Através das barreiras do tempo escrita por Celso Innocente


Capítulo 17
Um emprego perigoso.


Notas iniciais do capítulo

Dois Meses depois.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/757703/chapter/17

 

       Dois meses se passara desde que ali chegara. Meus familiares acabaram por aceitar a ideia de mais um filho na família, mais uma boca para alimentar e um corpo infantil para cobrir com roupas.

Para me tornar querido por eles e pagar por este trabalho que lhes causavam sempre, ajudava mamãe em suas atividades domésticas.

Era de manhã, já próximo do horário de almoço, ajudava mamãe a preparar um macarrão com frango ensopado para nossa refeição, semelhante a que se fazia aos domingos em nossa casa de italianos, misturado com suecos que somos.

— Sabe que dia é hoje, maninho? — perguntei a Regis, que passava pela cozinha com a maior cara de sono, por acabar de acordar. Nesse tempo, seus cabelos se tornaram novamente semelhante aos meus, que foram cortados, embora por papai, com mais cuidado.

— Terça-feira! — afirmou ele convicto.

— Dia do mês, eu perguntei!

Ele pensou um pouco e, balançando os ombros arriscou:

— Vinte e cinco.

— De…

— Sei lá!

— Junho. Que data importante que é hoje?

Ele tornou a pensar por algum tempo, arriscando:

— Descobrimento do Brasil…

— O loco! — achei graça. — Isso já foi faz tempo!

— Dia da pátria…

— O dia de hoje é muito mais importante do que tudo isso!

— Sei lá! Eu acho que não estudei ainda!

— E nem vai estudar! — ironizei. — O dia de hoje é muito importante pra ser estudado na escola desse mundo.

— É dia de Deus… — arriscou o menino.

— Hoje a gente comemora o seu natal. E o meu também!

— Natal é em dezembro! — exclamou ele.

— Natal de Jesus é em dezembro. O nosso é hoje. Dez anos de idade. Aqui ninguém faz questão desse dia, mas eu digo que é muito importante.

Abracei o maninho, dei-lhe três tapinhas nas costas, dizendo feliz:

— Parabéns, maninho! Que Deus proteja sempre a nossa vida sagrada.

Ele aceitou o meu abraço, porém não entendeu muito minhas felicitações.

Mamãe, que estava por perto, sequer se manifestou sobre tal atitude, então tomei a iniciativa de abraçá-la, dizendo:

— Obrigado, mamãe, por ter nos dado vida. Obrigado por cuidar da gente durante estes dez anos e tenho certeza que cuidará até ficarmos velhinhos.

É®Ê

Durante as férias escolares de inverno, o irmão José Carlos arranjou um trabalho na olaria, quinhentos metros de nossa casa, onde, a princípio começou a trabalhar sozinho, depois, com a promessa de nos dar algum dinheiro, passou a nos levar juntos para a fabricação de tijolos.

Nos primeiros dias tudo parecia festa e a gente fazia de conta que estava brincando de trabalhar e ainda tinha mais dinheiro do que o pouco que mamãe sempre nos dava para nossos gastos e eu até consegui, inclusive obrigar o maninho a comprarmos duas bermudas cada um, um pouco mais longa do que nossas calças curtas de francesinhos, as quais usávamos principalmente para irmos à missa das crianças, aos domingos pela manhã, celebrada pelo bondoso Frei Marcelino.

Só que aquela brincadeira de trabalhar foi se tornando enjoativa, pois tomava todo nosso tempo de ser criança, porque, além da fabricação dos tijolos, desde às cinco horas da manhã, até por volta das onze, depois das quatro horas da tarde precisávamos retornar para empilharmos a produção diária e se ameaçasse chover, seja qualquer hora do dia, da noite ou da madrugada, precisávamos correr de volta à olaria, para cobrirmos tal produção.

E eu já sabia de algo que marcaria para sempre e que estava prestes a acontecer, porém, estava sempre atento, no intuito de alterar este destino do maninho.

Era uma manhã de tempo nublado e não fabricávamos tijolos, participando de uma atividade que eu até gostava bastante, pois fingia de fato estar brincando, enchendo um carrinho com tijolos crus e levando para o forno, onde seria queimado para ficar definitivamente prontos para a construção civil.

Em uma destas tantas centenas de viagens até tal forno, Regis teria ido à minha frente, enquanto eu continuava a encher o meu carrinho e nisso, quando cheguei dentro do forno, encontrei Mauro, um rapaz de seus trinta anos de idade, solteiro, morador da própria olaria, que brincava mexendo nas partes íntimas do maninho.

— Não faça isso que é pecado — reclamou Regis assustado.

— Hoje você está in jejum? — ironizou tal rapaz.

— Filho da puta! — gritei apavorado, deixando o carrinho se despencar para o fundo do forno. — Vai mexer com o capeta!

O maninho se apavorou, tomando ciência do que de fato estava acontecendo e que tal brincadeira era um fato cruel na vida de uma criança.

— Calma — disse o rapaz assustado, porém com sorriso irônico. — Eu só estava brincando.

— Pois arrume um macho pra você brincar! — gritei com lágrimas. — Não cause trauma na cabeça de um inocente.

O maninho se aproximou e eu fiz questão em passar as mãos em seu corpo para conferir.

— Regis, a gente comprou cuecas. Por que você insiste em não usar?

No fundo eu sabia porque ele insistia em não usar. Roupas para ele era apenas um acessório. A usava porque todo mundo usava. Seu corpo, protegido por vestimentas ou não, seria apenas um templo sagrado e em sua inocência, acreditava que todo mundo é puro de coração e respeitará o próximo como a si mesmo.

O rapaz se afastou. Meu irmão José chegou com seu carrinho cheio de tijolos para descarregar e vendo o estrago que aconteceu, perguntou:

— O que aconteceu?

— Meu carrinho caiu lá embaixo — aleguei chorando. — Talvez seja só isso que você vai saber que aconteceu.

— Não precisa chorar por causa disso — protestou ele. — Eu ajudo você a tirá-lo daí.

— Hoje eu não quero mais trabalhar! Eu e o Regis vamos embora!

Voltei-me para o maninho, que estava perdido no tempo e insisti:

— Maninho, tenho tantas coisas que eu precisava lhe contar, mas eu não posso! Queria evita-las, mas vejo que não vou conseguir!

Depois de ajudar meu irmão mais velho a tirar o carrinho do fundo do forno voltamos para casa, onde, principalmente eu, fui direto para o quarto deitar-me de bruços na cama, passando a chorar inconsolável, sabendo de minha incompetência em alterar o destino, muitas vezes cruel.

Dez minutos depois, ainda continuava chorando. Regis entrou, deitou-se ao meu lado e em tom muito triste, abraçou-me pedindo:

— Arthur, pare de chorar. Não aconteceu nada!

Virei-me, limpei os olhos e pensando na inocência do garoto, confirmei:

— Certo. Não aconteceu nada! Prometa-me só uma coisa. Nunca mais chegue perto daquele cara.

— Tá! Mas não chore, por favor! Eu fico triste se você chorar.

Sentei-me na cama, o maninho fez o mesmo, coloquei a mão sobre seu ombro e tentei explicar:

— A criança é um ser inocente e muito fácil de ser prejudicada. Existem muitos adultos… não são todos, mas existem muitos que gostam de usar a criança como se fosse um boneco de brinquedo. Cuidado com eles.

— Eu vou ter cuidado. Nunca vou deixar ninguém relar a mão em mim!

— Os pais daquele rapaz irão trabalhar naquela olaria. Eles são dois velhinhos muito bons e serão seu amigo. Os dois vão adotar você como netinho e você poderá confiar neles.

— Adotar!? — protestou ele. — Não quero ser adotado! Quero ficar com minha mãe!

— Adotar em um sentido figurado — ri por entre as lágrimas. — Quer dizer que eles vão cativar você, como verdadeiro amigo.

— Nunca irão mexer… no meu… corpo?

— Com certeza não! E se souberem que o filho deles fez isso, o matarão.

— Ãh!

— Matarão apenas no coração! Mas você não contará isso, por favor. Por respeito a eles.

— Não contarei isso pra ninguém! — foi incisivo triste o maninho. — Ainda estou com vergonha que você tenha visto.

— Ainda bem que eu cheguei lá! Só sinto não ter chegado antes. Não tenha vergonha que eu tenha aparecido. Somos um só e eu preciso defender você para que eu defenda a mim mesmo.

— Tá bom! Não tenho vergonha.

— Foi a primeira vez que ele fez aquilo com você?

Mamãe acabou de entrar no quarto e estranhando nos encontrar, perguntou:

— Por que vocês não estão no trabalho?

— Por que queremos brincar — aleguei. — Somos crianças.

— Brinque depois do trabalho.

— O trabalho consome nossa infância.

— Não fui eu quem obrigou vocês ao trabalho — negou ela. — Vocês mesmo concordaram que deveriam ganhar um pouco de dinheiro.

— Sim! Precisamos comprar nossas coisas que o papai não pode.

— Não vejo tantas necessidades para serem compradas por crianças — reparou em meu rosto. — E por que você estava chorando?

— Saudades de casa — balancei os ombros. — Saudade de meus filhos.

Ela, apesar de sentir certa emoção, simplesmente riu e nos deixou a sós.

É®Ê

            Naquela mesma tarde, papai não se sentia bem e, mesmo sozinho, a pé, seguiu até o pronto socorro municipal da Santa Casa, em torno de três quilômetros distante de casa.

            Já se fazia noite, quando um enfermeiro que morava no bairro acima do nosso passou em casa dizendo que ele teria ficado internado, com objetivo da realização de alguns exames, já que seu estado de saúde inspirava cuidados.

As cinco horas da manhã seguinte já estávamos de volta ao trabalho.

Enquanto meu irmão José buscava os materiais de trabalhos, eu e Regis limpávamos o espaço onde os tijolos recém-fabricados repousariam por algumas horas.

Quando pude perceber, Mauro, que se preparava pra viajar com o patrão passava por nós, onde gracejou:

— E os geminhos? Continuam in jejum?

Meu coração, acho que o do maninho também, acelerou dentro do peito.

— Se você sequer chegar perto de meu irmão, eu… te mato — ameacei.

— Puxa! Que homem valente!

Regis se afastou, com intuito de… por necessidades ou como disfarce, indo até aos fundos da olaria buscar um balde de areia.

— Por que você não arranja uma namorada, ao invés de pensar em mexer com garotinhos?

— Eu só estava brincando com seu irmão! — protestou o cara. — Não mexo com garotinhos!

— Pois se você se atrever em chegar perto dele, eu conto pro meu pai.

— Conta nada! Meninos não contam essas coisas pros pais!

— Conto pro seu pai!

— Você nem conhece meus pais!

— Será que não mesmo? — ironizei. —Senhor Manoel e dona Marcelina. Com certeza um casal de índole melhor do que a cria deles.

— Puxa! — riu o cara. — O hominho tá bem informado.

— Eles vão trabalhar aqui na olaria dentro de alguns dias. Conto até pra sua mãe! O que é uma pena, porque ela irá sofrer muito e ela é tão boa que não merece um filho pedófilo.

— O que foi que você falou?

— Você nem sabe o que significa esta palavra, não é? Ela é feia e cruel! Meu irmãozinho é um ser inocente, puro. Não tem maldade! Só o que você fez com ele, ficará gravado na mente dele pro resto da vida. Nunca mais chegue perto dele, senão eu mato você de verdade.

— Crianças não falam assim!

— Talvez eu só pareça uma criança. Talvez na verdade eu seja apenas um capetinha loiro que veio aqui por vingança.

Nisso, meu irmão José apareceu e o rapaz, não querendo se expor perto de um menino maior, resolveu se afastar, dizendo em sorriso irônico:

— Podemos brincar mais tarde.

— Acho que você não gostará de minha brincadeira.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Só para lembrar:- Tenho outras estórias já completas aqui no Nyah!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Através das barreiras do tempo" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.