Solitude escrita por Lillac


Capítulo 21
Solitude


Notas iniciais do capítulo

Bem, é isso! Último capítulo, eu espero de todo o coração que gostem. Tenho algumas coisas para dizer, mas eu vou colocar nas notas finais para não alongar muito.
LEIAM ISSO AQUI POR FAVOR: Seguinte galera. A história se passa em um cenário apocalíptico. Muita violência. Já recebi alguns comentários dizendo que certas mortes foram mais misericordiosas do que se eles estivessem vivos. ISSO É FICÇÃO. Lembrem sempre, por favor, a morte não é uma "saída" da dor. Não é um escape. Isso é uma fanfic. Se na vida real você passa por alguma coisa, por favor procure ajuda. O suicídio/a morte nunca devem ser uma opção.



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— Merda — Reyna praguejou — você perdeu sangue demais.

Percy não sabia como ela podia conferir aquilo quando estava apenas olhando-o de lado, e considerando que o corpo de Rachel ainda debruçado em um de seus ombros tapava metade da visão. A franja do cabelo dela estava grudada na pele, e seus lábios grossos pareciam estranhamente pálidos. Percy pensou que talvez fosse a desidratação. Não conseguia entender como Reyna ainda estava andando (embora conseguisse perfeitamente ver que os joelhos dela tremiam com cada passo).

— Não fode — Percy grunhiu, puxando o braço de volta para si. Como se o gesto houvesse a machucado, Reyna também recolheu a mão dela que o estivera segurando — isso não importa agora. A gente precisa chegar no estacionamento.

— Foi mal, Percy — Frank balançou a cabeça — mas se você desmaiar de anemia, eu não vou conseguir te carregar de volta.

Para ser sincero, ele nem havia pensado nessa possibilidade. Mas a fala de Frank o fez sentir-se ainda mais doente. Eles haviam realmente alcançado o fim da linha.

A mão de Percy latejava de dor, os olhos estavam secos, já tendo expelido todas as lágrimas possíveis, e sua dor de cabeça parecia martelar suas têmporas. Ele se enrolava nas palavras, língua meio adormecida de exaustão, e à esse ponto estava usando toda a energia que tinha para encher os pulmões, esvaziar os pulmões, encher os pulmões...

Ele estava tentando evitar, mas sabia que os dois estavam certos. Inevitavelmente, precisou abaixar o olhar. Seu peito inflou, em chamas, e ele sentiu o vômito alcançando a boca, mas empurrou-o de volta. A facada de Thalia havia acertado bem entre o médio e o anelar. A mão havia sido quase cortada no meio. A dor pulsava como se alguém estivesse arrancando todas as unhas dele ao mesmo tempo. E, simultaneamente, Percy não conseguia mais senti-la. Não conseguia mover os dedos. Não sabia sequer dizer onde começava e onde terminava a dor. Sangue escuro havia jorrado nos primeiros momentos, mas agora fluía com menos intensidade. Os joelhos de seu jeans e o sapato já estavam ensopados.

Reyna ordenou que ele sentasse. Percy não queria obedecer, mas um empurrão de Frank foi suficiente para rendê-lo. Ele não queria acreditar naquilo. Não queria acreditar que Thalia havia...

— Se o portão foi aberto, significa que aqueles foram só os primeiros — ela disse, cuidadosamente colocando Rachel ao lado dele e se ajoelhando na frente dos dois — Frank, fica olhando.

O garoto imediatamente girou sobre os calcanhares e deu as costas para eles, olhar fixo no portão aberto e até então vazio. A luz do incêndio transpassava as janelas abertas do prédio e refletiam na pele suada de Reyna. Ela o observou por um momento, e Percy só conseguiu pensar no que Clarisse havia dito. Que a irmã dela havia conduzido um monte de recrutas até a salvação e então atirado na própria cabeça.

Ele estendeu a mão boa.

— Reyna—

— Cala a boca — ela rosnou, sem olhá-lo. Seus olhos vasculhavam cada centímetro ao redor deles, como se procurasse por alguma coisa — só cala a boca, Jackson.

— Por favor, me diz que você não está pensando nela.

Os dentes superiores de Reyna fincaram-se no lábio pálido. Ela fechou o cenho e bateu com o punho cerrado no chão ao lado da perna de Percy.

— Eu não vou falar sobre isso. Minha irmã morreu fazendo a coisa certa. E se for preciso, eu não pretendo ser diferente.

Ela estendeu uma mão e pegou a barra da camiseta de Rachel. Com uma careta, murmurou:

— Foi mal por isso garota, mas você é a única de nós que não está coberta de sangue.

Inclinando-se, Reyna abocanhou uma parte do tecido e puxou, os músculos da sua jugular protuberantes. A camisa rasgou-se rapidamente, e Reyna pegou a faixa de tecido em uma mão. Percy não queria pensar sobre isso, mas não conseguiu evitar. Se os zumbis mantinham alguma coisa – qualquer coisa – das suas personalidades anteriores... que tipo de zumbi aquela garota seria?

Um pensamento cruelmente divertido o acometeu. Ele pensou em uma Thalia-zumbi, com um taco de beisebol cheio de pregos e grunhindo hits do rock’n’roll dos anos sessenta enquanto perseguia pobres adolescentes assustados. Ela provavelmente riria se Percy lhe dissesse aquilo. Mas Thalia não estava mais ali para rir.

— Ela não vai virar um deles — ele murmurou.

— O que?

— Thalia. Ela não vai se tornar um zumbi — os olhos de Percy se levantaram, embora ele não tivesse certeza se havia feito aquilo conscientemente — porque ela vai ser devorada viva. Eram muitos. Não vai sobrar nada dela.

Não vai.

Sobrar nada.

Dela.

Talvez, muitos anos depois, quando alguma pobre alma fosse revirar aquele inferno, sem saber de nada do que havia se passado ali, eles encontrassem uma faca de caça enferrujada e sem fio, emaranhada debaixo de uma erva daninha ou de um monte de capim. Talvez alguém a pegasse se perguntasse à quem havia pertencido.

Talvez aquela fosse a última memória que Thalia Grace havia deixado no mundo. Uma faca de caça usada para cortar a mão dele no meio, e nenhum cadáver para ser cremado.

Que cruel, Percy pensou. Mas, por algum motivo, esse pensamento não alcançou o resto do corpo dele. Sua expressão não mudou.

Reyna se inclinou de novo até estar segurando a gola da camisa dele. Por um momento estranho, Percy chegou a pensar que ia morde-la também. O pensamento fez seu peito tremer com algo que se assemelhava à uma risada. Reyna o olhou completamente surpresa. Mas logo depois continuou:

— Preciso que você morda isso para não gritar. Não podemos atrair outros para cá e.... e isso vai doer.

Ele obedeceu antes de saber bem o que estava fazendo. Tudo o que ele soube foi o gosto nojento da camiseta suada dele em sua língua antes de Reyna respirar fundo, desenrolar a faixa de tecido da camiseta de Rachel e—

A dor foi tão profunda que Percy jogou a cabeça para trás e atingiu a parede. O mundo ficou todo branco por um momento, e seus ouvidos zumbiram. Ele ouviu Reyna o ordenando para ficar acordado. Não conseguia puxar o ar. Uma sensação histérica assolou sua mente. A dor continuava, e continuava, e ficava pior a cada...

— Eu sinto muito por isso — Reyna disse, e soava sincera — mas eu não podia deixar você perder mais sangue. Vem. Preciso que você levante.

Percy tentou não dar atenção à maneira quase religiosa com a qual ela usava a palavra “preciso”. O lembrava, um pouco, de Nico. Os dois tinham o hábito de dar a maior importância a tudo o que faziam. A diferença era que, quando era Nico falando, Percy se sentia como um responsável negligenciando um garotinho, enquanto com Reyna, assemelhava-se mais à um soldado de baixa patente desobedecendo ordens e prestes a ganhar uma punição (embora ele soubesse — achava, ao menos — que Reyna não iria tão longe).

Uma mão o puxou pelo braço bom e ele encontrou-se de pé novamente. O mundo ainda girava, mas ele assistiu Reyna limpando as mãos nas calças e voltando a colocar Rachel nas costas. Havia um pano enrolado em torno da mão de Percy agora, e o sangramento parecia ter diminuído. Talvez Reyna houvesse acabado de salvar sua vida.

Talvez só houvesse adiado o inevitável.

Eles voltaram a andar.

— Sobre o que você disse mais cedo.

— Hm?

— Sobre estar preparada para fazer a coisa certa — continuou — o que você quis dizer com isso?

— Você está me perguntando o que eu considero como a coisa certa? — Reyna questionou. — Não é óbvio? Nós não somos tão diferentes assim. Eu só quero a sobrevivência.

Uma sensação ruim percorreu a coluna de Percy. Mais uma vez, as memórias daquela briga estúpida no auditório voltaram a sua mente. Mas dessa vez por um motivo completamente diferente. Naquela vez, ele havia suspeitado da lealdade de Reyna. Agora, talvez fosse a hora de questionar sua sanidade.

Não era tão inesperado assim. Que a garota com o instinto de sobrevivência mais brutal que ele já havia visto — a garota que já havia sujado as mãos de sangue de novo, e de novo e de novo, e dado ordens cruéis (e obedecido à algumas, também) — talvez não tivesse exatamente um compasso moral bem alinhado sobre o que era “a coisa certa” a se fazer um apocalipse.

Talvez assim como Annabeth, Reyna estivesse disposta a apostar algumas vidas.

Alguma coisa estalou ao lado deles. Percy congelou. Se fosse um zumbi, ele precisava sacar a arma naquele momento. Felizmente era só mais uma parede desmoronando. No entanto, aquilo fez com que eles precisassem caminhar mais para o lado. Agora estavam quase andando no estacionamento aberto. Havia algo perturbador naquilo, na estranha calmaria e reclusão do lugar. Era quase como se Thalia não estivesse sendo devorada em outro lugar próximo. Percy não queria pensar que era justamente o incêndio que havia matado seus amigos que agora o impedia de ouvir sua prima sendo morta.

Ele engoliu a esfera de angústia que havia se formado em sua boca. Thalia só tinha um desejo. Ela havia conseguido compreender e aceitar a morte do namorado, porque uma parte de si ainda acreditava que ela encontraria felicidade em um refúgio com a família. Percy fechou as mãos em punhos. Pensou nos pais deles, escondidos no bunker de Hefesto naquele momento. Estariam eles comendo e bebendo agora? Discutindo possíveis contornadas estratégicas para a — garantida — crise econômica que se seguiria? Poseidon já estava pensando em como ia equipar sua nova frota de navios para distribuir as remessas da medicação que deveria estar em andamento?

Algum deles, em algum momento, havia parado para pensar neles?

Zeus estaria, naquele momento, preocupado com os filhos? Ou estaria ocupado demais pensando em como o fim do mundo havia limitado suas possibilidades de adultério e que as mulheres do bunker não eram de longe suficiente para satisfazer os desejos dele?

Ele lembrava-se.

De como Jason ia visitar o túmulo de Daryl Grace sozinho, porque Zeus não dava a mínima e a Thalia a odiara demais para perdoá-la, mesmo depois da morte. De como apenas ele, Jason, fora capaz de salvar alguma memória doce da mãe — e talvez fosse ingenuidade. Talvez Daryl houvesse sido uma mulher veneno ambiciosa. Mas ela não merecia ter tido a vida arruinada.

Sally não merecia ter tido a vida arruinada.

Nenhum deles merecia.

Percy lembrava-se. E quando saísse dali, Percy ainda se lembraria. Ele se lembraria para sempre da promessa com Thalia — e disse para si mesmo, que ao contrário de todas as outra feitas por aquela família exemplar, essa seria cumprida. O fim do mundo não ia impedir que ele se lembrasse de Thalia.

— Percy — Frank chamou sua atenção — talvez seja melhor se você ficar segurando a arma.

Percy piscou. Frank estava caminhando na frente dele. De todos, parecia o menos fisicamente exausto, mas havia alguma coisa estranha no olhar dele. Os cantos de seus olhos estavam amarelados, e as irises pareciam inchadas, quase vermelhas. De onde estava, Percy podia ver que uma espécie de crosta havia se formado entorno exatamente de onde a agulha afundara. Frank parecia macabramente com o pai, que Percy havia matado. Mas ele achou que talvez fosse melhor manter aquilo para si.

Ele apanhou a arma, mas não sentiu-se muito mais seguro. De repente, Frank estendeu um braço:

— Estão ouvindo?

Reyna pestanejou.

— O que?

— Esse som... — ele ponderou. E então seus olhos doentes se arregalaram — estão iniciando os motores dos carros!

Foi inevitável. Mesmo que a exclamação de Frank devesse ter surtido algum efeito, tudo no que ele conseguiu pensar foi em como Grover havia dito que a mutação alterava os sentidos dele. Uma pequena esperança se formou dentro de si. Talvez eles ainda não conhecessem tudo sobre o vírus. Frank poderia...

Disparar o sinalizador.

A cortina de fumaça verde cortou o céu com um estrondo. As mãos de Frank seguravam a pistola confeccionada. Ele olhou alarmado para eles.

— Eles vão ver isso... certo? Eles vão voltar para nos buscar?

Alguma coisa não fechava. Ele havia conversado diretamente com Annabeth e Nico. Annabeth havia dito que eles esperariam até que eles retornassem com Rachel e Octavian.

A namorada de Percy podia ser uma apostadora, mas ela não era uma mentirosa.

Alguma coisa estava errada.

— Aconteceu alguma coisa com ela — o corpo inteiro de Percy começou a tremer — aconteceu alguma coisa com a Annabeth.

Ele não precisou dizer duas vezes. Foi como uma reação em cadeia. Os olhos de Reyna se arregalaram, apesar do inchado roxo acima de um deles. Até Rachel pareceu se remexer. Percy tinha total consciência do que havia dito, e o pensamento o assustava por completos diferentes motivos.

Reyna e Frank estavam desesperados por motivos claros (e louváveis). Annabeth era a garota que os havia liderado até ali, a garota que havia lutado com unhas e dentes para mantê-los vivos, e embora tivesse feito decisões questionáveis, sempre teve o bem-estar deles como prioridade. Acima disso, Annabeth era a única que Reyna considerava como igual, e a única que Frank tinha com admiração quase religiosa. Era quase um símbolo vivo na vida daqueles dois.

E Percy conseguia compreender isso. Ele ficava feliz que Annabeth houvesse tido um impacto tão grande na vida dos amigos dele.

Mas eles não eram apaixonados por ela.

Eles não compreendiam a sensação completamente aterrorizante que o dominou no exato momento em que as palavras deixaram sua boca. Como tudo, absolutamente tudo – o prédio em chamas, a dor em sua mão, as promessas, o estacionamento vazio – tudo virou fumaça na cabeça dele. Como a imagem de uma Annabeth, com aquela carranca séria de sobrancelhas franzidas e lábios comprimidos, aquela expressão que ela fazia quando estava pensando, surgiu na cabeça dele e ocupou todos os seus pensamentos.

Como de repente a única coisa que Percy queria era tê-la ali, colocando uma mão no rosto dele e o dizendo que ele era um idiota. A risada tímida dela. A sensação da mão dela na dele, quente e trêmula, mas confiante. Como ele se sentia, senão invencível, mas ao menos um pouco menos aterrorizado, quando ela entrelaçava os dedos com os dele.

O coração de Percy quase parou de bater. Não foi adrenalina ou raiva ou desespero. Foi completa dormência.

Eles não podiam iniciar os carros. Não. Não, não, não.

Por favor.

Não podiam tirar Annabeth de perto dele.

Ele começou a mancar, indo na direção que achava ser a do estacionamento, dessa vez notando como o som que Frank havia dito se aproximava. Sua cabeça repetia o nome de Annabeth. Ele tropeçou. Sua mão bateu contra o quadril quando bambeou, a ponta de dor o cegou por um minuto, mas ele continuou andando, e teria continuado, se Reyna não houvesse gritado:

— Percy!

Foi empurrado para o lado. Alguém caiu encima dele, e ele preparou-se para perguntar à Reyna o que diabos estava fazendo, antes de perceber que não era Reyna. Era Rachel.

— Seus filhos da puta do caralho... — uma voz abafada soou — eu vou matar vocês, seus desgraçados.

Era um dos guardas de Ares. Ou ao menos, estava vestindo uniforme. Um uniforme que havia sido dilacerado no ombro. A mordida pulsava sangue, e o olhar do homem parecia vidrado. Percy quase conseguia sentir o ódio emanando dele.

— Eu vou acabar com vocês — ele grunhiu — vou arrancar os seus braços e dar de comer para os zumbis. Vocês vão morrer igual nós morremos.

Um gemido dolorido chamou a atenção de Percy. Quando olhou para o lado, notou Reyna caída no chão, agarrando desesperadamente uma das pernas. O olhar de Percy focou tarde demais. O soldado avançou e pisoteou com a bota de couro encima de onde a mão de Reyna segurava. Ela soltou um grito de cortar a garganta.

Alguma coisa quebrou dentro dele. Reyna estava chorando. Reyna estava gritando.

Reyna estava morrendo.

O sangue escorreu por baixo dela, até alcançar a mão boa que Percy tinha repousada no chão. Ela arfou e gritou, enquanto o soldado ria loucamente.

— Ares nos disse para abrir a merda desse portão! — Ele cantarolou, em um frenesi histérico — Mas olha que merda eu consegui! Eu estou morrendo, porra! Morrendo por causa de um monte de pivetes desgraçados. Eu vou matar vocês, entenderam?

Frank jogou-se contra ele, e os dois caíram embolados no chão. Mas Frank estava fraco, e cada soco dele ia com menos força. Reyna respirou fundo e esticou uma mão trêmula para a faca, que já havia se cravado até o cabo em sua coxa. Percy começou a ofegar também.

— Reyna!

— Sai, Percy! — Ela grunhiu — Frank! Você precisa ajudar o Frank!

Você precisa.

Percy empunhou a pistola. Mas Frank e soldado estavam se movendo demais, e ele não conseguia ver nada. Seu dedo tremia sobre o gatilho.

— Percy! — Reyna rugiu.

O soldado fincou os dedos na nuca de Frank, e fina crosta rapidamente começou a liberar sangue. O garoto caiu para trás, ficando de bruços. O homem socou sua boca com tanta força que Percy quase ouviu um dente quebrando.

Mas Reyna estivera certa, lá no começo. Percy havia perdido muito sangue. Sua visão estava turva. A arma tremia em sua mão. O soldado limpou o sangue da boca com um sorriso. Só precisou de dois passos para ir até Percy e esmagar sua mão cortada sob a bota. Dessa vez Percy quase apagou de verdade. Ele inclinou-se até estar segurando Percy pelo cabelo e sussurrou:

— Vocês não vão para os zumbis, não — riu. — Eu vou mata-los, bem aqui, e agora.

Enquanto Percy tentava se manter consciente, ele arrancou a pistola de sua mão. A dor pulsava com tanta força que os pensamentos dele começaram a se misturar. Quando o homem andou até Reyna, girando a pistola, Percy pensou ter visto a silhueta de Ares.

— Só atirar seria muito simples. Não. Eu vou fazer sofrerem. Que nem eu e todos os outros sofreram por causa do Ares. Por causa de vocês — ele segurou a pistola pelo cano — me diz, garota, você é boa de briga?

Ele chutou a coxa dela, e Reyna rolou, afundando ainda mais a faca. Percy notou como os movimentos dela estavam mais lentos. Ele queria fazer alguma coisa, mas a única coisa em sua cabeça era o mar de dor que a mancha vermelha na qual sua mão havia se transformado era. E o nome de Annabeth. De novo e de novo. O soldado arrancou a faca da coxa de Reyna e a levantou sob a luz do fogo por um segundo antes de esfaqueá-la mais uma vez.

A dor o fez fechar os olhos quando Reyna começou a gritar.

E Percy chegou à conclusão de que aquele era o fim. Era assim que ele morreria. Sem família, sem Annabeth. Só o peso da culpa o esmagando contra o chão.

Reyna rosnou. Um rosnado de verdade. Ela se jogou contra o soldado e bateu com a testa no rosto dele com tanta força a costa dela tremeu. O soldado mordeu a própria língua. Reyna o acertou com o cotovelo no nariz, três vezes.

Percy conseguiu ver os olhos dela por um momento. Não havia nada naquele olhar além de sangue e medo.

Ela arrancou a pistola da mão do homem e a segurou pelo cano. E então, desceu o braço. O cabo o acertou no rosto. Percy ouviu alguma coisa quebrando.

E no silêncio sombrio daquela cena, a única coisa que ele conseguiu escutar foi Reyna grunhindo com cada golpe deferido.

Reyna rolou para o lado, saindo de cima do soldado. Percy não quis ver em que estado o homem estava. Ao fundo, conseguia ouvir os carros se aproximando. Ele rastejou até ela. Reyna tinha um rasgo na camiseta, que ia até o abdome. Provavelmente muito próximo de onde Luke havia acertado. Filetes de sangue escorriam dos cantos de seus lábios.

— Reyna, Reyna fala comigo! — Ele tentou mover um ombro da garota.

Os olhos dela se abriram só até a metade. Ela cuspiu sangue. Havia um buraco dolorosamente ensanguentado aberto na coxa dela.

— Você disse que ia sobreviver! — Percy berrou, desesperado — Você disse que não ia hesitar! Por que você se meteu na frente daquela facada?!

Ela cerrou os dentes.

— Eu não vou morrer...

Não. Não ia. Percy não podia lidar com aquilo. Não Reyna. Se ela morresse, então que chance qualquer um deles tinha lá fora? Não Reyna. Não a garota à quem Percy ainda devia tantas desculpas.

— ... ainda — ela tossiu. As mãos dela subiram, e Percy viu que ela ainda segurava a pistola — eu vou definhar... até a morte... se você não fizer alguma coisa.

A garganta dele fechou.

— Você disse que ia sobreviver.

— Eu disse que ia fazer a coisa certa — ela pegou a mão boa de Percy e colocou no cabo da pistola. O sangue ainda morno do soldado que ela matado manchando a pele dele — salvar você foi a coisa certa.

— Não! Reyna-

— Annabeth precisa de você — disse. — O mundo precisa dela. Você não pode morrer, Percy. É simples. Eu fiz a coisa certa para salvar minha amiga — ela suspirou — porque eu sei que ela vai salvar o mundo. A sua vida foi a minha escolha certa.

Uma pontada de dor a fez recolher-se, e ela instintivamente levou uma mão até a perna. Seu corpo todo tremia com cada arfada. Percy viu que os dedos da mão esquerda dela estavam roxos, provavelmente quebrados pelo soldado.

— Minha irmã não queria virar um monstro. Eu também não quero morrer assim — ela suplicou, olhando diretamente para ele — Percy, faça a coisa certa.

Quando ela disse isso, sua mão ensanguentada já havia colocado o coldre da pistola encima do próprio coração. Reyna o olhou firme nos olhos. Percy quis pedir desculpas por todas as coisas ruins que havia dito e feito com ela. Naquele momento, ele soube que estava olhando para uma das pessoas mais forte que conhecera...

... no leito de morte dela.

— Escuta, eu não vou sobreviver. Você não vai conseguir me levar de volta — o chão debaixo deles começou a tremer — eu não quero morrer assim — o primeiro carro fez a curva e entrou no campo de visão dele... — por favor.

E passou direto. Seguido pelos outros.

A caravana de veículos miliares passou zunindo por eles como se não pudessem se importar menos com Percy, e a garota que morria diante dele. Ele ficou olhando, congelado demais, enquanto eles desapareciam portão afora.

Abandonados.

De repente, um deles freou com violência. A porta de carga foi escancarada, e Annabeth pulou para fora, o cabelo loiro brilhando no meio daquela imensidão cinza e vermelha.

— Percy...!

Ela caiu no chão, provavelmente machucando os joelhos, mas começou a avançar mesmo assim.

O corpo de Rachel se remexeu.

Reyna o olhou fixamente, apertando mais o cano da pistola contra o peito dela.

— Percy.

Alguém pulou atrás de Annabeth e puxou-a pelo braço. Ela tenteou desvencilhar-se. Frank se mexeu. A voz de Rachel murmurou alguma coisa, e o tronco dela se ergueu, o rosto ainda escondido pelo cabelo.

Percy olhou para Reyna uma última vez.

— Eu sinto muito.

A mão dela ficou mais firme entorno da dele.

— É a coisa certa.

O tiro ressoou tão alto que até o garoto que puxava Annabeth de volta a soltou. Rachel parou de mover. Annabeth virou o rosto para ele horrorizada. Percy sentiu a mão ficando suja com o sangue que fluía do peito de Reyna. Na meia-luz, ele viu os olhos cinzas de Annabeth viajarem dele, para a pistola, e então para Reyna.

Ele tentou se mover. Tentou acenar. Tentou dizer qualquer coisa.

Mas a exaustão havia enfim vencido. Ele não conseguia fazer mais nada além de olhar para o corpo morto de Reyna e desejar que ele ainda tivesse alguma lágrima para chorar. E então para Annabeth, e pedir a todos os deuses que conhecia que ela algum dia pudesse perdoá-lo.

Só Frank não parou.

Ele ergueu o tronco em um arco e começou a andar. Um passo depois do outro. O peso mal distribuído.

A crosta havia se restituído na nuca dele.

Annabeth começou a correr de novo, mas foi segurada mais uma vez. Ela chutou e berrou, mas era como se a voz dela chegasse nele anos depois. Frank tomou velocidade. Ele lembrou-se do que Grover havia dito. Sobre simplesmente acordar, fraco demais para se mover ainda.

Frank não estava fraco.

Ele poderia estar errado, claro. Mas era Annabeth do outro lado. Ele não iria arriscar.

Percy ergueu uma mão e descarregou o pente da arma em Frank. Os quatro primeiros tiros acertaram sua costa, mas ele não parou de se mover. Um quinto, mais alto, perfurou sua nuca. Ele caiu sobre as mãos e começou a engatinhar. Percy esperou pela oportunidade certa, mirou, e acertou-o acima do ouvido.

Não importava quem era.

Nenhum morto-vivo ia machucar Annabeth.

Frank despencou para o lado, tremeu uma vez, e então a poça de sangue se espalhou em torno dele.

O cansaço começou a apaga-lo. Percy sentia o calor emanando do incêndio nas costas. Rachel o alcançou, e ele a trouxe para perto, rosto descansando em seu ombro. Mas não foram os olhos que sua melhor amiga abriu.

Annabeth gritou o nome dele do outro lado do estacionamento. O garoto a segurou pelo torso e ergueu-a do chão. Ela continuou gritando, tentando alcança-lo.

Ele sentiu o hálito de Rachel na base do pescoço dele.

Sua aposta deu errado, Annabeth, ele pensou. E, mesmo assim, quando Percy fechou os olhos e respirou fundo, ele sentiu-se em paz. Uma dor excruciante em seu peito o fazia pensar no fato de jamais conseguiria abraça-la de novo, passar as mexas de cabelo loiro para trás das orelhas avermelhadas e beijar a ponta do nariz dela. Que jamais cresceria para vê-la se tornar uma arquiteta brilhante. Que jamais teria a sensação de visitar Sally em uma preguiçosa tarde de domingo, com Annabeth e ouvir sua mãe contanto histórias embaraçosas dele para a namorada.

Ele jamais teria nada disso.

Mas estava tudo bem. Percy houvera tido uma boa vida. Estivera cercado de amigos, do amor da mãe, eventualmente, do amor mais avassalador que ele já sentira. Ele queria fechar os olhos pensando na sensação das mãos dela correndo pelo cabelo dele.

Era a vez de Percy experimentar pela primeira vez o que era rumar sozinho naquele infinito de incerteza. A vez dele saber o que era verdadeira solidão.

Rachel grunhiu.

Percy pensou em Annabeth lhe dizendo que o amava, e deixou que o fim do mundo, enfim, o consumisse.

Pela primeira vez (e também pela última) em completa solitude.  


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Notas finais do capítulo

Como alguns de vocês devem ter percebido, esse é o último capítulo, mas a história não está marcada como "terminada". Isso é porque, como eu já disse algumas vezes, ela só será concluída com o epílogo (que não vai demorar muito).

Eu tô querendo falar disso desde o primeiro capítulo: essa história, como a maioria das que eu escrevo, era para ser uma one-shot. Eu tinha ela (quase) toda programada na minha cabeça, e ia ser aquelas ones ENORMES que você encontra mais no AO3 e tal. Os acontecimentos que eu tinha certeza que entrariam na história (além do romance, claro) seriam as brigas do Percy com a Thalia e a Reyna, o resgate por parte da Clarisse, a morte da Reyna (que originalmente ia rolar de forma diferente) e, claro, o final. Então até hoje eu tô meio surpresa que essa história acabou se transformando em 20 capítulos não lá muito curtos.
MINHA PERGUNTA É: Se ela tivesse sido uma one-shot, vocês acham que teriam lido? HSUHAUSA É uma grande dúvida minha.

Enfim, eu vou deixar o resto para as notas do epílogo. Como sempre, eu espero que tenham gostado, e comentários são sempre apreciados!



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