Um Caminho Para O Coração escrita por Sill Carvalho, Sill


Capítulo 3
Capítulo 02 – Corações Quebrados


Notas iniciais do capítulo

Meu muito obrigada a Joicy Grey e a Denise Aline Bueno pela recomendação que cada uma fez. Foi uma surpresa maravilhosa. De verdade, obrigada por suas lindas palavras.
Espero que gostem do capítulo ;)
Obrigada também a quem comentou no capítulo anterior.
Desejo a todos uma boa leitura.



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Ao final do horário letivo, quando o ônibus escolar deixou Olívia a poucos metros de casa, a menina precisou esperar pela Senhora Smith do lado de fora, na varanda da frente, sentada numa das velhas cadeiras de vime branca que ainda restavam. Mexendo as mãos de forma impaciente, ora olhando para os lados, ora sacudindo os pés para frente e debaixo da cadeira. Mesmo não gostando de estar sozinha, não tinha escolha. Com frequência essa cena se repetia. E tudo o que podia fazer era sentar e esperar.

A menina ouviu o próprio estômago roncar. Estava faminta. O sanduíche de pasta de amendoim, esmagado no momento de sua queda ao sair de casa pela manhã, não foi suficiente para mantê-la alimentada por tantas horas seguidas. O fato de ter de esperar para entrar em casa, não facilitava em nada sua vida.

Tentando aplacar a fúria do estômago vazio, Olívia apertou as mãos sobre a região onde sentia o incomodo.

— Estou com fome... — falava consigo mesma, quando a mulher de cabelos grisalhos, de nariz pontudo, apareceu no jardim destruído de sua casa.

— Outra vez falando sozinha? — queixou-se com a menina.

Olívia se assustou, saltando imediatamente da cadeira.

— Não, senhora... — murmurou.

— Acha que não ouvi — A mulher passou por ela, indo abrir a porta da frente com a chave reserva. — Anda logo! — bradou. — Não tenho o dia todo.

— Eu estou com fome — Olívia falou ao entrar na casa.

A mulher entrou logo atrás dela e fechou a porta.

Olívia olhou para trás, embora não esperasse encontrá-la com uma feição amigável.

— Eu posso comer agora?

A senhora Smith retirou o agasalho de tricô e deixou no gancho, no hall de entrada.

— Primeiro a lição de casa.

— Mas estou com fome.

— A lição de casa. Depois um banho. Somente depois disso terá comida. Às vezes me pergunto se você se faz de surda.

— Mas isso não é justo. Estou com fome, não vou conseguir fazer a lição. Está doendo bem aqui — Olívia encostou as mãos na região do estômago. Sua feição revelava incomodo. — Não vou conseguir fazer nada.

A senhora Smith não gostou muito, mas acabou cedendo.

— Tudo bem. Você pode comer do que tiver. Agora pare de me perturbar. Tenho que começar a preparar o jantar.

Olívia largou a mochila no sofá da sala e correu para a cozinha. Quando a senhora Smith a alcançou, estava parada diante a geladeira aberta, imaginando o que poderia comer.

Não havia muitas coisas lá dentro. Menos ainda adequadas à alimentação de uma criança. Porém, estava acostumada a restrições alimentares, tanto quanto estava acostumada à solidão e ao abandono.

Acabou encontrando um vaso de picles pela metade o levou até a mesa. Usou de toda força para abrir a tampa, tanto que a palma da sua mão ficou vermelha.

A senhora Smith pegou as últimas verduras e legumes para o preparo da sopa, depois de vasculhar a gaveta.

— Pode abrir isso para mim, por favor — Olívia pediu. Aguardou um instante. Percebendo o que a mulher fazia, soltou: — Teremos sopa para o jantar outra vez?

A mulher deixou tudo sobre a pia e foi abrir o frasco de picles, sem dizer nada.

— Não pode ser macarrão com queijo? — Olívia insistiu.

— Não tem macarrão, nem queijo. Se quiser comer essas coisas, peça para o seu pai comprar.

A menina encolheu os ombros, desmotivada. Sabia perfeitamente que não seria tão fácil assim. O papai nunca lhe dava ouvidos.

— Tudo bem — respondeu em voz baixa. — Não tem importância.

A senhora Smith deixou a tampa do pote sobre a mesa e se afastou. Olívia enfiou a mão dentro do pote de vidro, alcançando um dos picles com os dedos. Deu a primeira mordida ainda de pé ao lado da mesa. Comeu o primeiro e também um segundo, sentando-se apenas durante o terceiro picles. Dando-se por satisfeita, pôs de volta a tampa no pote e saiu da cozinha.

De volta à sala de estar, pegou a mochila. Espalhou o material escolar sobre a mesinha de centro depois de retirar de lá objetos inúteis como latas de cervejas vazias e copos descartáveis.

Até tentou fazer a lição de casa sozinha, mas não conseguiu. Sua dificuldade ia além da sala de aula. Acabou se distraindo com uma folha de papel e giz de cera. Sentia o cheiro da sopa saindo da cozinha, se expandindo por toda a casa. Apesar de enjoada de comer sopa, o cheiro pareceu delicioso e fez sua boca salivar, lembrando-a quanto ansiava por uma refeição de verdade.

Lançou o olhar ao relógio de ponteiros ao lado do telefone fixo, na mesinha ao lado do braço do sofá, mas não conseguiu perceber o horário. Somente no relógio digital, conseguia ler as horas. Acabou deixando para lá, se dedicando inteiramente ao desenho com giz de cera até a senhora Smith entrar na sala e chamar sua atenção.

— Já terminou a lição?

— Não, senhora — Olívia olhou para cima. A mulher trazia o pano de prato furado na mão.

— Então por que está desenhando?

— Não consigo. É muito difícil — murmurou Olívia, de cabeça baixa.

— E só por isso você desistiu? — A mulher levantou a voz.

— Não, senhora.

— Agora você também é mentirosa, Olívia?

Olívia não teve coragem de olhar no rosto dela, permanecendo com a cabeça baixa.

— A senhora pode me ajudar?

— Isso é obrigação sua. Se prestasse atenção na aula, saberia como fazer. Mas, com certeza, fica sonhando acorda ou até mesmo falando sozinha pelos cantos como é de costume.

— Por favor... — tentou Olívia, praticamente sussurrando por medo da represália.

— Eu já disse que não. Você é surda ou o quê?

Repentinamente a senhora Smith pegou o desenho no qual Olívia vinha trabalhando com esmero. Numa breve análise, percebeu o homem com a barba crescida ao lado de uma garotinha de cabelos compridos, pintado com giz de cera laranja. Ao lado da menina, uma terceira figura com cabelos nas cores do arco-íris chamou atenção.

— Quem são essas pessoas?

Olívia pensou se deveria responder. De toda forma, acabou falando.

— O papai e eu.

Claro, pensou a mulher, o homem com a barba grande só podia ser ele.

— Mas e essa terceira figura, de cabelos coloridos?

— É a Arco-íris.

— Não me venha outra vez com essa coisa fantasiosa.

— Não é uma coisa. Ela é minha melhor amiga. — Olívia se levantou.

— Isso é coisa de gente maluca.

Com os olhos cheios de lágrimas, Olívia estendeu a mão pegando o desenho de volta.

— Eu não sou maluca. — Olívia se queixou e correu em direção à escada, parando ao alcançar o primeiro degrau. Olhando para trás, falou: — A senhora é uma pessoa má. Muito má. A minha amiga Arco-íris não gosta de você. E eu também não.

— O sentimento é reciproco, porque eu também não gosto de você. — bradou a senhora Smith. — E, com certeza, pelo mesmo motivo sua avó te abandonou aqui com esse pai irresponsável e alcoólatra. Ele não é capaz de cuidar de si mesmo quem dirá de uma criança.

— Não fale assim do meu papai — Olívia gritou, com lágrimas no rosto. Não fale assim. Não fale. Tá bom?!

— Ele não gosta de você. Por isso está sempre sozinha.

— Ele gosta. Ele gosta, sim — Olívia respondeu aos prantos. Querendo muito acreditar nas próprias palavras, embora fosse difícil.

— Para ele, você matou Sarah. — A senhora Smith a derrotou com suas palavras ferinas. Olívia subiu o restante da escada correndo, aos prantos. Caindo de joelhos ao alcançar o patamar, deixando a folha com o desenho para trás, molhada por algumas gotas de lágrimas.

A senhora Smith ouviu a porta do quarto bater quando ela entrou no cômodo, abafando seus gritos de angústia, chamando pela amiga imaginária.

A menina enfiou-se embaixo das cobertas, ainda usando as galochas vermelhas que usara para ir à escola pela manhã. Suas lágrimas molharam a fronha do travesseiro. Arco-íris ao lado dela, acariciando suas costas, dizendo que não desse ouvidos ao que aquela senhora ranzinza dizia.

Mais trade, quando a sopa ficou pronta, a senhora Smith subiu para chamá-la. Mas Olívia havia pegado no sono, depois de tanto chorar. Esgotada. Então apenas voltou à sala e ficou vendo tevê enquanto aguardava Emmett chegar.

Passado um tempo, ouviu o barulho de chaves. E então Emmett surgiu na sala de estar. Como sempre, a expressão de fadiga e tristeza marcava seu rosto. As roupas estavam sujas do trabalho, e ele carregava um pacote de cervejas.

— Boa noite — falou no automático, sem de fato prestar atenção à mulher a sua frente, seguindo em direção à cozinha.

A mulher lhe respondeu, ajeitando a postura. Em seguida, ficou de pé.

— Olívia já está na cama.

Emmett apenas anuiu.

— Eu vou indo. — Ela deu alguns passos, e parou para dizer: — Tem sopa em cima do fogão, se estiver com fome.

— Obrigado, mas acho que não vou comer nada. Fiz um lanche na rua.

A senhora assentiu, e se encaminhou a saída.

— Tenha uma boa noite.

Emmett moveu a cabeça, dando a entender que agradecia. Ao ouvir a porta fechar, entrou na cozinha. Pôs a cerveja na geladeira e logo depois se aproximou do fogão. Retirou a tampa da panela, sentindo o aroma da sopa. Ainda estava morna. Ele então resolveu que comeria um pouco. Colocou uma quantidade generosa no prato limpo que encontrou no escorredor sobre a pia e tomou a sopa ainda de pé, diante o balcão. Ao final, deixou o prato sujo dentro da pia. Percebeu o pote de picles na mesa e o colocou de volta na geladeira.

Com uma lata de cerveja na mão, ele voltou à sala de estar e sentou no sofá; as pernas afastadas, as costas apoiadas nas almofadas.

Procurando o controle da televisão, deparou com o material escolar de Olívia sobre a mesinha de centro. Pensou na filha, e automaticamente estava pensando em Sarah. Incomodado com os pensamentos que o momento lhe trazia, puxou as almofadas detrás das costas jogando sobre o material escolar da menina.

Quanto tempo mais aguentaria viver daquele jeito, pensou.

Tornou a beber da cerveja. Ligou a tevê no noticiário. Não ficou muito tempo, somente até a cerveja acabar. Então subiu a escada. Chegando ao patamar, pisou no desenho que Olívia deixou cair.  Ele viu, mas fingiu não ver.

Olhando a porta do quarto de Olívia, voltou a pensar em Sarah. Lembrou-se de como ela gostava de estar ali, sonhando com a chegada da filha dos dois. Fazendo planos. Eram tão felizes naquela época. Mas aí ele a perdeu. Lembranças daquela noite tomaram seus pensamentos. A criança que era para ser uma benção acabou se tornando, para ele, uma maldição. Ele se negava a deixar Olívia entrar e ocupar espaço em seu coração.

Mesmo depois de tudo o que os médicos e sua mãe disseram, na madrugada em que perdeu Sarah, jamais aceitou que Olívia não fosse culpada.

Talvez tivesse sido mais fácil seguir adiante sem ela ao seu lado.

Todas as promessas que lhe fizeram, de que seria mais fácil com o passar do tempo, de que iria amá-la ao vê-la crescer, não aconteceu. Olhar para Olívia era sentir a dor da perda lhe rasgar o coração toda vez.

O aniversário de uma se tornou o aniversário de morte da outra. Esse era um dos motivos pelos quais jamais deu a filha uma festa de aniversário. Para ele, essa havia se torado a pior data do ano. Era quando mais sofria, e ainda sofre.

Quis se aproximar da porta e girar a maçaneta. O quadro com a ovelhinha ainda estava pendurado à porta mesmo tanto tempo depois. Sentiu, de repente, uma pontada de alegria ao imaginar Sarah lá dentro arrumando as roupinhas minúsculas em cores claras e fofas. Cedo de mais percebeu que esse momento não voltaria.

Recuou alguns passos, desejando se afastar das lembranças. Da dor que lhe causavam. Nada disso adiantava, a dor o perseguia onde quer que fosse. Estava dentro dele. Havia criado raiz.

Cansado de tudo, entrou no próprio quarto e fechou a porta.

[…]

Rosalie ainda estava na cidade quando recebeu algumas fotografias, enviadas do celular da própria irmã, mostrando Royce fazendo compras para o bebê ao lado dela e de sua mãe. Depois da mensagem, perguntando se havia gostado das roupinhas, soube que precisava se tranquilizar antes de pegar a estrada. Acabou ficando algumas horas num quarto de hotel ainda em Atlanta, sem que ninguém soubesse, além da amiga Isabella.

Passava um pouco das onze da noite, quando cruzou a ponte na direção de Edenton, virando à esquerda na Charity Road. Em pouco mais de um quilometro e meio estaria na casa do avô. Longe o suficiente daqueles que lhe traíram.

Estava escuro e com neblina quando alcançou à rua de cascalho que antecedia a propriedade do avô. Apenas as luzes dos faróis lhe mostravam o caminho. Os únicos sons vinham das pedrinhas rolando sob os pneus e do motor do carro em funcionamento.

Tudo no que pensava era que queria estar logo com o avô. Sentia-se cansada das quase oito horas dirigindo de Atlanta até ali, parando apenas para abastecer e usar o banheiro.

Parou o carro em frente à casa antiga, de dois andares, com janelas que davam para o jardim, onde folhas secas começavam se soltar dos galhos das árvores e forrar a grama.

A imagem lhe trouxe lembranças da infância. Das poucas vezes que esteve naquele mesmo jardim. Irina sempre fazendo manha. Se empenhando em fazer Rosalie parecer à irmã malvada, mesmo naquela época. Mas, nunca, nenhuma de suas travessuras a magoara tanto quanto a traição.

O motor parou. Com as mãos ainda no volante, ficou olhando a casa. Havia luzes acessas tanto do lado dentro quanto de fora. Não imaginou que encontraria o avô acordado àquela hora da noite. Ainda assim, pensou que fosse bom, dessa forma, não teria de tirá-lo da cama para recebê-la.

Alcançou a bolsa no banco do carona e logo em seguida saiu do carro. Pegaria as malas depois, isso se o avô não a mandasse embora. Estava tão habituada a ter a família lhe virando as costas que se isso acontecesse já não lhe surpreenderia.

Fazia tanto tempo que não encontrava o avô, de repente, percebeu o quanto sentia falta de estar com ele.

Caminhou em direção à varanda, ajeitando a bolsa no ombro. Lembrou-se de ter prometido enviar uma mensagem de texto a Isabella quando chegasse. E foi isso que fez; pegou o celular na bolsa e digitou algumas poucas palavras tranquilizando a amiga. Por fim, avisou que deixaria o celular desligado por um tempo, mas tornaria entrar em contato em breve. Guardou novamente na bolsa o aparelho e se aproximou da porta da frente. Bateu nela com a mão em punho e aguardou.

Corrigiu a postura. Seu avô era um homem simples, sem frescuras, não entendeu por que sentiu a necessidade disso. De se corrigir.

Como ele não apareceu, arriscou bater na porta mais uma vez.

Enquanto olhava ao redor, ouviu chaves do outro lado da porta. Não demorou, estava aberta.

Virando o rosto, encontrou o avô parado diante dela com uma manta escura em torno dos ombros. Logo notou seus cabelos brancos, da última vez que o viu ele ainda tinha alguns fios castanhos. As rugas em seu rosto se aprofundaram e muitas outras haviam surgido.

— Vovô... — pronunciou incerta. Talvez pelo medo de não ser bem-vinda.

O homem grisalho a sua frente passou a mão nos olhos como não acreditasse no que via.

— Rosalie, é você mesmo? — Seu olhar alcançou o carro parado na entrada de veículos, e novamente a neta.

— Sim, vovô, sou eu.

A mão na maçaneta criava uma barreira diante a porta aberta.

— O que está fazendo aqui? É tarde. — Ele olhou em volta e na direção do carro outra vez. — Você está sozinha?

— Estou. — Ela afastou uma mecha dos cabelos louros para detrás da orelha. — É uma longa história. E eu me sinto muito cansada agora.

Como só agora percebesse que deveria mandá-la entrar, afastou a mão da maçaneta saindo do caminho.

— Me desculpe — pediu. — Venha, entre.

Rosalie passou pela porta, e o avô tornou a fechá-la. Ela parou e olhou para ele.

— Me desculpe por chegar tão tarde, e sem avisar. Não queria ter de acordá-lo. As luzes estavam acesas, então pensei...

Ele fez sinal com a mão para que parasse.

— Não se preocupe com isso. — Ele a ajudou com o casaco e o pendurou no gancho ao lado da porta. — Você teria mesmo de me acordar, não poderia passar a noite dentro do carro. Me sentiria péssimo se isso acontecesse. Vamos, entre, não fique aí parada.

Eles seguiram rumo à sala de estar.

— Me conte. Como estão sua mãe e sua irmã?

Esse era o assunto no qual Rosalie menos gostaria de ter falar agora.

— Elas estão ótimas — limitou-se a responder. Então, após um minuto de silêncio, pediu: — Vovô, eu poderia lhe dar um abraço?

O homem de cabeça branca sorriu para ela, abrindo os braços.

— Mas é claro. Venha aqui, abrace seu velho.

Rosalie sentiu os olhos lacrimejarem ao ser envolvida pelos braços quentes do avô. Ele ainda tinha o mesmo cheiro de que se lembrava; algo como hortelã e lavanda. Pela primeira vez em horas, se sentiu acolhida.

— Vovô... — Ela soluçou. — Senti sua falta.

Norman acariciou as costas da neta.

— Desculpe não ter vindo te visitar antes.

 — Não se preocupe. Sou um velho chato. Fico melhor sozinho.

Rosalie finalizou o abraço com certo constrangimento.

— Vai me mandar embora?

— Não seja tola. Isso foi só uma maneira de falar. Além do mais, faz muito tempo não recebo uma visita assim tão bonita em minha casa.

A curva de um sorriso ameaçou surgir nos lábios de Rosalie.

— Obrigada, vovô.

— Não conte a sua irmã. Você sempre foi a mais bonita das duas.

Rosalie achou graça da expressão conspiratória com que ele lhe disse isso. Naquele momento, teve certeza de que o avô estava feliz com sua presença. Ela agarrou o braço dele, descansando a cabeça em seu ombro.

— O senhor ainda tem o mesmo cheiro de que me lembro — comentou.

— Cheiro de velho? — Norman brincou.

Rosalie negou, movendo a cabeça devagar.

— Cheiro de vovô. De lugar seguro.

Norman sorriu, e acariciou os cabelos dela, no alto da cabeça.

— Venha — ele disse. — Vamos sentar um pouco. Não repare na bagunça, sou um velho morando sozinho e cheio de manias.

Rosalie se sentou num sofá e o avô no outro.

Ele olhava para ela.

— Sua mãe sabe que está aqui?

— Não. Na verdade, apenas uma amiga sabe onde estou.

— Então devo entender que vocês brigaram?

— Mais ou menos...

— Sua mãe sempre foi uma pessoa difícil — Norman falou, parecendo magoado. — Não me surpreenderia se algo assim tivesse acontecido.

— Eu sei que ela mal fala com o senhor. Eu também não tenho sido um exemplo de boa neta nos últimos anos. Desculpe-me por ter sido essa pessoa, vovô. E por ter vindo bater em sua porta, a essa hora da noite, tantos anos depois, sem um convite.

— Você esteve ocupada com seus estudos por muito tempo. Não tinha porque se preocupar em me visitar. Hoje dirigiu por muitas horas, sozinha, durante a noite, eu certamente teria lhe dado uma bronca se soubesse o que estava fazendo.

— Esse foi um dos motivos pelo qual não avisei.

O avô olhou nos olhos dela.

— O que aconteceu foi sério, não foi?

Rosalie mexeu os dedos das mãos, sem saber como começar aquela conversa.

— Prefere falar sobre isso depois?

— Talvez seja melhor falar de uma vez por todas.

— Tudo bem. — Norman pôs as mãos nos joelhos. — Eu vou fazer um chá pra gente, você me conta enquanto bebemos. — Ele se levantou.

Rosalie anuiu. E quando o avô se afastava pediu:

— Vovô, o senhor pode pôr duas gotas de limão no meu chá?

Norman balançou a cabeça, concordando. Antes de sair, tocou no ombro dela.

Sozinha na sala de estar da casa do avô sentiu-se, por um momento, a garotinha que foi há muito tempo. A mesma que costumava brincar no jardim e guardar vaga-lumes em frascos de vidro, para vê-los brilhar em seu quarto durante a noite.

Olhou em volta e seu olhar parou ao alcançar o console da lareira, onde avistou uma fotografia sua antiga ao lado da irmã. Seu sorriso amplo revelava a falta de alguns dentes, diferente de Irina que ainda tinha todos os dentes de leite.

Pensou na irmã, e isso a fez lembrar-se da traição. Seu coração doeu com a lembrança, do passado e do presente.

— Por que fez isso comigo, Irina? — sussurrou olhando as menininhas sorridentes da fotografia. As lágrimas logo se acumularam em seus olhos.

O cansaço e a tristeza cobraram seu preço. Rosalie pegou a manta que o avô usava quando abriu a porta para ela e usou para encobrir os ombros. Encolheu-se no aconchego do sofá antigo, descansando a cabeça na almofada com cheiro de menta. Não se importou em deixar que as lágrimas caíssem.

Quando Norman voltou, trazendo a bandeja com duas xícaras de chá, a encontrou dormindo, encolhida feito um gatinho, se aquecendo no calor de sua manta velha.

Ele deixou as xícaras sobre a mesinha de centro, pensando, fosse o que fosse houvesse acontecido, havia a magoado muito. Fez um carinho no rosto da neta, marcado por um caminho de lágrimas secas, então se afastou, subindo a escada. Voltando logo depois com um cobertor pesado. Cobrindo-a da mesma forma que havia feito tanto tempo atrás, ainda na infância dela.

Estava feliz pela visita da neta, ainda que o motivo que a levou até ali fosse outro que não somente o laço familiar que os aproximava.

Ao se afastar, olhou a mesma fotografia que ela esteve olhando minutos antes. Pensando que aquela mesma garotinha era a moça que dormia agora em seu sofá. De todas as coisas que pudesse esperar vê-la em seu sofá essa noite jamais seria uma delas.

— Descanse, Pipoquinha. Amanhã você me conta o que aconteceu. — Ele se curvou, recolhendo uma das xícaras de chá apenas. Apagou as luzes da sala e subiu a escada guiado pela iluminação da luz no patamar. Percebeu Rosalie se mexer no sofá, mas sabia que estava dormindo. Exaurida.

[…]

Rosalie acordou com a luz pálida do sol de outono entrando pela vidraça da janela. Virando o rosto em direção à mesinha de centro, notou a xícara de chá ainda cheia. Lamentou tê-lo feito desperdiçar o chá e também seu tempo.

Ouviu o barulho do machado partindo lenha. Levantou do sofá, enrolada a manta, e se aproximou da janela. Norman cortava lenha para a lareira, no jardim da frente, sob a copa de uma árvore que aos poucos perdia suas devido à mudança de estação.

Rosalie foi até a porta e a abriu.

— Vovô?

Ouviu mais algumas pancadas do machado cortando a lenha antes de ele parar e olhar para ela na varanda. Deixando o machado de lado, Norman falou:

— Me desculpe se te acordei.

— Não, não me acordou. — Ela afastou uma mecha de cabelo cujo vento soprou em seu rosto. — Eu queria te pedir desculpas pelo chá. Não foi minha intensão... ontem à noite.

Norman caminhou, indo até ela.

— Você estava cansada. Não é culpa sua. Era só uma xícara de chá, querida. — Uma vez ao lado da neta, na varanda, comentou: — Imagino que não tenha dormido muito bem essa noite. Aquele sofá velho é um horror. Mas, fique tranquila, hoje vou preparar o antigo quarto de sua mãe para você. Não é como o seu quarto em Atlanta, mas ainda é melhor que dormir no sofá.

Rosalie chegou mais perto, passando o braço em volta dos ombros dele.

— Obrigada, vovô, por cuidar de mim ontem à noite. Você me cobriu para que não sentisse frio. Vi quando acordei agora a pouco que tinha outro cobertor.

Norman beijou na testa dela.

— Preparei um café da manhã especial para você — disse com um sorriso no rosto. E Rosalie teve certeza que se refugiar na casa do avô não só faria bem a ela, como também faria bem a ele, um pobre velho solitário. — Tem waffles com mel. — ele contou orgulhoso.

— Você lembrou vovô?!

— Eu nunca esqueci.

Rosalie encostou a cabeça ao ombro dele sentindo-se verdadeiramente acolhida. Em seguida, ambos entraram na casa pela porta da frente. Enquanto o avô se movimentava pela cozinha, Rosalie ficou sentada à mesa, mantendo a manta sobre os ombros todo o tempo. Reconhecendo no modo de ele se movimentar o quanto estava gostando de sua companhia.

Pouco depois, enquanto comiam do farto e caprichado café da manhã, Rosalie lhe contou tudo; os motivos que a levaram se afastar de Atlanta. Norman ficou perplexo ao saber da traição. Ficou verdadeiramente bravo com Irina. Com a filha Dorothy e também o genro Geoffrey. Como podiam virar as costas para Rosalie quando estava claro que era a que mais precisava de apoio.

Novamente, Rosalie chorou. Norman enxugou suas lágrimas, afirmando que podia contar com ele para o que precisasse. Um tempo depois, sentindo-se mais calma, Rosalie o ajudou retirar a mesa do café. Ele a ajudou pegar as malas no carro e levar para o quarto no andar de cima. Um quarto pequeno e simples que um dia pertenceu a uma adolescente cheia de sonhos e ambições.

Os dois passaram boa parte da manhã limpando e arrumando o antigo quarto de Dorothy para que Rosalie pudesse usá-lo enquanto estivesse na cidade.

 


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Notas finais do capítulo

Deixe um recadinho pra mim? Será um prazer falar diretamente com você.
Beijo grande
Sill