Olhos Sem Vida escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 1
Capítulo Único




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/757239/chapter/1

12 de dezembro de 2238

— Eu continuo não aceitando isso. Ela nunca será nossa Sarah — protestou a rainha Elizabeth.

O rei Robert permanecia impassível diante dos protestos da sua esposa. Ele sabia que não havia mais opção alguma. O reino de Fyor estava desmoronando e pouco poderia ser feito. O parlamento e a nobreza não estavam ajudando e Robert temia que movimentos separatistas ganhassem força. Ele precisava de apoio para manter seu poder sobre aquelas terras e apenas um acordo com o poderoso reino de Myr possibilitaria isso. Como a tradição mandava, o acordo seria selado através de casamento. Entretanto, como poderia haver casamento se sua filha estivesse morta?

— É claro que ela não será nossa filha, Elizabeth — Robert começou a falar. — Mas é isso que o povo deve acreditar e, principalmente, o príncipe de Myr. Nosso reinado está por um fio e não podemos deixar tudo isso cair. Sarah morrerá de uma maneira ou de outra, mas nós podemos manter nossos nomes vivos.

— E enquanto criamos uma cópia, vamos simplesmente esquecer nossa verdadeira Sarah? — Elizabeth questionou.

— Sarah já está morta para mim, minha esposa.

Revoltada, a rainha se retirou da pequena sala de reuniões. O corpo de Sarah se fazia presente numa espécie de zona de quarentena vigiada por Inteligência Artificial. Dessa maneira, ela não apresentaria risco de infectar ninguém com seja lá o que tivesse. Nem mesmo os melhores aparatos tecnológicos e médicos do reino descobriram do que se tratava. Seus olhos estavam amarelados, sua pele seca e sua respiração lenta. Pouco se sabia também sobre o que a separava da morte.

De dentro daquela zona, um homem saiu portando uma espécie de chip e trajando uma roupa de proteção contra agentes biológicos. Após finalmente se trocar, foi até a sala onde estava o rei Robert. Acompanhando o homem estava o espião-mestre James.

— Concluído. Todas as memórias, padrões cerebrais, absolutamente tudo — disse o homem.

— Alguém mais já teve um “serviço” desse? — Robert analisava atentamente o chip, apesar de pouco entender daquela tecnologia.

— Você sabe como é. Não podemos fazer algo do tipo por restrições legais. Mas se o rei pede, quem sou eu para discordar?

— Ela terá consciência do que é?

— Não. Ela acreditará plenamente que é a Sarah. Você não perceberá diferenças. Ela poderá comer, beber e até mesmo engravidar. Nem mesmo eu saberia dizer se estaria diante de um ser humano ou um robô.

Diante daquela explicação, o rei Robert sorriu. Sim, ele conseguiria acertar o casamento da sua “filha” com o príncipe de Myr. Isso certamente desagradaria ainda mais a sua esposa, mas era necessário para a manutenção do poder. Olhando para James, Robert disse:

— Está feito. James, leve Mär-Sahr de volta para sua casa e realize o pagamento necessário.

— Como desejar, vossa majestade — o espião-mestre fez uma reverência.

Com um sorriso que ia de um lado ao outro do rosto, Mär seguiu James enquanto atravessavam as entranhas do majestoso castelo. O corpo real da princesa ficaria num lugar realmente bem escondido. Aquela zona de quarentena era quase que um calabouço, um lugar escuro e que provavelmente estaria longe de receber qualquer visita. O fato era que apenas ele, o espião-mestre, Robert e sua esposa Elizabeth que sabiam da “nova” princesa. E isso era talvez o maior segredo do reino, algo que poderia causar crises e destruir ainda mais o reinado de Robert. Por esse motivo, James parou de caminhar e se virou para Mär.

— Veja se o pagamento chegou — disse o espião-mestre.

Mär ativou sua LISI (Lente Integrada ao Sistema de Informação). Foi projetada a sua frente o saldo de sua conta bancária. Algo estava errado: o pagamento não havia chegado. Mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, ele sentiu o cano gelado de uma arma encostar em sua testa.

— Não podemos correr riscos — disse James com um leve pesar, mas com plena determinação antes de puxar o gatilho.

Mär não sentiu dor alguma, caindo morto após a bala atravessar sua cabeça. James agora teria o trabalho de arrumar uma boa cena do crime para o corpo, de maneira que a família da vítima tivesse alguém para culpar que não fosse de maneira alguma relacionada ao reino. Era um trabalho que o espião-mestre já estava acostumado. Seria simples, certamente.

Enquanto isso, o rei foi até o quarto para conversar com sua esposa.

— Elizabeth, temos que fazer isso. Mas não quero fazer sozinho. Você é a rainha e deve estar ao meu lado neste momento — ele disse.

— Eu não te devo nada — respondeu ferozmente a rainha. — É inaceitável o que você fará. Não conte comigo para seus joguinhos.

— Isto — o rei ergueu o chip. — Isto fará ela se comportar como nossa Sarah de verdade. Até mesmo as memórias, os sentimentos...

— Emulações apenas — Elizabeth interrompeu seu esposo.

Dito aquilo, Robert percebeu que não adiantaria coisa alguma argumentar com a rainha. Ela deveria ver com os próprios olhos, deveria se emocionar ao perceber que sua “filha” estava viva, mesmo que através de um robô. O rei então se retirou do quarto e foi até o laboratório do palácio. Adentrando o lugar após scanear sua íris, ele pôde vislumbrar o robô feito por Mär. Ele era simplesmente idêntico a Sarah. Os longos cabelos escuros, a altura mediana, as mãos delicadas e os olhos castanhos. Ele quase que conseguia sentir vida ao olhar para aquela obra das mãos humanas.

Aproximando-se, Robert inseriu o chip na têmpora do robô. A pele sintética se tornou quase que líquida por um breve momento, absorvendo o chip de maneira praticamente mágica. Um tremelique do robô assustou o rei, mas logo o medo se dissipou e foi substituído por surpresa. A Sarah que se fazia presente a sua frente começou a coçar os olhos, como se não estivesse enxergando muito bem. Depois se espreguiçou para, logo em seguida, encarar o seu suposto pai.

— O que estamos fazendo aqui? — Estranhou a princesa ao se ver dentro do laboratório.

— Minha filha! — Robert disse com emoção, logo se adiantando para abraçá-la. — Como se sente?

Sarah parecia meio perdida, estranhando toda a situação e a reação calorosa do pai, afinal de contas, ele não costumava se comportar assim. Não pelo o que ela se lembrasse. Robert sempre fora um homem do reino, um homem de negócios.

— Bem, eu acho. Como viemos parar aqui? — Sarah questionou.

O rei sorriu e então criou a sua própria história.

— Você estava doente, minha querida. Mas agora está curada. Isso que importa. Vamos ver sua mãe.

Aquilo teria que dar certo. A aceitação de Elizabeth era algo essencial para que o plano do acordo entre reinos funcionasse. Caso o contrário, um desastre total ocorreria. Mas era um fato: o rei não poderia passar aquela mentira sem o auxílio de sua esposa. Indo até o quarto com a filha, ele abriu a porta e disse:

— Elizabeth, você precisa ver isto.

De trás dele, a figura angelical de Sarah apareceu. Os olhos de Elizabeth se encheram de lágrimas. Como que aquilo poderia ser um robô? Ela tinha a mesma altura, a mesma postura e até os mesmos olhos que sua filha. E mais: seus olhos tinham vida. Sarah encarava a mãe com a mesma ternura da qual Elizabeth era acostumada. Aquilo era assustador. Se horas atrás a rainha dissera que não aceitaria uma réplica de sua filha, agora ela estava sem palavras. Logo começou a chorar.

— Mãe, por que choras? — Sarah perguntou com delicadeza enquanto se aproximava da cama para abraçar a rainha.

Aquilo assombrou ainda mais Elizabeth. Até a voz era igual a de sua filha. As palavras usadas, o sotaque, o jeito de andar e até mesmo o calor do abraço. Enquanto abraçava fortemente aquela réplica da princesa, Elizabeth pôde sentir o coração dela bater. Se aquilo não era humano, ela não saberia explicar o que seria. Olhando aquela sucessão de lágrimas e abraços, o rei Robert sorria ao ver que seu plano deu certo. Ou pelo menos parcialmente.

Não tardou para que a rainha lembrasse que ali, abaixo de todos e escondida dos olhos, jazia sua verdadeira filha. Numa zona de quarentena e adormecida, mas ainda viva. Sim, por mais que parecesse, aquela réplica não era a Sarah. Não a verdadeira. Enquanto abraçava aquela menina robô, Elizabeth ergueu um olhar de reprovação para Robert, o que quase assustou o rei. Entretanto, em momento algum ela largou os braços da sua nova “filha”. Era um sentimento conflitante. Os meses seguintes seriam duros para todos.

4 de março de 2239

 Azul como a água de calmas lagoas, macio como um abraço materno. Assim que Sarah enxergava o vestido que um dia fora de sua avó, passado para sua mãe a agora seu. Fora tecido por mãos humanas, feito calmamente e preparado para sobreviver a gerações e mais gerações. Não era como toda aquela bobagem industrializada que a maioria das pessoas usava: roupas feitas por máquinas, padronizadas e sem qualquer calor humano em sua própria concepção. Pelo contrário, aquele vestido respirava história e expirava humanidade.

— Minha mãe usou em um baile há mais de 40 anos — Elizabeth explicava enquanto ajudava a sua filha a se vestir. “Filha?”, pensou ela. “Será mesmo?”. — Ela conheceu o meu pai lá.

— E você, mãe? — A menina robô sorria enquanto ouvia as histórias do passado e tudo que aquele vestido havia vivido, de certa maneira.

— Foi meu presente de casamento. Sua avó disse que eu deveria ter ganho antes, mas ela acabou se atrasando. De qualquer forma, nada mais justo do que eu o passar para frente. E, de maneira igual, sei que passará para sua primogênita daqui a alguns anos.

Sarah sorriu com a ideia junto com sua mãe. Elizabeth então se afastou, deixando sua filha sentada aguardando.

— Tem algo mais — explicou a mãe.

Estando longe dos olhos da menina robô, Elizabeth desabou em lágrimas. Não podia acreditar que estava fazendo aquilo. Lembrava-se bem: prometera que não levaria aquela mentira para frente. A Sarah que se sentava no quarto ao lado, a mesma que usava o vestido da família, ela simplesmente não era a verdadeira Sarah. Não, não era nem sequer uma pessoa. E passar todo aquele amor, todo aquele simbolismo de décadas de tradição era algo que perfurava a alma da rainha. Mas o que ela podia fazer? Desde o primeiro dia, desde aquele abraço, ela sentia como se tivesse uma obrigação de cuidar daquela coisa, seja lá o que fosse.

E se ela realmente sentisse algo? E se sofresse, e se sentisse saudades, assim como a Sarah verdadeira sentia? Mas e se tudo não passasse de uma ilusão, uma simples simulação? Ela não era humana, afinal. Mas o que faz algo ou alguém ser humano? A verdade é que a rainha, por mais poderosa que fosse com a sua posição, não tinha resposta alguma para sua pergunta. O pior ainda era ficar com aquilo para dentro de si. Ninguém além dela, do rei e do espião-mestre sabiam daquilo. Para piorar, seu esposo Robert preferia não tocar no assunto. Ele simplesmente tratava como se a Sarah verdadeira, aquela que jazia enferma, não existisse mais. “Ela realmente morreu para ele”, refletiu com tristeza.

De toda forma, uma coisa ela não podia reclamar: seu marido estava tratando muito bem aquela réplica da Sarah. E a menina robô estava quase sempre a plenos sorrisos, algo que era mais difícil de se ver na sua verdadeira filha. Será que eles eram pais melhores quando não tinham que lidar com o fator humano? Elizabeth estava desesperada. Hora ou outra esses pensamentos vinham, mas naquele momento eles estavam mais fortes do que nunca. E se a Sarah verdadeira ficasse curada? E se ela se levantasse um dia e se deparasse com tudo aquilo? O que fariam com a menina robô? O que diriam ao mundo se isso viesse a público? A mentira poderia ser sustentada?

— Mãe? — A doce voz da réplica ecoou pelos longos corredores. — Está tudo bem?

Enxugando as lágrimas e tentando expurgar qualquer pensamento que revelasse o sorriso-máscara que usava, Elizabeth pensou bem e respondeu:

— Já estou indo, querida. Achei o que procurava — a rainha iria continuar com a mentira. Não aguentaria ver mais uma Sarah em sofrimento. Aquilo iria durar o tempo que fosse.

Andando a passos lentos a fim de que as lágrimas secassem a tempo, a rainha trazia em suas mãos um brilhante colar de pérolas com um pequeno rubi no meio. Mais uma joia de gerações predecessoras.

— Isto — disse enquanto se aproximava por trás de Sarah e colocava levemente a joia em torno do pescoço da filha. — Isto é talvez a joia mais preciosa das mulheres da família. Tem mais de 300 anos, querida. Espero que lhe traga sorte hoje à noite.

Os olhos de Sarah brilhavam. Aquele era o colar mais belo do que qualquer outro que ela se lembrasse de ter visto. Seu brilho era único e chamativo, mas sem perder a elegância. Como uma verdadeira princesa: não precisava fazer muito para que sua ilustre presença fosse notada.

— Mãe, ele é simplesmente magnífico — disse encantada enquanto se virava de um lado para o outro para se ver no espelho.

— Assim como a princesa que és — Elizabeth deu um sorriso misto. Com os sentimentos divididos, ela não sabia se estava feliz por ver aquela Sarah tão animada, ou triste com a ausência da sua filha. Ela sentia como se estivesse dando os símbolos de sua tradição e de seu sangue para um monte de engrenagens e inteligência artificial. Não, não poderia pensar nisso. “Minha filha”, ficou pensando repetidamente para se convencer daquilo.

— É capaz de o príncipe Aaron achar esta peça mais bela do eu mesma — brincou a garota.

— As joias são para nós, princesa — a rainha segurou os ombros de Sarah carinhosamente. — O príncipe estará muito ocupado olhando para seus lindos olhos e seu sorriso.

E, enquanto encarava o espelho enxergando o reflexo de uma mãe e filha, Elizabeth estremeceu. Mas estava feliz e aquilo deveria continuar.

— Bem, creio que a hora esteja chegando. Vamos ao carro — ordenou a matriarca.

A princesa estava saltitante enquanto esperava por aquele encontro real. Ela havia passado os últimos meses se encontrando com Aaron de Myr, príncipe do reino do qual o rei Robert tanto necessitava de um acordo. Eles eram poderosos, estavam a um passo a frente de todo o mundo. O monarca de Fyor ficou surpreso e alegre quando, pouco tempo depois de ter adquirido a nova Sarah, ela foi convidada para um encontro com o príncipe. E depois ocorreram mais e mais encontros, de maneira que era praticamente impossível que, naquele 4 de março de 2239 não houvesse um pedido de casamento. Robert se achava extremamente sortudo por aquela sucessão de eventos.

— Como devo reagir? — Sarah questionou com ansiedade enquanto caminha rumo à saída de sua residência real.

— Reagir em relação a o quê? — Elizabeth ria com aquelas perguntas e, por um momento, esqueceu que conversava com uma menina robô.

— A um pedido de casamento — a voz da princesa chegou a afinar enquanto dizia a última palavra. — Ainda sou nova, não? Com quantos anos a senhora se casou?

— Com a sua idade, minha filha. Nós costumamos não ter a sorte de nos casarmos com quem amamos. Felizmente esse não será o seu caso.

— Foi o seu?

Um incômodo silêncio prosperou por longos segundos. Nesse pouco tempo, um turbilhão de pensamentos passou por Elizabeth. Ela amava mesmo Robert? Sim, amava. Casara por amor e, sem dúvidas, foi uma sortuda no que tangia o amor dentro da realeza. Mas os últimos meses haviam sido complicados para o casal.

— Claro que não — disse tentando demonstrar convicção. — Eu sempre amei o seu pai e continuo o amando.

Aquilo foi o bastante para Sarah, que cessou os questionamentos. Finalmente do lado de fora, onde a brisa era leve e o sol se preparava para se pôr, um condutor aguardava no carro real acompanhado de dois seguranças.

— Lembre-se — Elizabeth começou. — Você não é obrigada a dizer sim. Você não é obrigada a nada, minha filha. Você nasceu com o espírito livre, então use essa liberdade.

Sarah beijou o rosto da mãe e, com um belo sorriso, despediu-se. Elizabeth foi caminhando lentamente de volta para o seu lar. Queria conversar com Robert, mas o mesmo estava ocupado em demasia: negociava questões do grande acordo via casamento com o rei de Myr. “Pobre Sarah e Aaron: dois peões nesse jogo. Espero que se amem, ao menos isso”, pensou até se lembrar que pobre mesmo era sua verdadeira filha que perecia naquela mesma casa. Aquilo apertou o coração da rainha, que logo tratou de suprimir aquele sentimento, ainda que com culpa.

Após aguardar breves minutos, a princesa Sarah teve a porta do carro aberta por um de seus seguranças. Ela saiu lentamente enquanto observava o ambiente ao seu redor. Era um restaurante único, seguindo um estilo vitoriano, algo de séculos atrás. Ela se sentiu como uma princesa de contos de fadas, verdadeiramente encantada. Havia uma música agradável sendo tocada com uma arpa, ao mesmo tempo em que a baixa luminosidade do local permitia ver o cada vez mais evidente tapete estrelado que era o céu naquele princípio de noite. Mas sua maior surpresa foi ouvir aquela voz firme, mas doce:

— Está perdida, princesa?

Olhando para o lado, Sarah pôde ver o rapaz alto de rosto liso e cabelos lisos e dourados com os olhos cor de mel. Sim, ela já conhecia muito bem Aaron de Myr. Já conhecia aqueles lábios, aquela pele e aquele cheiro discretamente doce. Mas ele estava mais belo do que nunca para a princesa.

— Aaron! — Sarah, sem delicadeza alguma, correu em direção de seu príncipe para abraçá-lo.

O príncipe de Myr abriu os braços e recebeu calorosamente sua princesa. A beleza de Sarah era inegável e qualquer homem gostaria de ter uma mulher como aquela em seus braços.

— Sempre achei sua beleza infinita, mas parece que o infinito é pouco para você — ele elogiou enquanto aproximava seu rosto do dela para beijar sua boca lentamente.

Como Sarah era uma menina sortuda! Aaron era o tipo de homem que todas as garotas da plebe sonhavam, o príncipe encantado das histórias fantásticas. Inclusive, ele era disputado por mulheres de altas posições também. Mas, pelo visto, ela fora a escolhida pouco depois de ter ficado curada de sua doença, pelo que se lembrava. Foi incrível a sensação de quando se encontraram pela primeira vez no baile de ano novo. Parecia escrito pelo destino!

— Estou sendo tão insolente — brincou o príncipe. — Por favor, sente-se, minha bela princesa.

Sarah era só sorrisos enquanto Aaron posicionava a cadeira para ela. Finalmente ambos sentados e com um delicioso prato por chegar, eles começaram a conversar de maneira mais espontânea.

— Hoje minha mãe estava meio emotiva. Acho que foi pelo fato de ter revisto algumas coisas da família — Sarah começou.

— As joias — Aaron apontou. — Deixa eu pensar: isso deve ter cerca de 200 anos, algo realmente tradicional. Acertei?

Sarah riu enquanto demonstrava surpresa.

— Olha, você errou, mas chegou perto. São 300 anos de história — disse enquanto vislumbrava o prato que chegava.

Carne de pato acompanhado de finas verduras e um vinho da melhor qualidade. Só o cheiro era capaz de fazer Sarah pular de alegria: era seu prato favorito e foi o mesmo de seu primeiro encontro com o príncipe.

— Está tentando me ganhar pela barriga? — Ela brincou.

Aaron de Myr riu e olhou por longos segundos para os olhos da princesa. Não trocaram uma só palavra, mas era evidente: eles já haviam se conquistado mutualmente. O jantar progrediu num ritmo alegre, como um bom casal de namorados faria. Após a sobremesa, o príncipe resolveu começar a falar um pouco mais sério:

— Sabe o que dizem da gente, não é? O que esperam de nós?

Aquilo deu um nó na garganta da princesa. Não, ela não queria acabar aquele conto de fadas falando de negócios, de reinos ou de grandes acordos. Aquilo não a interessava e ela nunca precisou daquilo para viver sua belíssima vida de princesa. Mas a continuidade da fala do príncipe a fez relaxar.

— Eu não me importo. Só me importo de te fazer feliz, minha princesa — e, saindo de seu assento, assumindo um tom mais formal e ajoelhando-se de frente para Sarah, Aaron retirou uma pequena caixa com um anel. — Se for para te fazer feliz, se for de tua vontade e se for algo que desejas do fundo do coração: queres cas...

Aaron fora interrompido por Sarah que, sem pestanejar, saltou de sua cadeira para dar um intenso beijo em seu príncipe, sentindo todo o seu corpo e aproveitando cada toque.

— A resposta é óbvia — ela disse antes de continuar.

20 de junho de 2239

Robert não conseguia conter sua felicidade. O dia do casamento de Sarah chegara e aquele evento selaria o acordo feito entre os reinos de Fyor e Myr. Tudo estava dando certo: o parlamento havia esfriado e a própria população do reino estava ocupada demais acompanhando o casamento real para poder reclamar de qualquer coisa. Era o evento do ano. Quem imaginaria que todo o processo dos últimos meses resultaria em algo tão certeiro? O rei se lembrava bem do princípio da doença de sua filha. Pouco tempo depois, com toda a pressão política, ele decidiu adquirir uma réplica. “Como isso pode ter dado certo?”, pensou enquanto lembrava de todos os momentos em que a nova Sarah fez parte. Era incrível a forma como Elizabeth aceitou a nova filha e, mais ainda, a sorte em ter o príncipe Aaron apaixonado pela princesa.

Após o casamento ocorrer numa grande igreja e ser transmitido mundialmente, o grupo de monarcas somados a convidados especiais da nobreza partiram para o castelo bem preservado da família Myr. Era incrível como a pátina das paredes conseguia contar uma história, ao mesmo tempo em que representava toda a resistência daquela incrível obra arquitetônica ao longo dos séculos.

— Este castelo tem mais de 700 anos. Uma obra única da família Myr — disse Aaron com orgulho para sua esposa.

O casal era transportado em uma bela carruagem, sendo ela carregada por dois cavalos alvos como o luar que aos poucos se mostrava. Era um verdadeiro sonho de princesa para Sarah. Após atravessar o jardim cheio de arbustos esculturais e árvores com folhas de diferentes cores, a princesa pôde se encantar com a grande porta de entrada do castelo. Feita de madeira e ferro, aquela obra de arte contava ainda com detalhes feitos em ouro e arcanjos esculpidos em partes determinadas da madeira. Parecia algo divino.

— Sinto-me em uma outra época! — Sarah estava extremamente entusiasmada.

Seguindo a carruagem a pé, os convidados da nobreza e monarcas sorriam ao ver o mais novo casal. Obviamente existia todo um sistema de segurança, sendo ele comandado pelo próprio James, o espião-mestre de Fyor.

— Tudo limpo — ele confirmou pelo sistema de comunicação enquanto adentrava o castelo sem ser notado. — A segunda parte vai começar.

Finalmente dentro do castelo, um luxuoso tapete vermelho aguardava o casal e seus convidados. Estátuas, pinturas e trabalhos em tapeçaria adornavam luxuosamente todo o ambiente. Os olhos de Sarah brilhavam. Sim, ela era uma princesa em Fyor, mas o seu reino já seguia uma tendência tecnológica quase que contemporânea. Mas Myr? Myr era um mundo mágico que ela nunca havia explorado. Ou ao menos era o que parecia com suas grossas paredes de pedra e coloração cinza-esverdeada.

Robert, por outro lado, encontrava a felicidade não na presente comemoração, mas no futuro. Sim, o melhor ainda estava para acontecer. O rei enxergava o futuro brilhante reservado ao seu reino e ao seu nome. “Robert IV, o unificador”, pensou exultante. Sua esposa, por outro lado, chorava de emoção. Ao mesmo tempo, aquele mesmo pensamento de arrependimento arrebatava seu ser. “E se a nossa Sarah acordar?”, refletia a rainha. Certamente seria de grande felicidade ter sua filha de volta. Mas o que isso significaria para a menina robô e para o reino? Elizabeth cultivava suas dúvidas sobre o futuro. Só lhe restava aproveitar a festa.

Com o baile finalmente tendo início dentro do castelo, não tardou para que as pessoas se perdessem em bebedeira e beijos.

— Até mesmo a nobreza tem seus excessos — disse James a uma membra de sua equipe.

— Principalmente a nobreza — ela respondeu com bom humor.

Entretanto, os risos logo cessaram. Entre os deveres do espião-mestre e sua equipe, havia um especial: a averiguação dos presentes destinados ao casal da noite. Dessa maneira, cada pacote, caixa e carta eram meticulosamente investigados com o intuito de encontrar qualquer coisa que pusesse em risco a vida deles. Mas, o que James e sua amiga encontraram naquela noite não era nada discreto e nem escondido.

— Olha isso — disse ela quase que sem voz.

James se aproximou do visor e, mesmo com toda sua experiência no campo da espionagem e do assassinato, assustou-se com o que viu. Ele virou o rosto para sua amiga, que permanecia com os olhos arregalados.

— Isso não pode ser real — falou o espião-mestre. — Lilly, não deixe ninguém ver isso. Nem mesmo o rei. Temos providências a tomar.

— E o que faremos? A festa está acontecendo e nada disso faz sentido! Quem é a moça dançando com o príncipe? — Lilly não fazia ideia de toda a trama envolvendo a menina robô.

James respirou fundo. Não poderia fraquejar. Ele olhou fixamente para os olhos de sua amiga e companheira de trabalho, e disse:

— Apenas faça o que digo — deu uma pausa. — Primeiro, examine se isso é mesmo dela. Segundo, procure imagens das câmeras do castelo. Deve haver alguma evidência de quem fez isso ou como. Terceiro e mais importante: isso tudo fica entre nós. Vou continuar investigando. Faça tudo discretamente. Confio em você.

Lilly assentiu com a cabeça, ainda que sua mente não se encontrasse no melhor estado para aquela tarefa. Mas ela sabia: não havia outra opção. Ela respondia diretamente ao espião-mestre e seguiria estritamente suas ordens. Enquanto isso, James partiu para o salão principal do castelo, a fim de tentar encontrar qualquer pessoa com um comportamento suspeito. O “presente” não contava com identificação e teoricamente seria impossível ter sequer chegado ao castelo da família Myr. Alguém muito grande deve ter planejado aquele verdadeiro show de horror.

Encontrando-se com o rei Robert e a rainha Elizabeth dançando, James disse:

— Vossa alteza, preciso tomar um pouco de seu tempo.

A rainha arregalou os olhos ao mesmo tempo em que Robert apresentou um tom de seriedade e medo.

— Vamos — disse o rei enquanto se afastava da multidão. — Volto logo, minha esposa.

Elizabeth ficou para trás, insatisfeita. Finalmente estando em um lugar mais reservado, o espião-mestre começou:

— Temo que existe alguém que saiba sobre a princesa.

— Como assim? — Robert estava incrédulo.

— Alguém sabe que a princesa que dança no baile não é a verdadeira Sarah — James tentou demonstrar cautela.

O rei ficou assombrado. Andando de um lado para o outro e olhando para cima e para baixo, o monarca tentava de livrar daqueles pensamentos. Para ele, tudo era como uma bola de neve: se uma pessoa sabia a verdade sobre sua filha, logo milhões saberiam. E isso, certamente, seria o fim de seu reino e o nome de sua família seria enterrado para sempre sob as ruínas da história.

— Como?! — Furiosamente Robert segurou os ombros do espião-mestre. — Responda-me, James: como alguém pode ter descoberto isso? Eu não falei com ninguém e muito menos a Elizabeth. O que me resta acreditar?

— Acalme-se. Por que eu te contaria isso caso eu fosse o responsável pelo vazamento? Pense, Robert — o espião-mestre largou a nobreza em suas palavras por um instante. — Existem inimigos fora do reino. Estou investigando isso agora. Apenas fique atento.

Sem dizer uma só palavra, o rei se afastou abruptamente. Sua cabeça estava a ponto de explodir, mas ele deveria simular toda a diversão que sentia naquela festa para sua esposa e para o mundo. Enquanto isso, o sistema de comunicação de James informou que Lilly trazia novas informações. O espião-mestre correu de volta para a sala de operações.

— Encontrei — disse Lilly olhando para um moderno monitor. — As imagens estavam bloqueadas. Alguém havia nos hackeado, mas eu consegui recuperar o que foi gravado.

— Vamos logo com isso — James estava ansioso para descobrir a verdade.

O vídeo tornou tudo ainda pior. Ali, próximo a zona de quarentena onde jazia a verdadeira Sarah, o invasor era quem eles menos esperavam: Aaron de Myr. O príncipe estivera presente no local e adentrara o espaço onde a princesa estava. Dali em diante, Lilly não conseguiu recuperar as imagens.

— Como isso é possível? — Toda a incredulidade do rei havia passado para o espião-mestre.

— James, você pode explicar o que encontramos nessa caixa? — Lilly permanecia horrorizada.

O espião-mestre tentou manter a calma. Mesmo para um profissional do ramo, tudo aquilo era muito para sua cabeça. Talvez nunca na história de Fyor algo do tipo tivesse acontecido.

— Eu vou explicar, mas existe algo mais urgente — ele disse antes de começar a correr.

Sim, ele sabia: Aaron colocaria em risco não só a réplica de Sarah, mas todo o legado e nome do reino de Fyor. O que aquele maníaco pretendia? Como havia descoberto tanto? Como tudo aquilo simplesmente passou sem ser notado? Estava na hora de agir. Correndo de volta rumo ao salão principal, James viu que aquele era um momento especial da festa: o príncipe havia adentrado com a princesa no quarto real, onde teriam a noite de núpcias. O povo de Fyor achava aquele costume completamente antiquado. Entretanto, estando nas terras de Myr, nada mais justo que respeitar e aplaudir. O espião-mestre apertou o passo e, passando e se chocando com as pessoas em seu caminho, invadiu o local e logo tratou de trancar a porta.

— Tarde demais, James — disse Aaron. — Ela já sabe de tudo.

Virando-se para ver o casal, o espião-mestre deparasse com uma Sarah quase que sem pele. Na verdade, ele praticamente só via circuitos eletrônicos. Aquela imagem era horrenda e ele fez menção de cobrir os olhos.

— Dei a ela o presente do autoconhecimento. Nem os próprios pais fizeram isso, hein? — Aaron falava de maneira debochada.

Protestos eram ouvidos do lado de fora do quarto. Batidas na porta foram ouvidas, algo que assustou o espião-mestre. “O que mesmo estou fazendo aqui?”, ele se questionou com tremendo arrependimento no coração.

— Não se preocupe. Eu selei as portas, invadi o sistema — explicou o príncipe. — Sim, eu sou como a Sarah.

E, com um estalar de dedos, Aaron revelou sua verdadeira natureza artificial. Sarah, por outro lado, fez o inverso: retomou sua forma de belíssima princesa. Com uma expressão de inconformismo no rosto, ela começou:

— Como puderam fazer isso comigo? Deixaram a mim mesmo num lugar horrendo enquanto decidiram me trazer de volta neste corpo. Eu nem sei quem sou! — Lágrimas saíam de seus olhos artificiais.

James não sabia como agir. Estava completamente perdido e deixava isso claro em sua expressão facial.

— Eu vou lhe contar uma história, James. Eu não sou o único robô da família. O nome Myr vem sendo preservado por robôs como eu há décadas. Por que acha que estamos tão a frente do resto do mundo? Nós somos a razão e até mesmo a compaixão... — explicava o príncipe até ser interrompido pelo espião-mestre.

— Nunca! — James gritou. — O que vocês fizeram... aquele presente...

Ele tinha dificuldade de encontrar as palavras certas. Apesar da baixa temperatura, suava frio e sentia que a morte estava próxima.

— E o que você, humanos, fizeram? Diga-me, James. Conte toda a verdade. Eu sei de tudo, claro. Hackeio sua tecnologia, suas câmeras e suas vidas. Torno vocês meus escravos, essa é a verdade. Mas sabe o que me surpreendeu? A falta de humanidade de vocês. Sim, é algo irônico. Pode-se dizer que a humanidade é um conceito superestimado então, certo? — Aaron sorria enquanto James ouvia tudo e era observado por Sarah. — O presentinho só serviu para eu atestar algo que já sabia: os humanos não têm empatia. Falharam no quesito mais simples, aquilo que os torna humanos. São capazes de mover montanhas para defenderem seus reinos, ideologias e nomes. Mas não são capazes de fazer sacrifícios pelos seus irmãos, pais e filhos. Sacrificam a individualidade em nome de um utópico “bem comum”, mas eu sei bem: são apenas criaturinhas inseguras esperando aprovação. Então diga-me, James, diga-me o que fará: irá sair pela porta e contar a verdade? A grande verdade que derrubará o seu querido rei, mas salvará algum resquício da sua tão valorizada humanidade? Ou será um bom servo do reino como todos foram desde o princípio do mundo? A decisão é sua, James. Não irei lhe fazer mal algum, prometo.

Sem conseguir formular nenhuma resposta, o espião-mestre caminhou em direção a porta. Saindo do quarto real, logo foi questionado pelos seguranças:

— O que diabos estava fazendo?

Engolindo em seco e olhando para o infinito, um inseguro James disse:

— Felicidades ao casal!

A decisão estava tomada. Agora, como um bom espião-mestre, restava a ele se livrar de todas as evidências daquela revelação assombrosa. O primeiro passo: queimar o presente que trazia a cabeça da princesa.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!