Setenta e três por cento escrita por Corelli


Capítulo 1
Siga o sistema


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoas!

Essa é uma história que eu venho escrevendo e apagando há algum tempo, depois de ter assistido a última temporada de Black Mirror disponível. Espero que gostem!:)

Dividida em dois capítulos.



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    As coisas nunca foram tão práticas como hoje, você pode dizer. Faça um comando de voz e deixe que suas preferências da manhã, luminosidade média, temperatura amena sejam realizadas, aperte um botão e seu café da manhã está pronto, seu carro espera com o destino já programado. Um avanço excepcional na tecnologia. Algo que décadas atrás não se imaginaria.

 

Você também pode dizer que as coisas também nunca foram tão superficiais. Aperte outro botão e um sistema dirá com quem você vai passar o resto de sua vida. Ou uma parte dela até encontrar alguém mais compatível.  

 

Você condena esse sistema, acha que é uma distorção rasa e equivocada de uma procura obstinada pela felicidade, e, portanto, você não o usa, preferindo os meios antigos para construir seus relacionamentos. Sua irmã gosta de dizer que você parece uma personagem dos romances que lê. Soa nada confiável para alguém que vive nessa realidade, mas mesmo assim você assume os riscos e sabe que o número de não adeptos é ínfimo. Ainda que dê errado algumas vezes, você se mantém firme e, contra tudo o que é dito e mostrado pelas estatísticas, encontra alguém.

 

Até que dá terrivelmente errado e você cede um pouco quando Alex sugere que tente pelo menos uma vez. “Se você se sentir desconfortável, pode desistir ainda no primeiro encontro”, ela diz e, então, você cede mais um pouco até que se veja encarando o aplicativo do sistema. E quase não passa disso.     

 

A tela do seu celular é intimidante, você está prestes a quebrar um princípio que considera valioso, e não tem mais certeza se é uma boa ideia. É só uma ideia boba de Alex. Talvez não tão boba. Você está certa de que ela já não aguenta mais sua tristeza pelo término com Mike, ela é sua irmã e se importa com você, afinal. Ela não gostou dele desde o início e acha que ele não vale o seu sofrimento. Você concorda que deveria tê-la ouvido, ela estava certa antes, e isso te faz pensar que deva ouvir ela agora, talvez ela esteja certa outra vez. Você confia nela.

 

Você só não confia no sistema, mas o que custa uma tentativa?

 

Alex está ao seu lado quando você decide seguir em frente. Ela percebe sua hesitação, mas não pressiona. Você encara seus olhos castanhos e sabe que ela te apoiará independente da decisão que tomar. Então, você se sente motivada. Provar que esteve errada pode ser uma consequência, você entende, mas quando isso seria de grande importância se estivesse feliz? E você arrisca. Seu dedo desliza sobre a tela e joga os seus dados para o processo feito pelo sistema. Não há como evitar o nervosismo que flui pelo seu corpo enquanto não aparece o resultado. Seu coração bate rápido, os dedos tremem e você não consegue desviar os olhos da tela. Então, quando sua coragem parece esvair a cada segundo que passa e você quase desiste, um número finalmente surge.

 

73.

 

Você observa o rosto de sua irmã novamente, ela simplesmente levanta as sobrancelhas e solta um sorriso pequeno em incentivo. Setenta e três por cento. Não é um número muito bom. Você pesquisou, é claro. Muitos estudos dizem que a garantia do sucesso em um relacionamento está acima de oitenta e cinco, o que é uma diferença que você pensa que não pode ser desconsiderada. Largar agora soa como uma decisão sensata, tendo em mente que desde o começo você já sente o fracasso cutucando seu ombro. Mas, Alex percebe o rumo que você está tomando.

 

“Vai desistir, Kara?” Não há sinais de julgamento na sua voz, ela pergunta, apenas. “Não quer saber o nome desse número?” E está curiosa também.

 

Definitivamente curiosa, mas talvez não tanto quanto você.

 

“Talvez um dia a curiosidade ainda me mate”, você diz e rola a página para baixo, Alex ri levemente.

 

A sua expressão é de total surpresa quando lê.

 

Lena Luthor.

 

Você está bem ciente de quem é Lena Luthor, você é repórter, afinal. Mas também, quem não está? Uma das mentes mais brilhantes do século, rica, CEO de uma das maiores empresas de tecnologia do país, um dos assuntos preferidos da mídia e uma lista de outras coisas que fazem parte de um universo tão diferente do seu. Setenta e três parece até um número grande para você e Lena. Alex está tão surpresa quanto você.

 

Se antes o fracasso cutucava o seu ombro, agora você o sente respirando no seu pescoço. Você até chega a pensar se não seria Lena a desistir primeiro. Como alguém como ela se interessaria por você?

 

A certeza do que fazer se evaporou junto com a sua motivação e você não faz  mais nada do que encarar a tela outra vez. Tudo parece parte de uma grande conspiração elaborada para você desistir. Até mesmo Alex, que até pouco tempo era o seu incentivo e de quem você esperaria um conselho agora, não demonstra ter se recuperado.

 

“O que devo fazer?” Ainda sim, você pergunta.

 

Ela se ajeita no sofá, então, encara o resultado também e, finalmente, atinge seus olhos.

 

“Eu não sei, Kara”, ela diz e faz uma pausa, parecendo considerar alguma coisa. “Envie uma mensagem, já que chegou até aqui.” Sua irmã mais velha atira e não soa como uma boa ideia para você.

 

Você, então, tenta argumentar, mas seu celular vibra e você quase o derruba com o susto.

 

Lena Luthor enviou uma mensagem.

 

                         —x-

 

O primeiro encontro foi marcado e você pensa que não poderá ser mais do que desastroso. Você não desiste, embora. É tarde demais para isso. É tarde demais, quando você já está revirando suas roupas à procura de alguma coisa que ainda não tem ideia do que deve ser. O que deveria se vestir em um encontro com Lena Luthor? Alex está ali para ajudar e não só para escolher a roupa, mas também para impedir que você exploda, considerando a pilha de nervos em que se encontra. E é com a ajuda dela que você encontra um vestido que considera bom o suficiente e termina de se arrumar.

 

Tranquila não é uma palavra que você usaria ainda, mas também não está tão nervosa quanto antes. Ou é isso que você tenta se convencer até estar em pé na frente da porta do restaurante. Você imagina uma personificação do desastre acompanhando cada passo seu dentro do estabelecimento.

 

Até que você a vê.

 

Todas as conclusões anteriores desaparecem à medida que você se aproxima e é atingida pelo sorriso que Lena oferece.

 

Uma das mentes mais brilhantes do século, rica, CEO de uma das maiores empresas de tecnologia do país, um dos assuntos preferidos da mídia e de uma beleza capaz de ofuscar todo o resto das coisas.

 

    A capacidade de formar palavras está perdida em algum lugar da sua mente. Não que você não tenha um histórico em se atrapalhar com rostos bonitos. Você só se dá conta de que ela está dizendo algo quando nota a mão estendida à sua frente.

 

“Kara Danvers, certo?” Lena está parada em pé e sorrindo.

 

“Sim…” Você aperta a mão que ela ainda estende e decide que deve falar mais alguma coisa. “Lena Luthor?” Não isso, definitivamente. Talvez ainda seja Lena quem desista. Você tenta consertar sua tolice com um sorriso que parece funcionar quando a voz dela ganha um tom de diversão no convite para se sentar.

 

Você não pensa mais que vai dar errado. Não pensa mais nos doze números que faltam para oitenta e cinco e muito menos na lista de coisas que separa o seu universo do de Lena. A conversa surge fácil e transita entre os mais diversos assuntos. Você se perde em alguns momentos, quando ela ri ou demonstra sua paixão pelo o que a interessa, e é algo que você admite inevitável. Lena Luthor é encantadora. E você está completamente perdida.

 

E surpresa. Você também descobre estar fascinada com o que ela revela. Poderia esquecer que o tempo passa enquanto a ouve e quando acha que não pode se surpreender mais, ela revela algo novo. Como quando ela diz que sua empresa é em grande parte responsável pelas inovações e aperfeiçoamentos tecnológicos dessa era, estando Lena profundamente envolvida em alguns. Especialmente no sistema que a colocou frente a frente com você.

 

Ela não só acredita nele, mas também esteve muito presente no seu desenvolvimento. É esse ponto que você julga o mais contrastante sobre as suas conclusões e as dela. Mas, ainda sim, você não conta nada, não diz que o abominava, que você fazia parte dos não adeptos, e de certa forma se sente mal por isso, quando ela se mostra tão transparente. Você só relata o fato de que Lena foi a sua primeira nesse meio.

 

E você acaba descobrindo que foi a primeira dela também e isso cativa sua curiosidade.

 

“Esse sistema, como qualquer outro anterior, segue certas políticas para comparar perfis e combiná-los ou descartá-los.” Ela inicia sua explicação quando já terminaram seus pratos e compartilham uma boa garrafa de vinho. “Muitas pesquisas foram feitas e comprovaram que uma compatibilidade abaixo de sessenta e quatro está condenada a dar errado, logo foi criada uma ferramenta de descarte automático para isso”, Lena faz uma pausa, então, olha diretamente nos seus olhos e você pensa outra vez no quanto está perdida. “Eu nunca tinha conseguido nada acima desse número… Quem sabe seja um sinal.”

 

Você se dispersa no verde intenso quando ela não fala mais nada além disso.  

 

“Talvez seja um sinal.” É tudo o que você diz e, então, numa inexplicável coragem  alcança a mão de Lena sobre a mesa e aperta levemente.

 

Ela sorri apenas, porém para você é mais do que suficiente.



—x-

 

No dia seguinte, você sente como se um pedaço dela já fizesse parte de si, mesmo que tenha sido um único encontro. Você até mesmo acha que ainda consegue sentir o perfume floral invadindo suas  narinas. A sua mente se prende nisso o dia inteiro.

 

Você quer vê-la de novo.

 

 


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