Contos da Morte escrita por Bruno Cassiano


Capítulo 1
Conto Um




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Passava das três horas da manhã naquele vinte e cinco de dezembro, era natal. Luzes se espalhavam pelos estabelecimentos comerciais, bonecos infláveis e árvores iluminadas completavam o clima. Eram poucos os bares com algum movimento significativo e também eram poucos os que ainda funcionavam.

Os três dentro do gol um ponto zero prata, voltavam de mais uma noite juntos como tantas outras naquele mesmo ano e nos anos passados.

— Eu ainda acho que devíamos pegar outro caminho. - Falou Samuel do banco de trás, se recostando e encarando o teto do carro.

— Deixa de ser medroso, Samuca. - Falou Valentina encarando-o pelo espelho, ela ainda usava o gorro natalino ganho poucas horas antes. O carro deslizava suavemente pelas ruas escuras e desertas.

— O que você tem cara? - Perguntou Diego do banco do carona.

— Eu não tenho nada e nem é medo. - Respondeu nervoso.

— Se não é medo é o que, Samuel? - Perguntou Valentina.

— É como se fosse um tipo de... respeito. - Replicou olhando pelo vidro filmado a escuridão que dava a sensação de vazio. Se aproximavam do Cemitério da Cachoeirinha e não importava o quanto o clima estivesse quente, o lugar sempre era capaz de lhe causar calafrios.

— Vou pôr uma música, pra você relaxar. - Informou Valentina e a voz de Johnny Cash começou a ecoar pelo carro, 'There ain't no grave can hold my body down', 'Ain't no grave' ocupava o silêncio. Diego e Valentina riram.

— Ha-ha, muito engraçado. - Comentou Samuel forçando uma risada e revirando os olhos.

— O que posso fazer se justo essa era o topo da playlist? - Perguntou Valentina. - Relaxa, cara...

Samuel acreditava que em noites de grandes festividades alguns espíritos que ainda não tivessem encontrado a luz voltavam para silenciar aqueles que os incomodava com o barulho, por esse motivo preferia fazer trajetos mais longos a ter de passar ao lado de qualquer cemitério que fosse.

— Deve ser besteira... - Disse distraído enquanto o escuro do cemitério ia aparecendo e se aproximando pouco a pouco. Sempre se perguntou do porquê de os cemitérios não terem iluminação a noite, mesmo que fossem fechados para visitação. A sensação que dava olhando para aquele breu era de um lugar apagado, como se fosse o fim do caminho ou do mundo. Parecia que a partir daquele muro branco, nada mais existia. Sentiu o frio, já costumeiro, subir a partir da base de sua coluna e o arrepio, quase como um presságio, tomar conta de seu corpo.

— Claro que é! - Concluiu Diego olhando para trás.

As coisas começaram a ficar estranhas a partir deste momento. A música foi interrompida por um chiado ensurdecedor, como se tivessem selecionado uma rádio dessintonizada. O estranho é que aquela música, assim como muitas outras, estava sendo reproduzida a partir de um pendrive conectado no carro.

— Mas que merda de rádio... - Protestou Valentina distraindo-se da rua e apertando o botão de desligar, mas o aparelho parecia não querer obedecer ao seu comando.

— Valentina... - Chamou Samuel, o único que não se prendeu tanto ao rádio ou ao chiado. Foi ele o primeiro a vê-la na rua.

— Puta que pariu! - Disse Valentina ao olhar novamente para a via. O carro desligou-se e parou a centímetros de uma figura de baixa estatura vestida de branco e de costas para o carro.

— Alguém me ajuda... - Era uma voz feminina e infantil. A garota usava um vestido branco de alças, estava com os pés descalços e as mãos, dava para perceber, estavam tapando o rosto. Mechas de cabelo loiro caíam-lhe pelos ombros, a pele era tão clara que quase se misturava ao branco imaculado de sua roupa. - Socorro.

Os três partilhavam da mesma paralisia. A voz fina de criança que ouviam ecoava pelo carro, como se estivesse mais longe do que realmente estava. Valentina se desvencilhou de seu cinto e abriu a porta.

— Valentina, o que você ta fazendo? - Perguntaram Samuel e Diego ao mesmo tempo. Enquanto um dos pés da garota tocava o asfalto.

— Eu não... sei... Algo me diz para ajudar. Ela deve estar perdida. - Disse ela olhando para trás. Diego segurou em uma de suas mãos, Valentina esboçou um protesto, mas antes que conseguisse falar qualquer coisa foi interrompida pela garota.

— Não. Não. Não. Não. - Disse com ambas as mãos agora tapando as orelhas, se abaixando mais a cada 'não' dito até ficar completamente agachada. - NÃÃÃÃO. - O último 'não' muito mais alto intenso do que os outros, um grito que chegava no seu ápice mais agudo do que qualquer outra palavra que ela já havia dito.

Samuel ainda paralisado teve a nítida sensação de que seus tímpanos não resistiriam àquele grito. A garota levantou-se e saiu em disparada em direção ao cemitério ainda gritando.

— Espera, menina. - Disse Valentina, agora conseguindo se desvencilhar de Diego e disparando atrás da garota. Ambos os garotos também correram, mais para conter a amiga do que para alcançar a misteriosa menina que corria bem mais do que aparentava conseguir. Nenhum dos três retornaria àquele carro naquela madrugada.

Valentina foi a primeira a alcançar o portão do cemitério, quando o cruzou, poucos segundos depois da garotinha, não conseguia ver nada além do breu. Não havia um sinal sequer de que a garota havia passado por ali. Samuel e Diego, que chegaram pouco depois, também tiveram o mesmo espanto.

— Que porra foi essa? - Perguntou Samuel. Seu calafrio agora era mais intenso, sentia frio. Ou achava. Nada aparentava estar vivo naquele cenário.

— Vocês estão ouvindo isso? - Perguntou Diego. A pergunta teve a mesma função do botão play, comum nos rádios e aparelhos sonoros. Ouviam uma risada fraca e inocente vinda do lado de fora do cemitério. Voltaram pelo mesmo portão no qual entraram, mas foi como entrar no cemitério novamente. Não importava o quanto tentassem, aquele agora era o seu local.

No dia seguinte a polícia os encontrou, ou o que antes era o corpo deles, dentro e perto do mesmo gol um ponto zero. As investigações concluíram que Valentina dirigia sob o efeito de álcool e entorpecentes e esse foi o motivo pelo qual bateu o veículo no poste. Valentina e Diego eram os únicos dentro carro, ela quebrou o pescoço, ele morreu estrangulado pelo cinto. Samuel também quebrou o pescoço e foi encontrado a cinco metros de distância de onde os amigos estavam.

Sempre perseguiriam aquela risada. Era garota que ria, contente enquanto se divertia no balanço. Por mais um ano iria repousar longe de qualquer barulho que fosse. Sua história é curta, tão trágica quanto daqueles três jovens. Clamava por ajuda todos os dias no qual o pai batia em sua mãe e gritava seus nãos todas as noites na qual ele abusava dela. Em uma dessas noites, por causa de um descuido da mãe em esquecer o gás ligado e a burrice de seu pai em acender um cigarro fez com que sua casa, de dois cômodos quadrados, explodisse. Ela de olhos fechados, contendo as lágrimas, nada viu, ouviu ou sentiu, foi rápido. Em oito anos sofrera de tudo o que de pior a vida tinha a lhe oferecer, há trinta anos brincava naquele mesmo local sozinha, inofensiva. Isso, claro, desde que ninguém perturbasse o seu sossego.

O que fazia com que a garota ceifasse as vidas daqueles que iam atender o seu clamor era o ódio por ninguém ter feito o mesmo com ela enquanto vivia.


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