando sobre as implicações do que estava fazendo. Até então, lidava com Viktor como se fosse um gato arisco: sem movimentos bruscos, sem surpresas demais, sem demonstrações de afeto que pudessem assustá-lo. Naquele momento, ela precisava confirmar que ele estava inteiro, desculpar-se por não tê-lo protegido como deveria – e, se não conseguia fazê-lo com palavras, aquele abraço apertado, ouvindo o coração dele batendo em um ritmo acelerado e constante, seria o jeito passar a mensagem.

Depois de segundos de imobilidade pura, Viktor passou os braços ao redor de Aberash e descansou a cabeça na dela, num encaixe perfeito para a altura dos dois. Ficaram assim por alguns minutos, em um silêncio que se estendeu até aos seus pensamentos. Um instante de paz no caos que aquela noite ainda reservava. 

Ela podia ouvir os batimentos dele desacelerando até um ritmo plácido, a tensão escoando do corpo dele aos poucos, se apoiando nela com mais naturalidade. Era bem desorientador estar tão próximos, seus sentidos inundados pelo calor da pele dele em contraste com o vento frio, pelo cheiro de terra e grama, resquícios do embate com Elizaveta, e de sândalo, o perfume que ela tinha aprendido a associar a Viktor, mas nunca tão de perto. 

Aberash teria ficado ali muito mais tempo se suas preocupações tivessem ficado caladas para sempre. Sua magia, debatendo-se em agonia, era uma excelente medida de quanto tempo ela tinha, porém. E estava evidente que não havia muito.

— Você está bem? — perguntou, depois de se afastar um pouco de Viktor. Manteve as mãos nos ombros dele, reticente em soltá-lo por completo. Ele, parecendo estar em um impasse parecido, manteve os braços ao redor das costas dela, em um aperto bem mais brando.

— Sim. Mas Aleksei… 

— Eu sei. Onde ele está?

Ele a encarou, começando a entender as inconsistências daquela história toda. Ela teria que arrumar um jeito de explicar o que estava acontecendo, um jeito de afastar a suspeita sobre as outras selecionadas e sobre si mesma. Sabia que, se ele tinha prometido silêncio a Aleksei, não teria que se preocupar com a segurança de Elizaveta. As outras consequências daquele embate seriam as mais imprevisíveis e devastadoras, no fim. Seu coração se encolheu, em uma pontada de dor aguda, diante do pensamento de que sua relação com Viktor, a confiança frágil construída com tanta dificuldade, iria ser reduzida a pó nos próximos dias. 

— Entrou de novo, acho que pelo corredor dos criados. Aberash, você não… — ele respirou fundo e, com uma expressão resoluta ocupando seu rosto, soltou-a. Aberash sentiu o corpo todo reclamar da ausência repentina do toque dele. — Você não deveria ir atrás dele. Nem mandar ninguém no seu lugar. Ele precisa ficar sozinho.

Aberash piscou, surpresa. Há anos imaginava que Viktor sabia mais do que mostrava sobre a magia de Aleksei, acompanhando-o tão de perto. Ainda assim, ela não se permitira esperar que ele fosse protegê-lo depois do que tinha passado com Eliza. Essa reviravolta a encheu de uma esperança que ajudou a apaziguar todos os sentimentos pontiagudos com os quais estava se debatendo. Para ela que precisava, mais do que nunca, estar em seu estado mais equilibrado, foi um presente enorme.

— Eu entendo. Prometo que não vou atrapalhar. — Esperava que Viktor acreditasse nela e que entendesse, ao menos um pouco, o quanto ela queria poder lhe dizer. Teriam que se contentar com aquilo, por enquanto, e olhe que ela já tinha revelado coisas demais. Não podia deixar aquela conversa se estender ao ponto de se complicar. — Vá para a enfermaria, está bem?

Sem esperar que ele respondesse, ela se afastou a passos rápidos. Podia ouvir Viktor chamando seu nome, e teve que fazer força para não olhar para trás. Não tinha tempo, tinha que se lembrar. 

As escadarias silenciosas daquele lado do palácio não ofereceram pista nenhuma de onde Aleksei tinha ido. O lado positivo era que aquela quietude e escuridão ajudaram Aberash a aquietar seus pensamentos e se concentrar na própria magia.

Ela e Aleksei eram espelhos. Se a magia dele se expandia em uma direção, a dela reagiria do outro lado; um choque seria inevitável e tudo que ela precisava era seguir as reverberações que se formariam daquele encontro. 

Depois de entrar em alguns corredores errados e abrir sorrisos carregados de desculpas para estar perambulando por aquele palácio vazio para os criados com que topou, ela finalmente entendeu para onde estava sendo levada e se repreendeu por não ter imaginado o óbvio: o quarto de Aleksei. 

Não precisava nem da própria magia, chocando-se com violência à do czareviche, para saber que tinha acertado quando adentrou o corredor em que o quarto dele ficava. Graças a todos os deuses aquele lado do palácio estava vazio, pensou, enquanto forçava seus pés a continuarem andando apesar dos alarmes soando em sua cabeça, dos nós desconfortáveis que seu estômago estava fazendo diante do que ela estava vendo.

Por cada fresta da porta do quarto de Aleksei, escuridão se acumulava, espalhando-se devagar corredor adentro, absorvendo cada partícula luz.

Ainda há tempo, disse para si mesma, procurando se acalmar. Talvez não para impedir uma explosão, mas ao menos que ela se espalhasse pelo palácio. Ao menos para que Aleksei não tivesse que estar sozinho. 

Parando a poucos centímetros dos poços de sombras, Aberash respirou fundo e, com um movimento de mãos, levantou seis barreiras, uma grande gaiola prendendo a magia de Aleksei aos limites do quarto dele. A magia dele se debateu contra a dela, chocando-se contra aquela clausura, mas não foi difícil, percebeu com alívio. Por mais que as sombras se agitassem contra as barreiras, não conseguiriam quebrá-las. 

Em um corredor agora livre de qualquer resquício da magia de Aleksei, Aberash tentou se preparar para o que a aguardava, sentindo as sombras crescendo em volume, com uma força e velocidade não natural. Nada que ele faça está fora do meu alcance, lembrou a si mesma, forçando calma sobre sua mente agitada. Eram espelhos. Os limites dela eram os dele. 

Resoluta, Aberash murmurou um feitiço para destrancar a fechadura e entrou no quarto.

O chão já estava coberto por aquela escuridão absoluta, sentiente. Ameaçavam subir pelas paredes, agora com mais rapidez, já que não podiam escapar pelas frestas entre os tijolos, entre os vidros e portas. As janelas, grandes e com as cortinas abertas, ainda lançavam uma luz pálida no quarto, ajudando a enxergar alguma coisa, mesmo que com alguma dificuldade. Fechando a porta atrás de si e trancando-a novamente, Aberash demorou um momento para encontrar Aleksei. Estava sentado no chão aos pés de sua cama, a imagem bonita de príncipe desfeita: seu casaco e terno deviam estar perdidos no meio daquelas sombras, a gravata meio desfeita numa pressa de alguém que estava se sentindo sufocado. Tinha as pernas encolhidas próximas ao seu peito e a encarava com a mais profunda descrença.

Em um instante estavam de frente um para o outro, ele mal conseguindo se manter de pé, a expressão contorcida em dor por se levantar tão abruptamente, ela segurando-o pelos ombros para que não caísse. Aberash já tinha estado na mesma posição que ele: sabia que devia estar sentindo como se o dilacerassem de dentro para fora. Assim, era surpreendente que ele ainda tivesse forças para se desvencilhar dela, tentando empurrá-la porta afora.

— Sai daqui — ele disse, a voz tensa e rouca, revestida de pânico. — Eu não sei como diabos você entrou, mas você precisa sair já.

— Alek, eu nã-

Não — ele nunca tinha falado com ela daquele jeito, enfurecido. Provavelmente só não estava gritando por não conseguir erguer a voz mais do que o quase sussurro que estava usando. —  Você já não viu o suficiente? Não está assustada? Não se faça de heroína e vá embora.

Aleksei era mais forte que ela, mas não naquele momento, quando o tremor acometendo-o impedia de segurá-la adequadamente. Com uma facilidade que Aberash detestou, ela se libertou das mãos dele e o segurou novamente.

— Você não vai me machucar — disse, mantendo suas mãos firmes nos ombros dele, por mais que ele tentasse afastá-la. — Você não precisa enfrentar isso sozinho dessa vez, não vou deixar.

Ele olhou para Aberash como se ela estivesse louca. Do ponto de vista dele, essa deveria ser a única explicação plausível, de fato.

— Você não entende…

— Eu também sou uma bruxa — Não havia tempo para ficar dando voltas. — Conheço os seus poderes tão bem quanto conheço os meus. 

 As pernas de Aleksei cederam, difícil saber se pela informação repentina ou por mais uma pontada de dor violenta que o atingiu. Ela conseguiu impedir que ele caísse direto no chão, ajudando-o a apoiar as costas contra os pés da cama.

Não dava para ter muita certeza naquela semi-escuridão, mas parecia haver algum alívio no meio do choque que ocupou o rosto de Aleksei. Aberash tomou o silêncio dele como deixa para continuar.

— Me certifiquei que sua magia não saia deste quarto. Agora tudo o que você precisa fazer é parar de se segurar, Alek.

Quaisquer míseros conforto ou esperança na expressão dele foram embora e ficaram só os olhos dele, cheios de lágrimas que ainda se recusavam a cair, num retrato do desespero.

— Você não sabe do que está falando. Mesmo que você seja uma… — um momento tentando achar a palavra, ou, melhor, acreditar no que ia sair de sua boca — uma bruxa. Minha magia não é como a sua, Abe. Não é como a de ninguém. Eu não posso deixá-la fazer o que quiser.

Doeu ver, em primeira mão, os efeitos do isolamento de Aleksei da comunidade e dos conhecimentos que poderiam ter lhe dado uma relação pacífica com seus poderes. Doeu mais compreender exatamente do que ele estava falando, a diferença fundamental entre eles e os outros dominadores, do quanto para Alek deveria ser pior, devido à natureza e o estigma natural à magia como a dele. 

Passariam daquela noite, daquele divisor de águas, e haveria tempo para se sentar com Aleksei e desfazer os nós de uma vida odiando uma parte tão fundamental dele mesmo. Haveria tempo para as lágrimas, as descobertas e os reaprendizados, mas naquele momento ela só podia tentar persuadi-lo a soltar as amarras antes que elas o fizessem sozinhas, com muito mais sofrimento que o necessário.

— Sua magia não é ruim por natureza, Aleksei. Ela só te machuca porque você a acorrentou em primeiro lugar — Não tinha jeito de dizer aquilo sem cutucar as feridas de Alek. Difícil acreditar que uma dor daquela poderia ser escolha própria, mas era a verdade, por mais que ele nem se lembrasse disso, àquela altura. — Você precisa soltá-la antes que ela dilacere todas as suas barreiras.

Ele balançou a cabeça, negando com veemência. Estava cada vez mais difícil vê-lo, a escuridão engolindo-os aos poucos. As sombras já batiam na cintura de Aberash, ajoelhada na frente de Aleksei.

— Você nunca viu. É… É maligno, Abe. E eu não sei como chamar de volta. Como eu posso te deixar presa em um quarto com essa coisa que eu não consigo controlar? 

Ela queria mostrar a ele. Mostrar exatamente como a magia dela podia se equiparar à dele – como era capaz anulá-la. Não podia, contudo. Precisava guardar cada fiapo de poder para ser capaz de enfrentar o que Aleksei vinha acumulando há anos, num controle tão admirável quanto perigoso. Ainda mais quando ainda não sentia nem sinal em sua própria magia da expansão contra a qual ele estava lutando.

Por enquanto, então, ela só podia rezar para que ele acreditasse nela quando ela lhe contasse o segredo que vinha carregando sozinha há uma década naquele palácio.

— Seu poder não me assusta porque se parece demais com o meu, Aleksei. Se você pode criar escuridão o suficiente para engolir o mundo, eu posso conjurar luz forte o bastante para acendê-lo de novo. O que quer que você precise libertar, eu te garanto que posso conter.

Já não conseguia ver a expressão de Aleksei, reduzido a uma silhueta fraca num ambiente cada vez mais escuro. O silêncio dele não dava pista alguma do que ele estava sentindo.

— Você tem que me prometer que vai sair daqui se não conseguir aguentar.

— Aleksei…

Me prometa — Apesar da fraqueza de sua voz, do quão apavorado ele soava, a ordem era firme. O czareviche tinha tomado uma decisão que implicava em coisas demais, entre elas confiar em Aberash o suficiente para lhe mostrar a parte de si mesmo que ele mais abominava. Se o preço para isso era fazer uma promessa que a bruxa não tinha a menor intenção de cumprir – nem achava que precisaria – que assim fosse.

— Te dou minha palavra que vou embora se precisar — respondeu, pegando as mãos de Aleksei nas suas e apertando-as, tentando lhe dar algum tipo de acalento. — Não temos muito tempo, Alek, comece quando puder.

Houve silêncio, pontuado pela respiração trêmula de Aleksei, por um tempo que pareceu se arrastar, agonizante. 

E, num piscar de olhos, não havia mais luz.

De certa forma, era como submergir em águas profundas. O tipo de quietude que os envolvia agora era fundamentalmente diferente da anterior – era a ausência total de ruído, em que a respiração ou o farfalhar do tecido das roupas deles quando se moviam pareciam tão altos quanto se estivessem gritando, mas, ao mesmo tempo, o som morria em um instante, como se absorvido pelas sombras, também. 

Ainda que a escuridão absoluta fosse perturbadora, Aberash tinha o chão sobre o qual estava sentada e as mãos de Aleksei como âncoras para se lembrar que não tinha caído em um buraco negro. Conseguia entender que o pavor de Alek fosse resposta a anos de enfrentar aquele tipo de situação sozinho e novo demais, mas não achava que aquilo fosse tudo, que justificasse tamanha aversão aos seus poderes. 

— Alek, você precisa soltar todas as amarras — Ainda que ele estivesse tentando se conter, ela podia ouvi-lo grunhindo de dor, mais um sinal de que ele estava se segurando. — Você está se machucando, por favor. 

Depois de mais um daqueles silêncios pesados, ele apertou as mãos delas e, num sussurro frágil que ela só ouviu por estarem naquele oceano escuro e quieto, disse:

— Me desculpa…

Antes que Aberash pudesse perguntar do que ele estava falando, ela sentiu. Ainda não conseguia enxergar nada, mas alguma coisa mudou na escuridão em que estavam submersos. Era como se estivesse viva, fervilhando ao seu redor, sibilando promessas que ela não podia ouvir de verdade, mas que estavam ali, tinha certeza. 

E, de repente, havia sons de coisas pesadas se movimentando por aquele quarto. Coisas rastejando pelos tapetes, coisas minúsculas tilintando suas garras no vidro das janelas, coisas grandes demais para caberem ali dentro, se comprimindo contra as barreiras que Aberash tinha levantado. 

Um pavor instintivo, ancestral e gélido, envolveu Aberash e ela se esqueceu de como se respirava. O ar, comprimido em seus pulmões, parecia esmagar seu coração, batendo errático, no ritmo do desespero que estava paralisando-a de dentro para fora. Mal sentiu as próprias mãos perdendo a força e soltando as de Aleksei, deixando-a suspensa naquela escuridão viva e perigosa. Precisava sair dali, precisava sair de perto daquelas coisas, se alguma delas a tocasse ela poderia morrer ali mesmo…

Entre os sons e silvos das criaturas que rodeavam Aberash em uma ronda de predador encuralando a presa, ela escutou soluços, um choro baixinho.

Aleksei

O que estava ao seu redor não eram coisas, eram seu melhor amigo. E só eram vis porque ele tinha sido educado para acreditar nisso. Que monstros você vem criando sobre si mesmo, Alek?, pensou, o medo sendo substituído, aos poucos, por uma tristeza pungente.

Horrorizada, se deu conta de que ele devia acreditar que ela o abandonara sozinho naquele oceano que devia ser tão familiar quanto detestável para o czareviche. 

— Eu estou aqui — disse, mais baixo do que esperava, como se sua voz ainda estivesse trancada dentro dela mesma pelo pavor. Tateando com cuidado, Aberash foi chegando mais perto de Aleksei até conseguir abraçá-lo. Assim que sentiu as mãos dela sobre ele, Aleksei agarrou-se à amiga com o tipo de agitação que lhe lembrou muito de uma criança com medo que busca colo. Ela precisou se segurar muito para não começar a chorar junto com ele ali mesmo. — Eu não te soltei de propósito, me desculpa. Não vou a lugar nenhum, ok?

Estavam em uma posição um tanto desajeitada agora, um do lado do outro, mas foram capazes de se segurarem no meio daquela escuridão povoada por pesadelos. Aleksei, com a cabeça apoiada no ombro de Aberash, chorava um pranto cansado. As dores de tentar prender sua magia deviam ter ido embora, mas o pavor do que ele tinha materializado o impedia de sentir qualquer conforto.

O ponto positivo do estado de alerta e pânico em que o poder de Aleksei tinha colocado Aberash era que, finalmente, sentia a própria magia se expandindo para se igualar à dele. Também mais cedo do que o esperado, mas não podiam esperar muito mais. As barreiras ao redor do quarto estavam lentamente se dobrando contra o número e força de criaturas ali dentro. Ela precisava controlar aquela situação e depressa.

Os minutos se arrastavam e Aberash usava deles para se afundar mais e mais em uma paz auto-induzida, forçando-se a ficar calma. Aos poucos, os barulhos das criaturas, promessas de horrores e violência, foram virando ruído de fundo. Ter Aleksei ao seu lado, mesmo que tão abalado, ajudava bastante, fosse pelo lembrete de que não estava sozinha naquele escuro, fosse pela responsabilidade de que tinha que protegê-lo. 

E, enfim, estava pronta.

— Aleksei — sussurrou para ele. — Acho que seria melhor se você fechasse os olhos.

Se ele respondeu, ela não escutou, focada em sentir, com exatidão, quanto do poder de Aleksei havia ali dentro. Precisava ser perfeita.

Respirou fundo e, alcançando um lugar muito conhecido dentro de si, deixou o poder sair de seu âmago.

Luz. Branca, potente e cegante, ainda mais depois de tanto tempo na escuridão extrema. Luz saindo pelos dedos de Aberash, do meio de seu peito, cortando as sombras como espadas. Crescendo e crescendo até tomar o quarto inteiro, uma supernova, claridade absoluta queimando as criaturas uma a uma. 

E, então, havia um quarto normal de novo. Havia sombras comuns, a luz da lua entrando suave pelas janelas. Havia os sons de pássaros noturnos do lado de fora, do vento passando pelos corredores. Dos resquícios dos grandes segredos que tinham ocupado aquele espaço, havia apenas Aberash e Aleksei, no chão recuperando o fôlego depois de subir à superfície de águas obscuras. E, no rosto de Aleksei, haviam os rastros das lágrimas pretas como nanquim que ele tinha chorado.

— As minhas foram incandescentes. Quando secaram, era como se eu tivesse chorado cristais minúsculos — disse, limpando as bochechas de Aleksei com as costas da mão. Pelo olhar dele, um tanto enevoado, ela sabia que o czareviche não estava realmente registrando o que ela estava falando. Mesmo assim, achava que continuar o ajudaria a voltar a si. — Você conseguiu, Alek. Saímos os dois inteiros, não saímos? Como se sente?

— Leve — ele franziu as sobrancelhas, estranhando a sensação. — Eu nunca… Não tem pressão, é tão vazio. 

Vazio estava longe de ser a palavra certa para o estado de liberdade em que a magia de Aleksei se encontrava pela primeira vez na vida dele. Para alguém que estava acostumado com o peso que magia contida tinha, porém, tê-la correndo pelas veias sem restrições devia parecer tênue demais.

— Você vai se acostumar — disse, numa promessa muito sincera. Esperava que ele se acostumasse tanto que nunca precisaria trancafiar sua natureza de novo. Que se acostumasse o suficiente para encontrar a alegria em usar seu poder.

Ele ficou quieto por um momento, encarando longamente o quarto, as próprias mãos, o rosto de Aberash. Tentando se forçar a compreender tudo o que havia acontecido. Começou a se levantar, vacilante. Não havia o tremor de antes, só o estranhamento de ter o corpo tão leve e a tontura que isso criava, mas Aberash se levantou para ajudá-lo de qualquer jeito. Ela mesma sentia as pernas menos firmes que o normal.

— Nós precisamos conversar.

Aberash assentiu, empurrando-o com delicadeza até que sentasse em sua cama. Como prova de que ele ainda não estava totalmente em si ainda, Aleksei fez o que ela queria sem reclamar.

— Eu concordo, mas eu não acho que agora seja a hora. Você precisa descansar e eu também, para ser sincera. Me procure amanhã e eu prometo contar tudo o que você quiser.

Ele a encarou, avaliando se conseguia discutir. Os olhos dele, pesados do sono que aquilo tudo tinha suscitado, eram pista o suficiente da resposta.

— Está bem. — A voz de Aleksei já estava soando embargada. Ele, ao menos, teve a presença de tirar os sapatos antes de se deitar na cama, o que fez Aberash rir um pouquinho. A etiqueta realmente fica entranhada nos ossos. — É melhor que sejam respostas muito boas. 

— Você nem imagina o quanto — respondeu ela, mais para si mesma do que para Aleksei, que mal conseguia manter os olhos abertos. — Durma bem, Alek.

*

À essa altura o baile já tinha acabado, o que facilitava as coisas. Aberash preferia evitar Viktor e as selecionadas. Acima de tudo, queria dormir, afinal, os anos se preparando para colocar as cartas na mesa com Aleksei não tinha sido o suficiente para deixá-la imune a se surpreender, a ter medo e a se cansar. 

Não podia fazer tudo o que gostaria, porém. Sabia que se não tranquilizasse Elizaveta, nenhuma das duas dormiria em paz, então era isso que faria. Ao menos tinha reencontrado sua paciência no meio das sombras de Aleksei, conseguiria uma conversa decente com Eliza. 

No caminho até a ala das selecionadas, ela se permitiu um presente, uma das coisas que ela queria muito fazer, como incentivo para espantar o cansaço. Seus poderes estavam vibrando após a expansão, pedindo para serem usados, testados. E, bem, era muito útil que aquele lado do palácio tivesse tantos corredores repletos de paredes de vidro, janelas grandes e pouquíssima movimentação.

Naquela noite, apenas os criados desmontando o baile e Aberash viram o grupo enorme de vagalumes que ocuparam os jardins centrais do palácio, pequenas luzes amarelas, mais do que qualquer um tinha visto, flutuando por entre os canteiros. E, tão de repente quanto vieram, desapareceram, deixando para trás uma bela memória para quem os viu e um rumor bonito para que ouviu a história no dia seguinte.

 


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Notas finais do capítulo

Depois de muito (MUITO) tempo, o baile chegou ao fim, finalmente! Entreguei toda a treta que eu prometi, e espero que tenha atendido as expectativas kkkkkkk

Peço desculpas pela enrola toda. Não tá fácil viver no mundo, de genocídio a tragédia climática, e isso costuma travar minha criatividade. Vamos todos nós fazendo o que dá e, no que concerne minha escrita, escrever é uma das coisas que me dá algum alívio no meio de todo o caos, mesmo que seja para falar sobre bruxas, romance e suas complicações. Hei de manter essa história rolando, com o máximo de constância que eu puder!

E, bom, encerramos uma fase de TKD. Não pretendo dar grandes pausas antes do próximo capítulo, mas eu tô planejando algumas coisas bem interessantes daqui pra frente. Espero que já consiga começar no próximo capítulo, mas até lá eu vou continuar fazendo meu mistério hihi

Muito obrigada pela companhia até aqui e até o próximo capítulo!



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