Através das barreiras do tempo escrita por Celso Innocente


Capítulo 23
Mudança de emprego




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— Minha família nunca vai me perdoar, por sua culpa.

— Não foi minha culpa — neguei. — Foi sua culpa e você sabe disso! Se fosse normal o que fazia com Caíque e meu irmão, sua família não teria ficado magoado contigo.

Ele se afastou sem dizer mais nada.

 

Mudança de emprego.

 

O tempo continuou passando devagar. Em Minha família, embora sendo de seis irmãos (sete com este intruso), sempre convivia mais com Regis, que me acompanhava em tudo, visitando constantemente meus avós maternos na mesma cidade e de vez em quando, os paternos na tal Vila Barbosa, além de, apesar do convívio diário com o casal Manoel e Marcelina, sempre acabávamos indo jantar em sua casa, os quais sempre nos recebia como verdadeiros mascotinhos, nos mimando como se fôssemos as crianças mais amáveis deste mundo.

Estávamos em nove de fevereiro de um mil novecentos e setenta. Depois de um dia normal de atividades na olaria, onde começamos nosso trabalho antes das cinco horas da madrugada, agora, sendo onze horas, chegávamos em casa para o almoço e desfrutarmos da tarde livre, inclusive meu irmão Regis, pois, uma vez concluído o quarto ano primário, achava que já era um homem culto e não estudava mais.

Assim que adentramos ao quintal, mamãe nos disse:

— O chefe da fábrica de garrafas esteve aqui e disse que se vocês dois quiserem trabalhar lá, é pra ir falar com ele a uma e meia.

— Jura, mamãe! — aleguei, não muito animado.

— Eu acho melhor vocês irem! — incentivou-nos ela. — Creio que seja melhor do que na olaria.

Pensei um pouco e decidi:

— Acho melhor ir só eu trabalhar lá. O Regis continua na olaria com José.

— Eu não! — reclamou o maninho. — Também quero trabalhar na fábrica! Agora eu já acabei a escola.

— Grande formatura! — ironizei. — Quarto ano primário! Você deveria continuar estudando, moleque!

— Eu não! — fez careta o formado. — Já aprendi tudo!

— Puxa! — ironizei. — Se formou em quê? Engenharia civil! Direito! Ou medicina?

— Ah! —gesticulou ele. — Vou trabalhar na fábrica!

— Quanto é a raiz cúbica de mil? Ou a raiz quadrada de cento e vinte e um?

— Pare de ser exibido, malinha! — protestou ele. — Quer mostrar que é inteligente!

Almoçamos, tiramos aquelas roupas composta principalmente por calça curta, vestimos uma calça comprida, um tênis tipo Conga e camisa.

Dez minutos antes da uma hora da tarde, levando duas marmitinhas do jantar, preparadas por mamãe, seguimos a pé para a fábrica de garrafas, que era localizada quase do outro lado da cidade, três quilômetros de nossa casa.

Não foi complicado (e eu já sabia que não seria). O senhor Ricardo, primo segundo de papai, encarregado geral da fábrica, nos recebeu e em cinco segundos já estávamos contratados para um trabalho muito simples, ajudante geral.

A fábrica era formada basicamente assim: metade dos funcionários eram adultos, a outra metade eram menores de idade, geralmente crianças ou pré-adolescentes.

Por que grande parte dos funcionários eram crianças? Incentivar os menores na arte do aprendizado ao trabalho? Nada disso! Salários irrisórios. Enquanto um funcionário adulto tinha vencimentos de no mínimo um salário mínimo e meio, os menores de dezesseis anos recebiam metade de um salário mínimo. Dos dezesseis até os dezoito anos recebiam três quarto de um salário. Além de quê, depois dos quatorze anos de idade, o funcionário era registrado, tendo direitos a férias e fundo de garantia por tempo de serviço.

Este não seria o meu caso e nem o do maninho e sequer o da maioria dos meninos da fábrica. Estávamos com onze anos de idade e nossos vencimentos seria de metade de cento e cinquenta e seis Cruzeiros Novos, mais alguma hora extra, caso fizéssemos.

Para se fabricar uma garrafa, era necessário quatro pessoas diretamente: o primeiro, utilizando um bastão de ferro, colhia o vidro derretido de dentro de um forno de quatro mil graus centígrados, despejando-o dentro de uma forma, controlada por outro funcionário com o cargo de maquinista, que criaria o molde da garrafa, este transferia o tal molde para outra forma, com outro funcionário com o cargo chamado de assoprador, pois, interligada por compressor de ar comprimido, assoprava sobre tal molde, transformando-o no artigo final. Desta forma a garrafa era entregue em uma pequena mesa de ferro, onde outro funcionário com o “grande” cargo de carregador (ali entrava minha vez) apanhava-a em uma pazinha feita de peneira de arame e levava-a até uma estufa, controlada por outra pessoa, o enfornador (a partir dali começava a ação dos funcionários indiretos na produção).

Desta estufa, o produto pronto, junto à milhares de outras, seguia lentamente por uma esteira por uns trinta metros, para que esfriasse aos poucos. Ao final destes trinta metros, era recolhida por outro grupo onde só trabalhavam crianças (cerca de sete ou oito delas), onde seria classificadas e uma vez estando com boa qualidade era levadas a um grande pátio, onde eram ensacadas ou colocadas em caixas de papelão ou plástico, estando prontas para embarque em caminhões que as levariam para as fábricas de bebidas, geralmente cachaças, refrigerantes, vinhos ou sidras.

Um dos grandes clientes desta fábrica era a famosa pinga Oncinha, da cidade de Ourinhos, no estado Paulista.

Nosso trabalho (meu e do maninho) basicamente era o de levar a garrafa pronta da mesinha de ferro até a estufa. Sendo considerado um serviço muito fácil, porém cansativo, devido caminharmos o dia todo.

Às dez horas da noite, fim de expediente, saímos para retornarmos ao lar, tomarmos um delicioso banho a dois, como de costume e dormirmos, pois estávamos deveras cansados, devido ao longo dia de trabalho, desde as cinco horas da madrugada.

Para nossa surpresa, papai estava do lado de fora nos esperando, com sua velha, porém conservada bicicleta Phillips com farol movido a dínamo.

— Que legal, papai, que veio nos buscar! — aleguei contente de verdade, por dois motivos: era uma forma de carinho que papai pouca vezes nos dava, apesar de meus constantes incentivos e… — Estamos cansados à beça!

 — O trabalho é difícil? — perguntou ele, enquanto montávamos em sua magrela. Eu na garupa e o maninho no cano, na frente dele.

— Difícil não é! — negou Regis. — Mas cansa pra carai… pra caramba!

— Amanhã cedo vocês podem ficar dormindo — disse papai. — Não precisam ir pra olaria.

Só faltava essa! Pensei, copiando os mesmos pensamentos de Regis. Depois de trabalhar a manhã toda, desde a madrugada na olaria, o dia todo na fábrica, será que ele ainda queria que fôssemos à olaria na manhã seguinte?

Graças a esta carona de papai, chegamos em casa em apenas dez minutos, seguindo imediatamente para o chuveiro, que agora (graças à modernidade) era composto por água encanada e tratada pela prefeitura, tendo então um chuveiro ligado à rede elétrica de casa.

Dez minutos depois, eu, só de cuecas samba canção e o maninho de calça, sem este acessório, deitávamos para recompor o cansaço físico.

— Amanhã quero dormir até dez horas — alegou o maninho.

Eu também teria planejado a mesma coisa.

As seis horas da manhã acordei e nem vi o maninho ao meu lado. Me levantei, seguindo ao banheiro que estava trancado. Lavei o rosto no tanque do quintal e voltei para o quarto, onde tirei aquela roupa de dormir e vesti outra, propícia para ficar a manhã em casa.

— Vocês já levantaram? — estranhou mamãe. — Poderiam ficar mais na cama, pra descansar um pouco.

— Bem que eu queria, mamãe! — aleguei. — Mas acostumado a levantar as quatro horas todos os dias, o organismo despertou achando que já estava atrasado.

Cinco minutos depois, Regis saiu do banheiro e eu tomei posse.

Passar a parte da manhã em casa foi algo assim, esplêndido; parecia mais como em um feriado e o dia se fazia ensolarado bonito, porém ameno.

Às treze e trinta horas, começava mais um dia de atividades.

Meus parceiros diretos de trabalho eram composto por: na forma de moldes (maquinista), Fabrício Monteiro, um adulto que não deixou de ser moleque; no bastão, Paulo Antônio, alemão, que resolveu imitar os gestos de moleque de Fabrício; na forma final, Ademir, um menino pouco mais velho do que eu.

O maninho Regis, trabalhando no próximo grupo ao meu lado, tinha como parceiros: o irmão de Ademir, Dorival, que também adorava brincadeiras cretinas; o irmão de Paulo Antônio, João Batista, bom homem e brincalhão, e Rafael, outro menino de seus treze anos de idade.

De repente, durante nossa atividade, por talvez distração minha, que deveria dar a preferência para o assoprador Ademir, minha pazinha de peneira se esbarrou na garrafa que acabava de ser colocada sobre a mesa de ferro, derrubando-a e quebrando-a, quase provocando um acidente contra o outro menino.

— Quebra mesmo, frangote! — gritou Fabrício. — Não sabe o trabalho que dá pra fazer!

— Desculpe-me — pedi. — Foi um incidente!

— Incidente eu vou fazer em sua carinha bonita — ironizou ele. — Frangotinho!

Paulo parou sua atividade e apenas riu da brincadeira sem graça do companheiro.

Uma vez ele parando, faz com que os demais parem também e eu seja o último dessa sequência, como em efeito dominó.

Fabrício esperou que eu terminasse minha obrigação, me abraçou forte pelo pescoço e caminhando comigo, praticamente me arrastando, insinuou:

— Eita frangotinho! Se quebrar todas minhas garrafas como vou ganhar dinheiro?

— Não são todas as garrafas! Foi apenas uma!

— Tá bém! — me deu um baita beliscão no bíceps esquerdo, que além de ficar roxo na hora, saiu até lágrimas de meus olhos. — Eu amo você!

— Cai fora de mim, meu! — me esforcei para que me largasse. — Vai amar o capeta!

Ele não me deixou, me acompanhando abraçado forte, até chegarmos a área de classificação ao final da esteira, onde mencionei que trabalhava o grupo de crianças.

Este local era propício para que todos seguissem para lá em momento de descanso, pois, além de estar longe do terrível calor, devido a alta temperatura do forno de derreter vidros reciclados, possuía um grande hall que se estendia até a área de lavagem desta matéria prima e principalmente porque era ali que os adultos conferiam sua produção diária, visto que seu salário era pago em produtividade. Quanto mais eles faziam, mais eles ganhavam.

Entre os meninos que ali trabalhavam, dois deles já eram meus conhecidos, quer dizer, de Regis, pois meu, de fato todos já eram desde há muito tempo. Odair morava a cem metros acima de nossa casa e José Pereira, na quadra seguinte, para quem segue rumo a olaria.

Não se passou dois minutos e meu maninho apareceu por ali, uma vez que seu grupo decidiu dar uma descansadinha também.

Fabrício, que continuava grudado em mim como um carrapato, me deixou, grudando em Regis, alegando:

— Frangote e frangotinho. Meus dois amores.

— Me deixe em paz, owh! — forçou o maninho bravo, conseguindo se esquivar de seu aliciador.

Na verdade, Fabrício não era uma pessoa de todo ruim. Como já mencionei, era apenas um molecão no corpo de um adulto chato.

Quando já pensávamos em voltar para a continuação de nosso trabalho, ele, disfarçadamente se aproximou de Regis e antes que o menino percebesse, puxou sua calça, descendo-a até os pés, deixando o maninho completamente nu. Por sorte na fábrica não trabalhava mulheres. Mesmo assim o maninho se apavorou, se ofendendo e gritando chorando, enquanto subia sua cueca e calça:

— Desgraçado, filho da puta!

O homem o abraçou, mordendo seu braço na altura dos músculos, alegando:

— Você e seu irmão são meus garotos e eu vou cuidar de vocês dois.

Puxei-o com raiva, protestando, enquanto o maninho, conferindo o hematoma do braço se afastava:

— Se você não parar de ser moleque safado e se pôr em seu lugar de adulto idiota, eu vou queimar sua cara com uma garrafa quente.

— Que medo dos frangotinhos! — ironizou o safado.

Eu sabia que ali começaria de fato nosso grande dilema naquela fábrica. Dilema que a princípio seria apenas do maninho Regis, mas que eu estaria agora junto, talvez em sua defesa, tentando alterar um destino criado pelo próprio homem covarde.

E foi exatamente pensando em alterar tal destino que aquele trabalho nos traria que pedi ao encarregado daquele setor, para que eu e Regis passássemos a trabalhar com outro conjunto de pessoas.

O encarregado fez o seguinte, me colocou a trabalhar na área de classificação, ajudando as demais crianças a colherem as garrafas já frias da esteira, colocando-as separadamente por ordem de quem as fabricou em uma mesa, onde passaria pelo setor de qualidade, pelas mãos de meu vizinho Odair, sendo descartada as que não passassem aos olhos atentos de tal menino experiente nesta atividade.

Porém, não foi uma ótima troca. Não para mim, que foi excelente, mas não para o maninho, pois tal encarregado, que também não era lá um verdadeiro adulto, com jeito molecão também, colocou Regis no tal grupo em que saí, pondo Pedrinho, um menininho branco de cabelos escuros e que não tinha nem dez anos de idade, no grupo em que Regis saíra.

Ao questionar o encarregado que não deveria ser assim a troca, ele simplesmente ironizou:

— Você quer escolher os locais de trabalho das pessoas aqui na fábrica? Acho que se eu colocar você em meu lugar e seu irmão de seu assistente, você estará satisfeito.

Sem querer acabei complicando ainda mais a situação do maninho, pois toda vez que seu grupo parava para um descanso, ele chegava ali em meu novo setor, sendo praticamente arrastado por aquele idiota.

E nem adiantaria eu pedir ajuda ou socorro a outros adultos, pois, com exceção de poucos, os demais simplesmente achava aquilo engraçado.

— Cara, deixe meu irmão em paz! — protestei. — Não é você a puta que ele quer!

Imediatamente Fabrício deixou Regis e antes que eu conseguisse me esquivar, já teria me abraçado pelo pescoço, ironizando:

— Ai meu frangotinho lindo! Deixe eu ser a putinha que você quer?

— Prefiro mais a putinha de sua mãe! — me esforcei para escapar. — Ou sua irmãzinha caçula, se você tiver!

Sei que minha frase foi muito forte e que qualquer pessoa me daria um forte murro na cara ao ouvi-la, mas ele nem ligou. Era mesmo mais do que um moleque, infantil demais.

 


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