O Coxinha e a Mortadela escrita por Rick Batista


Capítulo 1
O Coxinha e a Mortadela


Notas iniciais do capítulo

Um conto cheio de humor, encharcado de romance e temperado com tretas políticas. Espero que se divirta.



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Havia fumaça. Muita fumaça. Meus olhos ardiam quase tanto quanto minha garganta, e o som da minha tosse quase abafava a gritaria e sirenes.

Eu já tinha perdido o senso de direção fazia tempo. Só sabia que onde tinham caras fardados atirando, era com toda certeza, a direção errada. Ela caiu de joelhos, acho que atingida por alguma coisa. Eu devia ajudar, eu sei, mas já tinha outro fardado chegando em cima dela.

Naquela hora era tudo um caos, parecendo uma zona de guerra! Eu já estava me conformando quando ela olhou pra mim, com aquele jeitinho de cachorro pidão. Que grande merda! Aquele não era mesmo o meu dia.

*** 

Aquela era uma tarde fria como a bunda de um zumbi. Com um sol covarde escondido atrás de uma barricada de nuvens. O protesto estava marcado para as 15h00, no centro do Rio, mas eu mesmo havia chegado as 16h30 na Avenida Presidente Vargas.

Nunca fui de ir nessas coisas, mas a situação do país piorou tanto, mas tanto, que nem um cara como eu, sempre cético sobre políticos conseguiu ficar parado. Eles roubaram demais, mentiram demais, riram demais da nossa cara. É, eu tinha que fazer alguma coisa! Como atirar um míssil pra explodir o Planalto estava fora de questão, sair no protesto já era alguma coisa.

E já que era pra ir, usei o kit completo. Camisa do Brasil, faixa na cabeça e uma placa com uma frase bem bolada que não lembro mais.

— Caraca...parece que a PM inteira veio pra cá. – disse o Mauro, um dos carinhas com quem marquei de vir, pela internet.

— E não é? – respondi, subindo ao lado dele no batente de entrada daquele prédio comercial, para ver melhor. – Tinha que ver quando cheguei aqui. Dava uns dois guardas por pessoa.

— É, cara. Diferença que em protesto de gente de bem, ninguém apanha. -
Eu me limitei a sorrir em resposta. Era verdade. No nosso protesto a PM não precisava descer o cacete em ninguém. Isso porque eram todos gente de bem. Isso, pois estávamos do lado certo.

As 17h00 o Centro da cidade estava cheio. Muitas famílias, mães com crianças, velhinhos, casais. E muitos, muitos jovens. Várias patricinhas gatas da zona sul e Barra da Tijuca inclusas. Umas, brancas padrão europeu, outras morenas ou só bronzeadas de praia. Bundas empinadas em calças apertadas, seios volumosos e cabelos sedosos, sorrisos brilhando e eu ali babando...aaahhhh.

— Ô doido, tu não parar de secar as minas, vão tudo desidratar. – zuoou o sujeito de quem não lembrava o nome e tinha vergonha de perguntar pela segunda vez. Outro colega de Facebook.

O som dos risinhos das garotas que passaram do meu lado terminou de me deixar sem jeito, sorrindo constrangido. É, dezesseis anos. Idade de votar e pensar em sexo. Claro que não nessa ordem e nem com a mesma frequência.

O som de rojões estourando a cima me fez relembrar o motivo de estarmos ali, e logo a minha voz se uniu a deles dois e de outros milhares, em um coro contra a corrupção e pelo país. Eu erguia minha placa enquanto seguia o fluxo da multidão, ao som de músicas e discursos vindos de carros de som ou palanques. E nossa, era emocionante! Fazer parte de algo como aquilo, se sentir um pedaço de algo tão maior...aquilo me deixou eufórico!

A noite chegou. Tiramos fotos em grupo pra postar na net. Coisas assim tinham que ser registradas, sabe como é. Momento histórico. Confirmei feliz as várias curtidas e comentários nas fotos do Facebook em poucos minutos. Claro que no meio tinha um ou outro hater criticando, mas nada que um bom bloqueio de perfil não resolvesse. Meu professor de história, um primo distante, minha tia Célia...e daí que ela era da família? Paciência zero pra gente bitolada. O bloqueio era certo!

— Rafa, faz um favorzinho pra mim, faz? – a voz era suave e sedutora, vinda de lábios carnudos posicionados logo a baixo de olhos verdes e bem a cima de grandes seios em um decote. Meu Deus, era o fígado ou a alma o que ela queria?

— Oi, faço sim. – respondi no automático, enquanto me esforçava para desviar os olhos daquele par de seios maravilhoso.

— Sabia que você era um cara legal. Olha, a galera tá morreeeendo de fome, então faz esse favorzão e pega um lanchinho pra gente. Aqui tem dinheiro pra refrigerante e hambúrguer pra nós três aqui. – E apontou para os outros dois com quem fui. O Mauro e o... Daniel. Só então lembrei do nome dele, e que ficou de encontrar com a namorada...que só podia ser ela. Que droga. – A gente fica por aqui te esperando, gatinho.

Eu concordei, fazer o que. Sai tentando não focar na cena da gata sendo agarrada pelo Daniel, os dois rindo. O Mauro ria também, mas conversando com outro pessoal que encontrou por lá. Então lá fui eu atrás de uma lanchonete minimamente descente. No caminho vi um pessoal tirando self com a polícia. E claro, fui tirar também. Os policiais estavam com aquela cara de bobos, por conta de toda a atenção inesperada. Fazer o que, gente de bem não tinha motivos pra ter medo da polícia militar. Se os comunas tinham, boa coisa que não deviam fazer.

Opa, outro comentário escroto na minha foto com o PM. Bloquear, excluir, sorrir. Nada melhor que fazer a limpa nos contatos. No meu face não queria gente bitolada. Só gente de bem. Gente que nem eu.

Não demorou pra me dar conta que estava tudo fechado. Verdade, centro do RJ no domingo a noite era mais vazio que minha carteira, e menos usado que as camisinhas que carregava nela. Não que eu fizesse sem...eu só não fazia mesmo.

— Opa, opa, cuidado ai, ca... – fechei a boca e outra parte do corpo, assim que o marombeiro me encarou, com seus dois de altura por dois de largura.

— Vê se olha pra frente, o babaca! – disse o sujeito que vinha pela contramão, a largura do braço me fazendo concordar plenamente.

— Foi mal. – Respondi, abrindo caminho pra ele e esquecendo o amor próprio em nome da sobrevivência.
Vale lembrar, na testa ele usava uma bandana escrito “paz”.

Comecei a notar que tinha bem mais gente retornando pela Rio Branco. Esquisito. Mas quando eu pensei em perguntar pra alguém o que estava acontecendo, eu a vi, lindamente gostosa. Uma barraca de lanches, tão especial quanto única.
O destino parecia querer nos ver morrendo de fome, pois foi eu avistar a barraca para o fluxo de gente voltando aumentar. Acho que só quem continuava em frente eram os guardas. Estranho. Mas onde tem polícia, está seguro. Ao menos foi como raciocinei, não muito bem raciocinado.

— Senhora, tem o que de comer? – perguntei pra coroa, tão gorda quanto velha, e tão sorridente quanto engordurada.

— Então, filho. Tem cachorro-quente, x-tudo e salgado. – respondeu ela, entregando o lanche de um casal.

— É, vai ter que servir. – Falei pra mim mesmo, conferindo o dinheiro que deram. – Me vê três x-tudo pra viagem, e pra mim...

— Coxinha, aposto.

A voz veio de uma garota ao meu lado, camisa do Che Guevara e faixa vermelha na testa, me olhando com aquele sorriso debochado. O que mais me deu raiva, foi que ela acertou.

— ...um cachorro quente. – voltei a falar com a dona, ignorando a esquerdista intrometida (apesar de bem bonitinha, a bandida). – E quatro  Coca-Colas, por favor.

Parei de ignorar quando ouvi o risinho.

— Que que houve, esquerdopata?

— Isso, dá mais grana para as multinacionais estrangeiras. É por causa de gente que nem você que a indústria nacional não cresce mais! – E dito isso, enfiou a mão na mochila. – Tia, me vê um guaraná natural, faz favor.

Foi minha vez de rir, quando notei o que ela tirou de lá além da grana. Um embrulho com pão...e mortadela.

— Tá rindo de que, seu fascista?

— Já vai comer seu pagamento, tão cedo? O guaraná eles reembolsam ou tá fora do contrato pelo protesto?

— Isso eu trouxe de casa, seu idiota! – respondeu, vermelha.

— Tá né, se você diz...

Não trocamos mais farpas, nos focando nos celulares até a hora da senhorinha da barraca estender a sacola de lanches pra mim. Paguei tudo com a grana deles (taxa de entrega, não iria mais bancar o otário) e me preparava pra sair de lá, quando ouvi:

— Adeusinho, coxinha. Cuidado pra não engasgar com a salsicha na boca.

Me limitei a levantar o dedo do meio, tomando o rumo de volta.
Mas que garota abusada, me peguei pensando enquanto abria meu refrigerante. Mas com olhos bonitos, e um sorriso que...não, não e não! Tratei logo de afastar aqueles pensamentos rebeldes. Ela fazia parte do grupo inimigo, nada de confraternização, aliança e muito menos pegação. Devia pensar com a cabeça de cima, e não com a de baixo.

Senti um pessoal me olhando estranho. Teriam me visto conversando com a comunista? Estariam pensando que eu ia esquerdar? Até levantei a placa de novo, pra mostrar que fechava com o lado certo. Mas...estranho. Pareciam me olhar mais fechado depois disso.

Outra coisa esquisita: percebi que estava tudo meio monocromático. Quer dizer, se antes eu só via verde-amarelo-azul e branco, agora parecia que as camisas, bonés, bandanas, faixas e placas eram de uma única cor. Tudo da cor...vermelha. Opa, como assim "vermelha"?
Eu travei, totalmente congelado ao me dar conta de onde estava. No meio de um protesto de Esquerda! Mas tipo...como assim!?

Sai do transe com um esbarrão que quase me fez ir ao chão.

— For parar, dá a seta, o babaca! – berrou o comuna atrás de mim, seus dois de altura por dois de largura me fazendo pensar que cada lado tinha seu próprio exemplar de brutamontes brigão.

— D-desculpa ai...– gaguejei, sentindo olhares curiosos de gente parando pra me observar.

— Mas que porcaria de roupa é essa? – questionou ele, seu dedo da grossura do meu pulso cutucando meu peito.

Eu emudeci.

— Companheiros, tem um fascista infiltrado aqui!

Congelei mais ainda, tremendo de cima a baixo. Cada vez mais gente parava, cada vez mais olhos semicerrados e acusadores. Santa mãe do céu, eu seria linchado!

— Lanche grátis! – Foi tudo que pensei em gritar, jogando x-tudos e Coca-Colas para o alto. Um sacrifício desesperado.

Acho que nos filmes esse truque só funciona quando é com dinheiro.

— Au! O desgraçado jogou uma lata na minha cabeça! – voz de mulher.

— Mamãe, o cacholo-quente sujô eu. – voz de criança.

— Ai, Jesus, minha coluna! – voz da velhinha que derrubei enquanto corria.

— Peguem o fascista! – Meus perseguidores gritaram em coro, querendo me dar um “coro”.

Corri como se não houvesse amanhã!
É impressionante como o instinto de sobrevivência nos tira totalmente o medo de fazer Parkour. Eu pulava, corria e desviava de tudo que fosse vermelho enquanto ouvia as vozes de gente atrás de mim se multiplicando.
Vez por outra, desviando de mãos que tentavam me segurar.
Ganhei uma vantagem, mas era só questão de tempo. Eu estava exausto, encharcado de suor, sujo e desesperado. E foi aí que enxerguei minha saída. Tipo, o Comunismo me salvou!

— O povo não é bobo, a baixo a Rede Globo! – Sim, era eu. E essa não seria uma imagem que eu postaria no Face.

Bandeira vermelha cobrindo o corpo e boné cobrindo a faixa. Eu era um deles naquele momento, ao menos por fora. E devidamente disfarçado eu seguia o fluxo, um perfeito esquerdista. Só de pensar naquilo, já me dava coceira!

E após seguirmos um tempo pela Carioca, chegamos na altura da Cinelândia. Eu sei, me afastei demais de onde meus colegas ficaram esperando, mas só que eu estava assustado demais com o risco dos vermelhos desconfiarem de mim pra ter coragem de sair. E o pior, nem podia falar com os caras onde vim parar, pois na correria dei adeus ao celular. Trágico.

Então percebi o movimento diminuindo...as pessoas parando e falando alto. E ao subir num banco de praça, pude enfim ver a luz no fim do túnel. As cores do Brasil, uma multidão na direção contrária a nossa. Meu verdadeiro grupo. Meus iguais.

Toda a questão se resumia a como chegar ao outro lado sem ser linchado no processo. Havia um tipo de cordão de isolamento improvisado entre os grupos, com dezenas de pms separando. E aí vinha a questão: se tirasse o disfarce cedo demais, seria morto pelos vermelhos. Se demorasse demais, seria linchado pelos meus. E se não conseguisse passar, podia ser detido pela poli...

— Ai! – Uma latinha acertou minha cabeça, fazendo um galo e derrubando o boné.

— Tsc, tsc, tsc. – Voz conhecida, em seu All Star vermelho que pisava meu boné roubado. – Pode explicar o que faz com tudo isso?

Puxei o boné de volta, com força, colocando de volta. Era ela, com o mesmo sorrisinho debochado.

— Eu...tipo...quase fui linchado. – Sussurrei, bem perto, morrendo de medo de ser denunciado. – Então se puder...por favor...

— Você é muito comédia, mesmo. – E riu, ajeitando meu boné. Depois me encarou de cima a baixo, braços cruzados. – Mas até que não fica feio vestido assim. Podia aderir ao estilo. O que acha, companheiro..?

Eu apenas sorri, sem graça.

— Rafael. Mas todos me chamam de Rafa. – E percebendo a confusão geral, perguntei. – O que tá acontecendo, afinal, cumpanhera..?

— Mariana, ou Mari, senhor Rafa. Então, isso é o que rola quando marcam dois protestos opostos para o mesmo dia no centro da cidade. O nosso tudo bem, pois foi organizado pelos movimentos sociais e representa a vontade do povo. Já o de vocês...

— Aaahhh, tá. Então no nosso não tem povo não, tem ET!

Ela riu, e logo abaixou a viseira do meu boné, pra irritar.

— O da Direita foi organizado pela mídia golpista, o mercado e a elite branca. – dizia ela, olhos brilhando. – É bem diferente.

Foi minha vez de rir, só parei quando começaram a me encarar.

— E eu lá tenho cara de “elite branca” pra você?

— É que você é só massa de manobra. – respondeu ela, com aquele sorrisinho tão bonito quanto irritante.

De repente, som de estouros! Gritaria e corre-corre. Eu travei, vendo a fumaça se erguendo a distância e uma barulheira dos infernos.

— Olha, você deu azar. A chapa começou a esquentar já. – E dito isso ela me puxou pelo braço, me tirando do meio daquela algazarra com a perícia de uma gatuna. – Se pensava em voltar para o seu lado, acho melhor esquecer, porque a “Tropa” tá bem no meio.

Som de disparos, muitos! Eu me abaixei, com medo de virar capa do Meia-Hora ou outro jornal sangrento qualquer.

— Sério que tão atirando na gente?

— É bala de borracha, bobão! – zuou ela. – Não mata, mas dói pra caramba.

E me mostrou uma marca no ombro direito, sequela de uma dessas. Não deu pra evitar notar a marquinha de biquíni, nem o belo par de seios que se mostravam parcialmente.
Ela ficou vermelha ao perceber, e virou as costas, se arrumando.

— ...homem é um bicho tarado, mesmo!

Pior que é, pensei. E não pude deixar de rir. Então percebi aquilo rolando em nossa direção.

— Ei, ei, que treco é esse aqui? – E apontei para o cilindro que parou na nossa frente.

— Droga...drooooga! – E chutou pra longe, bem a tempo de evitar o pior da fumaça. – Isso é gás lacrimogêneo, bobão.

Ouvi a gritaria, tosses, e gente esfregando as mãos nos olhos ou tapando boca e nariz com alguma coisa. Quanto a Mari esquerdinha, pegou a camisa de manga que tinha amarrada na cintura, encheu de vinagre que tirou sei lá de onde, e colocou no nariz.

— ...vocês pensam em tudo mesmo. – Disse eu, percebendo que não tinha nada pra usar como proteção. Usasse a bandeira ou boné, seria linchado quando vissem o verde e amarelo por baixo.

Então ouvi o som de outro cilindro quicando. Outra bomba de fumaça que começava a soltar mais gás que eu, depois de bater um pratão de carne com ovo e repolho.

— Chuta que é macumba! – Gritei, enquanto tecava o treco pra longe.

— Não acredito que você falou algo tão preconceituoso assim.

Antes que eu tivesse tempo de responder, notei que meu chute não foi dos melhores. Que a bomba bateu no poste e ricocheteou para o lado de outros esquerdistas.

— Perna de pau! - Gritaram, xingando. Parte de mim achou bem feito.

Eu, começando também a tossir, tentei acompanhar o passo dela, mas foi ficando difícil no meio daquele labirinto de gente e fumaça. Acabei me perdendo da garota.

— O POVO RESISTE!

— FASCISTAS NÃO PASSARÃO!

— FORA MILICOS!

Primeiro ouvi os gritos. Como aquela merda que você sente o cheiro antes de ver. Eles vinham de várias dezenas de manifestantes de esquerda, os tais Black Blocs, tacando pedras, rojões ou placas de ferro contra a tropa de choque. Uma barricada improvisada fazendo a separação.

E do outro lado...centenas de policiais. Escudos de corpo, capacetes com máscara, proteção corporal e cassetete. Era um exército, e eu estava ali, no meio da guerra. E o pior. Estava do lado errado!

Só voltei a realidade quando achei a menina. E quem diria, ela estava... A maluca estava tacando pedra na polícia!

— Vem cá, você é burra ou idiota!? – Gritava, segurando o rosto dela com as mãos. – Quer mesmo apanhar da PM?

Ela me empurrou em resposta, os olhos molhados.

— Você não entende nada. Não sabe de nada! – agora com a camisa funcionando como máscara do nariz pra baixo. – O protesto era pacifico, sempre é. Até eles resolverem usar violência contra a gente, na covardia.

E começou a se afastar de mim, mas dessa vez eu não deixei a esquerdista sumir de vista. Até porque, ao menos a gente estava mais distante do confronto. Num canto mais calmo e com pouca fumaça, pude ver umas coisas que, pra ser sincero, eu não queria. Gente machucada...chorando.

Tinha uma senhora já de idade, caída no chão, acho que com dificuldade pra levantar. Quando vi, a Mari já estava lá, ajudando a senhorinha a ficar de pé de novo. 
Um carinha da imprensa tinha a testa sangrando, enquanto era ajudado por outro que esfregava os olhos e tossia, por efeito do gás. Um casal se abraçava assustado, protegendo uma criança ainda pequena que chorava sem parar. Acho que não sabiam pra onde ir no meio daquele caos todo. Tipo barata, quando você enche o quarto de inseticida e não deixa saída.

Vi um monte de estudantes machucados, todos adolescentes. Um grupo de professores gritando revoltados que aquilo era autoritarismo, desproporcional e outras palavras mais difíceis que devem ensinar nos cursos de humanas. Eu podia sentir a raiva ali, e cara, a polícia tava nem aí, descia o cacete em quem estivesse no caminho. E bem, tinha gente que eu até achava que provocava demais mesmo, ia pronto pra guerra. Mas tinham outros que não. Gente da paz, que tava só defendendo suas ideias.

Podiam até ser ideias meio burras ou nada haver, mas nada que merecesse aquilo.
Minha cara deve ter me denunciado, pois quando me dei conta ela estava do meu lado, me encarando.

— De perto é bem diferente de ver pelo youtube ou tv, não é?

Enquanto eu pensava no que responder, senti uma mão no meu ombro.

— Olá, diz umas palavras aqui pra gente sobre o protesto, guri. – O pedido veio de uma mulher com camisa de um grupo de Esquerda famosinho do Facebook.

Eu exibi um daqueles sorrisos amarelos, enquanto a câmera focava na minha cara, já tão vermelha quanto o disfarce que usava. Minha cor piorou quando ouvi o risinho dela, quebrando o gelo e se divertindo com a cena.

Tentei enrolar, resmungando um improviso qualquer de cabeça baixa, com medo de ser reconhecido depois pelas redes sociais.

— Fala pra fora, guri! E olha pra lente, assim não tem como gravar. – A repórter exigia, me encurralando mais que a tropa de choque. – E tu, guria. É namorada do piá?

Ela me olhou divertida, segurando meu braço e apertando minha bochecha.

— Esse aqui e o Rafinha, meu amigo homossexual. Ele veio lutar pelos direitos dele.

Amigo gay, é? Aquilo ia ter volta.

— Rafinha, conta aqui pra câmera como é pra tí viver numa sociedade machista, homofóbica e heteronormativa, como a nossa.

Os olhos da repórter brilhavam, o sorriso da esquerdista ia de orelha a orelha, e a bendita câmera me enquadrava em cheio. Então decidi que seria eu a rir por último.

— Acho que mudei de ideia, companheira. – falei pra Chapeuzinho, ainda grudada. – Acabo de me descobrir hétero.

E dito isso, coloquei minhas mãos no rosto dela e puxei para um beijo surpresa. Foi tão rápido quanto hilário. Os lábios dela eram tão macios, um gosto bom, e eu que temi sentir gosto de gás lacrimogêneo. Mas não, era uma sensação boa que percorreu meu corpo todo por aquele breve instante em que juntei nossos lábios.

O beijo acabou com um empurrão da parte dela. Corada como um tomate e levando uma das mãos a boca.

— Eu...eu devia te desmascarar agora. O que acha? – Ameaçou ela.

A repórter assistia a tudo tão curiosa quanto confusa. E então eu vi...e não pude deixar de sorrir.

— Não precisa, deixa que eu mesmo faço. – E joguei o boné pra cima, me livrando também da bandeira.

— Mas o que é isso? O que isso tudo significa? – questionou a repórter, olhando de mim pra ela, enquanto eu pegava o microfone.

— É que além de hétero, descobri que sou de direita também. Sorry. – Joguei o microfone de volta, que a mulher quase deixou cair. – Valeu por tudo, Chapeuzinho!

Mari arqueou a sobrancelha antes de desviar o olhar do meu. Então virou as costas, mostrando o dedo do meio. Mal saí, o som de tiros aumentou, a Tropa chegando naquela direção. Mas isso não importava, pois por mais improvável que fosse, eu reencontrei meus colegas! Dentro de um bar com a portas erguidas pela metade, vi a cara verde-amarelada daquele povo.

Parecia não terem me reconhecido todo de vermelho, mas assim que me "amarelei", gritaram meu nome e fizeram sinal para que eu entrasse naquela fortaleza. Junto deles, mais uma dúzia de manifestantes de direita protegidos da confusão. Cheguei a porta cansado de correr, arfando e tossindo.

— Entra, Rafinha, rápido! – a loira gatinha pedia.

— Caraca, tá morrendo, cara? – questionou o Mauro, risonho. – ...e cadê nosso lanche?

Como eu queria esganá-lo naquele momento.

Eu ouvia as perguntas enquanto recuperava o ar, inspirando profundamente. Tinha gente reclamando que eu entrasse logo pra baixarem as portas, mas os curiosos não queriam perder o show lá fora.

Eu sorri, pois estava salvo após quase ser linchado ou pego pela Tropa. Apesar de tudo eu me diverti, e ainda beijei uma bela garota. Uma aventura e tanto.

— Então...o lanche já era. Foi parte do preço pra eu sair vivo de lá.

— Tadinho, deve ter sofrido tanto. – Quem me consolava era a loirinha do Daniel, sem Daniel nenhum, pegando na minha mão e me olhando de um jeito meigo. – A gente vai cuidar de você, ok?

— Cadê o outro? – questionei, sondando o terreno.

— Meteu o pé quando a coisa começou a ficar feia. Mó otário. – Mauro falou, rindo de mim pra ela.

— O viadinho me largou e correu, tomara que tenha levado muita surra da polícia! – reclamou, irritada. – Vou precisar de compania até em casa...você pode?

E piscou pra mim. Meu sorriso foi automático. Cada célula do meu corpo preparada para o duro sacrifício de levar aquela garota de lábios carnudos e corpo delicioso para aonde quer que ela mandasse. Céu, inferno, purgatório, motel...quem dera, o chato de ser de menor é isso. Posso escolher quem colocar no Planalto, mas não quem levar pra o motel.

Ela queria me usar pra se vingar do namorado. Estava ciente. Mas quem se importava? Eu queria muito ser usado por ela!

Já até fantasiava em como seria beijar aquela boca, dando uns amassos na 10/10 quando ouvi o som; tiros bem próximos, muita fumaça e lá, no centro de tudo...

— Cabô pessoal, não vou correr risco de quebrarem meu bar de jeito maneira. – era o dono, assustado com o aumento da confusão na area e nervoso com a gente. – Quem for entrar ainda, entra agora! 

Eu podia sentir a mão dela me puxando. Meu pé a meio passo de entrar e o diabinho e anjinho em volta da minha cabeça repetindo a mesma coisa: "comeelacomeelacomeelacomeela...". Mas eu travei, não conseguia tirar os olhos de lá. Diabinho e anjinho já berrando comigo "nãosejaidiotanãosejaidiotanãosejaidiota...". Mas eu fui. É, eu era um idiota.

— Desculpa gente, mas tenho que resolver uma coisa. – E corri de lá, a gata e meu colega me olhando surpresos.

E todo o povo do bar que queria comer a loirinha, me achando gay ou muito otário. Mas fazer o que? Eu tinha que salvar a Chapeuzinho!

A coitada mancava de uma perna, no meio daquele inferno e no caminho de um exército muito do mal-encarado. Eu tentei me aproximar, mas no tempo que levei pra chegar a perdi de vista. Pior que na correria, bati de frente com alguma coisa. Ou como descobri, "alguém".

Era um dos PMs, de máscara e escudo, com o cassetete na mão pronto pra descer na minha fuça. Mas por sorte e muita cagada, era o mesmo policial com quem tirei foto no início da minha jornada.

— Opa, opa, calma ai amigão! Sou o cara da foto, lembra? – questionei idioticamente, na esperança da memória dele ser maior que a vontade de me bater.

— Sai daqui, garoto! Isso aqui não é lugar pra você não, moleque! – Não sei se me reconheceu ou só teve pena, mas o que importa é que me deixou passar.

Meu coração estava acelerado, meus olhos buscando freneticamente a garota por quem eu me arriscava, talvez atoa. E havia fumaça. Muita fumaça. Meus olhos ardiam quase tanto quanto minha garganta, e o som da minha tosse quase abafava a gritaria e sirenes.

Eu já tinha perdido o senso de direção fazia tempo. Só sabia que onde tinham caras fardados atirando, era com toda certeza, a direção errada. E então eu a vi... e hesitei. Ela caiu de joelhos, acho que atingida por alguma coisa.

Eu devia ajudar, eu sei, foi pra isso que voltei lá. Mas já tinha outro fardado chegando em cima dela e, a verdade é que eu não queria apanhar. E bem, ninguém podia dizer que ela não pediu por isso, encarando a polícia daquele jeito.

Naquela hora era tudo um caos, parecendo uma zona de guerra! Eu já estava me conformando com a situação quando ela olhou pra mim, meio surpresa, mas com aquele jeitinho de cachorro pidão. Que merda! Aquele não era mesmo o meu dia.

A esquerdinha me roubou qualquer opção.
Meus pés se moveram sozinhos, eu acho. Corri como um louco, desviando de gente caída e cassetetes pelo caminho. Me senti como o Mário em um jogo de fases, pulando, desviando e correndo até o chefe final pra salvar a princesa. A diferença é que eu não queria encarar chefão nenhum, preferia mesmo era ganhar com macete.

Por falta de estratégia melhor, cheguei na voadora! Por sorte o impacto de surpresa desequilibrou e acabou derrubando o policial, o que me fez ganhar tempo.

— Vem comigo, Chapeuzinho! – Estendi a mão, confiante.

Ele me encarou, a surpresa dando lugar a um sorriso genuíno. E nossa, que sorriso! Segurando minha mão ela ficou de pé, mas com bastante dificuldade. O policial já estava levantando, outros dois chegando mais atrás.  Se nos cercassem, nós dois levaríamos pau.

— Você foi um bobão por voltar.

— Pior que eu sei.

Eu já estava quase sentindo a madeira me acertando quando aconteceu: a cavalaria chegou. Alguns usavam aquela máscara do filme "V de Vingança", outros só cobriam o rosto com camisas. Eram os Black Blocs, com suas lixeiras, pneus queimados e bastante disposição para o confronto.

Nossos anjos da guarda naquela noite.
Garrafas se chocavam contra os escudos erguidos. Bandeiras, entulho, um pneu(?), tudo colocando os PMs na defensiva e salvando nossa pele.

— Minha perna tá muito ferrada pra correr. – ela me disse, cara de dor.

— Sei disso, sobe aí. – E me abaixei, deixando ela subir nas minhas costas.

Ouvi um risinho enquanto ela passava os braços em torno do meu pescoço.

— Tem certeza que aguenta? Tanta areia pra seu caminhãozinho?

A ergui num impulso, segurando suas pernas e sentindo aqueles seios macios contra as minhas costas. A motivação a mil!

— Precisar dou duas voltas.

A resposta dela veio na forma de um aperto mais carinhoso. E foi assim, meio encabulado e com um sorriso bobo que eu a tirei de lá. Ou ao menos tentei. Ainda nem tínhamos nos afastado muito do confronto quando os notei: um apontando o dedo pra nós, o outro sem capacete e com cara de raiva. Muita raiva. E merda, ele ia atirar! E eu podia jurar que era o cara em quem a safada tacou pedra naquela hora.

Gemi, uma dor intensa no braço! Sensação de algo me acertando em cheio nele. Aposto que ela era o alvo...mas fui eu quem foi baleado. Eu travei pela dor, firmando os pés pra não cair com ela junto. Será que já estava saindo muito sangue? Eu não tinha visão de onde me acertaram, mas temia que tivesse atravessado algum órgão varando o braço. E se eu morresse assim?

— Dói, não é? Coitadinho. – Sua voz suave aos meus ouvidos, seu toque gentil massageando o ferimento. – Mas já, já, passa. Só não me derruba, tá?

Filha duma "profissional-liberal-do-ramo-do-sexo". A bala era de borracha, mas doía muito, e bem que ela podia ser mais meiga.

— Eu devia era te levar de volta. – resmunguei, raivoso. Uma lágrima involuntária escorrendo do olho esquerdo – sempre o mais frouxo.

Depois daquela lágrima vieram outras, mas essas por conta da irritação da fumaça. Eu abria e fechava os olhos, me guiando por um de cada vez, e as vezes por algum aviso dela quando estava pra topar com alguma coisa. Minhas pernas doíam, meu braço latejava, minha garganta ardia e minha coragem fraquejava. Mas apesar de tudo isso, de cada bomba de fumaça, cada som de disparo, sirenes ou vulto ameaçador por perto, eu segui em frente. Tirando forças sei lá de onde.

Claro, sendo realista e em retrospectiva, não foi como se eu tivesse carregado ela por uma São Silvestre ou coisa assim. Devem ter sido poucos minutos, e com certeza não chegou a quinhentos metros. Mas quando você está mais esbagaçado que laranja em fim de feira, e paranóico com todo barulho ou vulto suspeito, o tempo passa de um jeito bem diferente. Como se fosse outra realidade.

— ...eu..tô...morto. – E nos larguei sobre a beirada de um chafariz, distante de tudo aquilo.   

Eu respirava fundo, sentado ao lado dela. Tentando forçar o coração a voltar a um ritmo não suicida.

— Você...conseguiu mesmo, Rafa. Estou te devendo por isso. Até que você tem coragem, apesar de ser um comédia. – disse ela, se espreguiçando.

— Sério? Arrisco minha pele indo atrás de você, levo bala, faço cosplay de jumento te carregando, pra você ainda me chamar de comédia?

Encarei ela muito do irritado, e a ponto de me levantar.

— Calma. Desculpa... foge não. – E me puxou de volta, sorrindo e me fazendo parar a dois dedos do rosto dela. – Falei comédia de um jeito bom. Você me faz rir de verdade. 

Naquele momento eu não sabia se aceitava aquelas desculpas meia-boca ou se continuava irritado. Só sabia o quanto a respiração dela estava próxima da minha, que meus olhos teimavam em focar naqueles lábios e que meu coração acelerava ainda mais que na fuga.

— O que eu quero dizer, companheiro "hétero de Direita", é que você não é só "um comédia". – Mãos no meu rosto, me trazendo mais pra si. – Você é o "meu comédia".

E me beijou, enfim. E se aquele meu beijo roubado foi rápido, esse foi bem diferente. Ela encostou os lábios nos meus com suavidade, lenta e carinhosamente me guiando para um beijo cada vez mais intenso e molhado.

Um beijo muito, muito bom. Eu disse "muito bom"?  Quis dizer fantástico!

— Isso foi, tipo, incrível. – falei, quando as palavras finalmente voltaram a fazer sentido.

— É...foi mesmo.

E ficamos os dois ali, colados um no outro, sentados em um chafariz cuja água refletia a luz da lua, dos postes e estrelas. Quando me liguei, ela escondeu o rosto atrás de mim, mais vermelha que as roupas que usava.

— Ô, o casalzinho aí. Deixem uma declaração pra gente sobre o que tá rolando aqui. – reconheci a voz antes mesmo de ver, era de um vloguer famoso de um canal de Direita no Youtube. – Ela é esquerdista, você de direita, e estão namorando!?

A voz dele soou tão incrédula quanto aquela ideia soaria absurda aos nossos ouvidos horas atrás.

— Ei, e então, estamos namorando? – sussurrei a pergunta, meus dedos erguendo suavemente o rosto dela, nossos olhos se encontrando.

— Sim! – Afirmou, com um empurrão. – Mas que pergunta, é um comédia mesmo.

Nós dois rimos, o repórter sem sequer conseguir formular uma nova pergunta enquanto ela levantava, apoiada em mim. Gemi de novo, sentindo o dolorido de onde a bala acertou.

— Mas essa história de namorico aconteceu agora, né verdade? Desculpa aí, mas não creio que namoro entre gente tão diferente dure mais que um dia de pegação.

Ela pegou o microfone da mão dele, fazendo sinal para a câmera aproximar.

— Estamos juntos faz um tempão já. Temos até uma tatoo nossa, olha só.

E ao dizer isso, mostrou a marca dela de bala no ombro direito.

— Agora mostra a sua, Rafa. – E piscou.

Eu ri, exibindo minha marca vermelha recém adquirida no braço esquerdo.

— Tudo doido mesmo...maluquinhos. – E nos deixou em paz, balançando a cabeça em censura.

E caímos na gargalhada, vendo aquele bando de gente de ambos os lados nos olhando. Um ou outro tirando foto. Então perguntei: 

— O que acha de dar um pulo em Copacabana, aproveitar o resto da noite ao ar livre e de frente pra o mar?  

— Acho ótimo. – Concordou, apertando minha bochecha. – Então, podemos pegar ônibus se formos pela direita, ou metrô, se formos pela esquerda. E aí, por onde quer ir?

Eu parei um instante, pensativo.

— Acho melhor irmos reto pelo centro e pedirmos um Uber, isso sim.

Ela me encarou por um momento com aqueles olhos que pareciam examinar cada célula minha. Então balançou a cabeça, e respondeu.

— Com você eu topo. – disse, sorrindo. – Mas por quê não de táxi?

Minha resposta foi na forma de uma apalpada na bunda, que a fez soltar um gritinho e me empurrar de leve.

— Não começa, Chapeuzinho.

 


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Notas finais do capítulo

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