Através das barreiras do tempo escrita por Celso Innocente


Capítulo 14
Salto do Avanhandava


Notas iniciais do capítulo

Com um pequeno vídeo mostrando as quedas d'água do Salto.



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— Eh, vovó! — protestei rindo. — Está querendo nos devorar?

— Ainda não! — riu ela com seu sorriso gostoso. — Estão muito magrinhos! Primeiro esta bruxa malvada aqui vai enchê-los de queijo pra ficarem fortinhos.

Salto do Avanhandava

 

Salto do Avanhandava.

            Isto mesmo, queijos. A gente adorava visitar a vovó, não que sejamos interesseiros (ou somos?), mas entre suas guloseimas, sempre estava repleta de queijos de todos os tipos, que ela sempre ganhava da proprietária do laticínio ao lado de sua casa. Tão ao lado, que a mulher a chamava pela janela e ela recebia estas delícias sem sequer precisar sair daquela copa. Ah! E quando chegávamos à sua casa, esse era o dia especial dela receber estes presentes, pois a “bondosa” mulher, que eu nunca conheci, sabia que mais boquinhas famintas chegaram para dar gastos.

            — Por enquanto me alegro em apenas lambê-los e sentir o gostinho salgado de suas bochechas! — completou vovó.

            — Credo vó! — reclamou Regis. — Lamber-nos! Não somos gatinhos, que a mãe gata nunca para de lamber!

            — Pra mim vocês são gatinhos, cachorrinhos, bonitinhos, cheirosinhos… fedidinhos…

            — Fedidinhos, vovó! — protestei levantando os braços e sentindo meu próprio cheiro embaixo dos braços. — Não estamos fedidos!

            — Estão cheirando a suor… de crianças!

            — Ãh! — estranhei. — Tomamos banho ontem à tarde!

            — E depois brincaram na rua, correndo e pulando iguais macaquinhos!

            De fato havíamos brincado bastante na rua na noite anterior, porém, não foi tanto assim de correr. Teríamos brincados de namoro no escuro, fita e sim, esconde-esconde.

            — Tudo bem! — riu ela amável. — Suor de criança não é fedido ao ponto de ofender meu nariz! É apenas fedor de suor.

            — Pois é vovó — lembrei-me de algo. — que a gente não ouse soltar um punzinho perto da senhora.

            — Isso mesmo! Quando precisar, corra pro quintal.

            Depois de uma pausa, ela perguntou:

            — Quem veio com vocês?

            — Ninguém! — alegou Regis. — Viemos sozinhos!

            — Como sozinhos? Duas crianças!

            — Não somos… criancinhas! Já temos nove anos! Quase dez!

            — Pois é! — protestou ela. — Dois adultos com menos de dez anos de idade! Seus pais vão bater em vocês!

            — Não vão, vovó! — neguei com sorriso. — Eles sabem que viemos aqui.

            — E deixaram?!

            — Sim! Viemos de ônibus! Não tem perigo.

            Pensei um pouco e me lembrando de uma falta, perguntei:

            — O tio não está?

            — Não! Acho que já foi pro bar!

            — Tão cedo!

            De fato ainda eram oito horas daquela manhã.

            Vovô, retornando do fundo do quintal, adentrou a cozinha e chegando à copa insinuou de modo áspero:

            — Se quiserem tomar café, está na mesa da cozinha!

            — Obrigado, vovô! — agradeci. — A gente já tomou café!

            — Não comeram queijo e nem do pão daqui!

            — Podemos comer, vô? — perguntou o maninho.

            — Se está na mesa é pra se comer!

            Seguimos os dois para a mesa da cozinha que estava farta, com diversos queijos, requeijão, pão caseiro, manteiga original, doce de leite, café e leite natural.

            Não deixaríamos aquela fartura passar sem ser devorada e já começávamos a nos deliciarmos, quando ele, só então estranhando algo, veio até nós:

            — Quem é você, menino? — se dirigiu ao maninho.

            — Sou Regis, vô! Seu neto!

            — E quem é esta cópia sua?

            — Sou Arthur! Filho da tia do Regis!

            — Ah tá! — se conformou ele, se afastando rumo a porta de saída para o quintal dos fundos.

            Por se tratar de vovô Alfredo, até que ele falou muito.

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Assim que tornamos a encher a pança com aquelas delícias, voltamos para vovó, que continuava grudada no rádio.

            — A senhora ouve rádio o dia todo, vovó? — perguntei curioso.

            — O que mais eu tenho pra fazer? — riu ela.

            Dei de ombros como quem diz “pergunta o que quer, ouve o que não quer”.

            — Não se ofenda! — riu ela, acho que percebendo que fiquei triste. — Criança é um bichinho especial. Ser curioso faz parte da criança.

            — Não somos bichinhos, vó! — protestou Regis.

            — Pra mim vocês são! Um gatinho é um bichinho! Um cachorrinho também é! Eles são idênticos a vocês! Tem coração, sangue, veias, nariz, boca… comem, dormem, tomam banho, fazem travessuras.

            — Não fazemos… travessuras! — protestou Regis franzindo toda a cara.

            — Claro que fazem! Ou não são crianças!

            — Pode ser que fazemos um pouquinho! — concordou Regis. — Mesmo assim não somos iguais bichinhos! Nós temos alma! Quando morrermos iremos para o Céu!

            — Será que os cachorrinhos não têm alma? — contestou vovó. — Será que eles não têm sentimentos de carinho, amor, dor?

            — Tá bem, vovó — concordei. — Nós somos seus bichinhos. Ainda bem que não nos comparou a leitõezinhos.

            — Por quê? — riu ela. — não virarem jantar?

            — É! E também para que vovô não queira nos castrar!

            — Ele não é tão malvado!

            — Com os leitõezinhos ele é!

            — Me diga uma coisa, menino — desconfiou ela. — Esta história de… filho da tia do Regis, é real?

— Não muito! — neguei, sabendo que ela não era ignorante. — Depois eu explico melhor. Agora nós vamos dar um passeio lá nas cachoeiras.

            — Com quem? — estranhou ela.

            — Só nós dois!

            — De jeito nenhum! Lá é muito perigoso!

            — Não tem perigo, vovó! — negou Regis. — A gente já sabe se cuidar!

            — Claro que não sabem! São muito pequenos!

            — Nós viemos de casa até aqui, sozinhos — justifiquei. — É muito mais perigoso e nós viemos! Que perigo pode ter nas cachoeiras?

            — Caírem lá dentro e se afogarem!

            — Não vamos cair lá dentro! Só se fôssemos idiotas!

            — Espere o tio de vocês retornar e ele irá lá com vocês.

            — Acho que ele não voltará tão logo — negou Regis.

            — É só você ir lá no bar da esquina e chama-lo.

            Nem precisou, titio Osvaldo acabava de chegar, entrando pela porta que leva ao portão e chegando até a copa, nos cumprimentando:

            — Olá, meninos!

            — Oi! — respondemos praticamente juntos.

            — Já tava no bar bebendo de novo? — reclamou a mãe.

            — Que bebendo nada, mãe! — protestou ele. — Estava conversando com os amigos sobre pescaria.

            — Sei bem qual pescaria que é! — riu desconfiada vovó. — Os meninos querer ir na beira do rio. Eu preciso que você vá lá com eles.

            — Ir lá com eles de quê, mãe?

            — Pega meu avião lá no fundo do quintal! — ironizou a bondosa vovó.

            — Não quero ir com seu avião, vovó! — neguei rindo. — Iremos mesmo é a pé!

            — Como ir a pé, moleque! — reclamou o homem.

            — Assim tio, óh! — fiz gesto com dois dedos caminhando sobre a mesa da copa.

            — São mais de dois quilômetros! – reclamou o homem.

            — A minha escola é três e eu vou a pé todos os dias! — justificou Regis.

            Titio seguiu para o fundo do quintal, apanhou sua bicicleta azul, arrastando-a para fora, ao qual nós o acompanhamos e lhe perguntei:

            — O que o senhor vai fazer?

            — Iremos de bicicleta.

            — Por quê? — Insisti.

            — Não quero caminhar por mais de dois quilômetros!

            — Chegando lá o senhor vai deixar ela onde?

            — Não se preocupe que de minha magrela eu cuido.

            Já chegávamos à rua, na limpíssima avenida.

            — E como iremos nós três nesta… magrela? — especulou o maninho.

            — Você pode ir correndo atrás! — ironizou titio.

            — Tudo bem! —conformou-se Regis. — Irei!

            — Ou você pode também ir sentado aqui no quadro da frente enquanto o José vai na garupa.

            — José! — franzi toda a cara. — Quem disse que meu nome é José?

            — Quem é você? — só aí é que titio percebeu alguma coisa estranha.

            — Pô, vocês são mesmo adultos desligados, não? — reclamei. — Sou o primo idêntico de Regis. Vamos que eu vou na garupa.

            Subi no suporte traseiro da bicicleta, enquanto Regis subiu no quadro, sendo entrelaçado pelos braços de titio Osvaldo, que começou a pedalar pela avenida, ainda estranhando:

            — Nunca vi falar de primos idênticos! Tá mais parecido mesmo com um filho bastardo de seu pai.

            — O que é… filho bastardo? — estranhou Regis.

            — Um filho que seu pai teve com outra mulher que não seja sua mãe.

            — Ah tá! Arthur já tinha falado sobre isso comigo um dia. Ele não é isso não! É filho da minha tia que o senhor nem conhece.

            — Sei! — ironizou o homem. — Só se for sua tia com seu pai!

            Em poucos minutos já nos deparávamos com a beleza das quedas d’água do Rio Tietê, antecipadas por duas grandes pontes de concreto armado sobre a rodovia Assis Chateaubriand.

            Atravessamos pela primeira ponte denominada como vazante (um local para desviar apenas o excesso de água do rio) e cem metros depois chegávamos a ponte principal.

            Saltei da garupa da bicicleta antes mesmo que titio parasse completamente. O maninho fez o mesmo e começou a caminhar, mancando um pouco devido ao mal jeito em andar sobre um quadro de barra de ferro.

            Corremos até o parapeito da ponte, onde ao longe ficamos observando aquela maravilha de toneladas de água rolando sobre as pedras das diversas cachoeiras construídas por um Ser Supremo e comandada por outro deus chamado “natureza”.

            — O que há? — Especulei em ironia. — Por que está mancando?

            — Acho que minha bunda nunca mais voltará ao normal — riu ele.

            Quando titio Osvaldo chegou até nós, empurrando sua magrela, eu lhes disse:

            — Sabia que tudo isso aqui será destruído pelo homem?

            — Como destruído? — não entendeu o outro menino.

            — Essas duas pontes aqui irão ficar embaixo da água. Todas estas cachoeiras lindas que a natureza demorou milhões de anos para construir, o cretino do homem irá destruir em apenas… — fiz breve conta nos dedos. — quatorze anos.

            — Por quê?

            — O progresso, maninho! O homem vai construir diversas barragens sobre toda a extensão do Rio Tietê, construindo usinas hidrelétricas para suprir a população com eletricidade.

            — O pai de vocês mudou lá do sítio por causa disso, sabia? — concluiu titio.

            — Verdade! — confirmei. — Éramos felizes lá no sítio e papai se viu obrigado a abandonar tudo pra irmos pra sempre pra cidade.

            E eu me lembrei de algo:

Se eu tivesse voltado no tempo antes de papai ter se mudado para a cidade (dois anos antes), acho que faria de tudo para que ele abandonasse a ideia, já que o sítio em que morávamos, ao contrário do que imaginavam, não será coberto pelas águas represadas.

            — Eu queria que o papai continuasse morando lá no sítio — foi incisivo o maninho Regis.

            — E eu estou estranhando essa conversa! — interferiu titio Osvaldo. — Como os dois moravam no mesmo sítio, se são apenas primos?

            — É quê… — me perdi. — Eu morava no mesmo sítio, mas em outro lugar. Papai também teve que ir pra cidade.

            — Eu conheço muito bem a tia de vocês que também morava no sítio. Aliás, conheço todo mundo que morava no sítio e pelo que eu saiba, não existia por lá nenhum menininho que fosse assim figurinha repetida.

            Sai correndo em busca de estar mais próximo das quedas d’água, acompanhado por Regis, fugindo também da esperteza de titio Osvaldo.

            Atravessamos pela primeira ponte pênsil, construída por centenas de pequenas tábuas e amarrada de um lado ao outro da cachoeira por poderosos cabos de aço com pelo menos três quartos de polegada de espessura.

            Passamos defronte à bonita lanchonete azul do lugar, onde, caminhando agora devagar, disse ao maninho:

            — Acredita que essa lanchonete também ficará sob as águas?

            — Como assim? Será encoberta?

            — Sim!

            — Acha! É muito alto aqui pra encher de água!

            — Encherá! Está vendo a usina lá na frente?

            Apontei para uma pequena usina hidrelétrica a uns duzentos metros.

            — Também cobrirá de água? — perguntou-me duvidoso.

            — Tudo! O homem é malvado!

            — Ah, mas… não será por necessidade? É preciso mesmo criar energia pra iluminar as cidades e as casas!

            Apontei para o céu e disse:

            — Olha uma energia boa lá no alto. E o melhor, é grátis.

            — Como?

            — Energia solar, maninho! Se o homem deixasse nossos rios em paz e criasse modos de usar a energia que o Sol nos dá de graça todos os dias, seria mais do que suficiente pra Terra inteira e o melhor, nossos olhos continuariam contemplando esta maravilha que meus filhos não conhecerão.

            — Como você, com… oito anos de idade consegue falar coisas tão difíceis? — questionou-me titio, que acabava de chegar sem a bicicleta, que teria deixado na lanchonete.

            — Escola, tio! — dei de ombros. — Sou estudante, lembra?

            — Sim! Do segundo ano primário! Está aprendendo quanto é duas vezes dois ou no máximo quantas sílabas tem na palavra menino!

            — É que… dizem que sou… nerd!

            — Não estou te criticando — alegou titio. — Estou te parabenizando por saber tanto. Só queria saber quem é você de fato.

— Acha que sou mesmo meio irmão de Regis?

— Não creio que seja primo dele.

            — Deixa isso pra lá, tio! Depois a gente explica… E eu não tenho oito anos! Tenho quase dez.

            — Você é filho do pai dele e de outra mãe?

            — Nããão! —neguei convicto. — Depois tentarei explicar. Não agora! Não aqui nesta maravilha, que eu agradeço de coração a Deus pela oportunidade que me deu em rever.

            — O quê!? — estranhou meu jeito de falar, o homem.

            — Era pra ser algo impossível e eu estou revivendo! O senhor não imagina a felicidade que estou sentindo — pensei um pouco e continuei. — Só é uma pena que eu não trouxe algo lá de casa para registrar tudo isso. Lembra manin… Regis?

            — A sua máquina especial!

            — Eu deveria ter trazido ela. Apagaria tudo o que tem lá e registraria isso aqui!

            — E a pilha? — lembrou Regis.

            — Ainda tem bastante! Depois que acabar, ficaremos sem ela até que eu adapte alguma coisa.

            — Ada o quê! Menino? — ironizou o homem.

            — Adapte! Aprendi com papai!

            — Você não tem nove anos!

            — Vou fazer dez!


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