O sétimo visconde escrita por Catarina Costa


Capítulo 5
Ser ou não ser


Notas iniciais do capítulo

A pressão aumenta sobre Anthony, que está chegando ao seu limite...



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Não foi exatamente uma surpresa para Anthony quando, no primeiro dia do mês de agosto, Violet abriu a porta do escritório e anunciou:

— Quero ir para Londres.

O filho ergueu os olhos do documento que estudava e ficou de pé, saindo de trás da escrivaninha. Ainda se passaria muito tempo antes que conseguisse ter qualquer conversa com a mãe nesse lugar, sentado no lugar de seu pai.

— Quando?

— Nos próximos dias. Amanhã, se possível.

— Por quê? Quero dizer, eu imagino o motivo, mas por que tão rápido?

— Por que certas coisas a gente faz desse jeito, sem parar muito para pensar.

— Aqui é nossa casa.

— A Casa Bridgerton também é nossa casa. Acho que será bom para todos nós mudarmos de ares. Especialmente Eloise. Além do mais, você teria de ir a Londres antes de partir para Oxford, não é?

Anthony fez que sim.

— Tenho de me apresentar na Câmara dos Lordes.

Ele tentou dar um ar natural à frase, mas estava tão nervoso quanto em seu primeiro dia em Eton, quando era apenas um garoto.

— Você vai se sair bem.

Anthony deu de ombros.

— Suponho que, com o tempo, tudo fique mais fácil.

A mãe concordou, com um movimento de cabeça. Pensou que não conseguiria viver nem um dia sem Edmund. A falta dele quase a sufocava. Mas o primeiro dia sem ele chegou ao fim. Depois outro. O tempo não apagava as marcas que a vida deixava, para o bem ou para o mal. Mas, sim, podia deixar tudo mais fácil. Ou ao menos suportável.

— Bem, já que você concorda comigo... Vou arrumar as malas, então.

— E Hyacinth? Acha que já está pronta para viajar?

— Ela ficará bem. Estamos de acordo?

— Estamos. Mas preciso que me dê mais dois dias.

Violet assentiu.

— É razoável para mim também.

                                                               *             *             *

Quando soube que iriam para Londres, Colin invadiu o escritório de Anthony, em tom de reclamação:

— Que história é essa de irmos para Londres? Como fica a minha prática de tiro?

— Para o próximo verão.

— Quem disse isso?

— Eu estou dizendo.

— É assim que vai ser daqui em diante?

— Assim como?

— Você é que vai nos dizer o que fazer e quando fazer? — explodiu Colin. — Você não é meu pai!

Era tão raro Colin perder as estribeiras que Anthony refreou a vontade de rebater. Com um suspiro, apenas perguntou:

— Por que aprender a atirar é tão importante para você?

— Porque... — hesitou Colin. Nem ele sabia exatamente por que desejava tanto praticar tiro. Mas sabia que precisava aprender, como seus irmãos e os outros garotos de sua idade e classe social. No entanto, a resposta que brotou de dentro dele foi bastante sincera e a mais próxima da verdade que trazia dentro de si: — Quer saber? Porque atirar em um alvo é, no momento, uma forma de botar para fora minha raiva!

— Praticar tiro com raiva não é uma boa coisa — observou Anthony, em um tom de voz manso, quase cauteloso. — Mas você não costuma se deixar dominar pela raiva dessa forma. O que está havendo, Colin?

— Você ainda pergunta? Meu pai morreu! Quem vai me ensinar tudo o que falta para ser um homem? — desabafou o garoto, com os olhos cheios de lágrimas.

Os olhos do próprio Anthony também arderam quando ele deu de ombros, quase pedindo desculpas.

— Eu... Eu suponho que eu possa ensinar alguma coisa. Benedict também. Mas você é tão bom em tantas coisas, Colin. É tão esperto, tão perspicaz. Tenho certeza de que se sairá bem de qualquer jeito.

As lágrimas escorreram pelo rosto do garoto que, desajeitadamente, tentou limpá-las com as costas das mãos.

— Você acha?

— Tenho certeza.

— Desculpe — pediu Colin, trocando o peso do corpo de uma perna para outra. — Eu... Eu não quis ofender você. Eu sei que vai me ajudar.  É só que o papai faz muita falta.

— Não ofendeu. Também sinto demais a falta dele.

Os olhos verdes do irmão mais novo, normalmente travessos, cravaram-se nele como se o vissem com atenção, pela primeira vez, em muito tempo.

— Você também ainda estava aprendendo, não é?

Anthony não teve coragem de encará-lo.  Por fim, ainda cabisbaixo, admitiu:

— Estava — admitiu o irmão, criando coragem para erguer os olhos. — Mas parece que a verdadeira lição só chegou agora. Não se preocupe tanto com isso, Colin. O que papai não teve tempo de explicar, a vida se encarregará de ensinar. Muito mais e melhor do que eu.

Colin fitou-o em silêncio, pensativo. Anthony voltou a sentar-se atrás da escrivaninha, dando mostras de que a conversa estava chegando ao fim.

— Quanto à prática de tiro, ainda temos dois dias antes de partir. Podemos aproveitá-los para treinar.

O rosto do garoto desanuviou um pouco. Mas, ainda que o arranjo o satisfizesse, lembrou:

— Você deve ter muita coisa para fazer antes de partirmos.

— Está quase tudo acertado — mentiu Anthony, sem querer olhar para a pilha de papel acumulada em cima de sua mesa. — Espere por mim, às quatro, perto do lago.

— Feito — assentiu Colin.

— Com uma condição...

—Qual?

— Você tem de prometer que não vai praticar com armas sem mim. Nem aqui, nem em Eton, em lugar nenhum. Ao menos até que você e as pessoas que o acompanham dominem o suficiente o que estão fazendo. A última coisa que desejo no mundo é que você se machuque ou vá ferir alguém por ainda não saber lidar direito com armas.

—Prometo.

A expressão de Anthony chegou próxima a um sorriso de aprovação.

                                                               *             *             *

Estava trabalhando à noite, quando a casa já havia se aquietado. Tinha muito que fazer, além de recuperar o tempo perdido com a prática de tiro de Colin. Perdido, não, corrigiu-se. O irmão mais novo havia ganhado mais controle sobre a arma, além de aprender mais sobre segurança. Além do mais, Benedict se juntara a eles e acabaram tendo uma tarde agradável. Algo parecido com que a mãe costumava chamar de “clube dos meninos”, quando eram menores e brincavam a tarde toda na casa da árvore feita pelo pai.

 Estava perdido nesses pensamentos foi surpreendido por uma batida na porta.

— Entre.

Era a mãe. Anthony ficou de pé e saiu de trás da mesa.

— Mãe — saudou, com um movimento de cabeça.

— Ainda trabalhando?

—Eu preciso aprender como se administra isso tudo.

— Você não precisa aprender tudo de uma vez.

Como explicar a ela a urgência que o impelia a aprender e trabalhar sem parar para cuidar deles e protegê-los antes que tivesse o mesmo destino do pai?

Como muitos homens jovens que perdiam o pai cedo, Anthony acreditava... Não, tinha certeza de que morreria cedo. Edmund era tão grande, tão inigualável, que seu filho mais velho simplesmente não acreditava que poderia suplantá-lo de qualquer forma. Nem mesmo na quantidade de anos vividos. Mas antes que isso acontecesse, faria tudo que pudesse para que a mãe e os irmãos tivessem segurança e conforto para o resto da vida deles.

A mãe olhou-o com atenção, algo que ainda vinha evitando fazer desde que Anthony passara a assumir o lugar e as tarefas do pai. Ele estava mais magro e havia olheiras sob seus olhos. Com inesperada ternura na voz, ela recomendou:

— Vá descansar. Não há nada aí que não possa esperar um pouco até amanhã. Seu pai nunca ficava até tão tarde.

Anthony deu de ombros, tentando ignorar a comparação inocente, porém dolorosa.

— Eu já estava quase acabando.

— Soube que você deu a primeira lição de tiro a Colin. Obrigada.

— Não precisa agradecer por isso, mãe. Há muito pouco que eu não faria por meus irmãos. Seja ensinar a atirar ou contar uma história para dormir.

— Eu sei. É que agora, parece que você faz isso de um jeito diferente.

— Como assim?

— Como se tivesse que fazer isso.

— Faço de boa vontade.

—Eu sei. Mas, agora, você parece achar que tudo que se refere a eles é sua responsabilidade.

Anthony deu um suspiro, como se retrucasse: “e não é?”. Mas as únicas palavras que saíram de seus lábios foram:

— Pensei que a senhora tivesse me pedido para ensinar Colin a atirar.

Violet fitou-o com um sorriso triste nos lábios.

— Eu sei. Isso é algo que eu não poderia fazer. Mas me preocupa ver tantas tarefas nos seus ombros.

A resposta foi um esboço de sorriso tão triste quanto o dela.

—Está tudo bem, mãe.

— Não se sobrecarregue. Ou um dia, talvez, você nunca mais queira nos ver na sua frente.

A simples ideia de nunca mais desejar ver sua família arrancou uma risada descrente de Anthony.

— Não há a mínima possibilidade de isso acontecer.

Por dentro, porém, pensou que a mãe também devia assegurar a si própria, todos os dias, que nunca desviaria os olhos de um filho seu. E isso é o que ainda acontecia todos os dias às refeições, quando ele estava trabalhando ou cuidando de um irmão. Ele percebia que a mãe fazia força para se controlar, mas a verdade é que ela o fazia sentir-se como alguém que está fora de seu lugar. Pior: como alguém que havia usurpado um lugar que não lhe pertencia.

                                                               *             *             *

Londres não foi mais generosa com Anthony. Estava há apenas três dias na cidade e já havia escutado desde comparações ingênuas da criadagem (“seu pai não fazia isso desse jeito”) até elogios ao seu pai na Câmara dos Lordes que acabavam por colocá-lo em uma posição inferior (“terá de se esforçar muito para ser como Edmund”).

Estava ficando cansado disso tudo. Quando as pessoas entenderiam que ele tinha plena consciência de que seu pai era um grande homem e que ele nunca, jamais, se igualaria a ele?

A noite pedia um uísque. E foi o que ele fez, servindo-se da melhor garrafa do pai.  Estava fazendo o líquido cor de âmbar girar no copo quando Benedict entrou no escritório.

— Posso falar com você?

— Sempre.

— Preciso de sua ajuda.

— Qualquer coisa. É só falar.

— Eu queria... Eu queria pedir uns conselhos — respondeu Benedict, sentando-se no sofá em frente a ele e inclinando o corpo ligeiramente para frente, como quem ia fazer uma confidência.

— Garotas?

O irmão mais novo corou de leve. Já era mais alto do que Anthony, mas só tinha tamanho. Faltava-lhe ainda a confiança para sentir-se à vontade em sua nova estatura. A confiança que o irmão parecia ter de sobra, em tudo que fazia.

—É, é sobre garotas. Mas eu não sei...

—Não sabe o quê?

—É uma dúvida meio técnica. Não sei se é adequado perguntar isso a você, agora que...

— Agora que o quê?

— Agora que você é o chefe da família. Um visconde. Uma espécie de pai para nós.

Anthony protestou:

—Ah, não! Não faça isso comigo, Benedict. Você é meu irmão. Talvez, o mais irmão de todos, já que a diferença de idade entre nós é tão pequena...

— No momento, apenas um ano — lembrou Benedict, com um pequeno sorriso de superioridade. —Ao menos até o mês que vem...

—Pois é! Sempre fomos companheiros. Eu me sinto meio pai dos mais novos, mas você, Colin e Daphne... Especialmente você... Você é meu irmão! Não tire isso de mim, por favor.

O mais novo pareceu ficar sem jeito.

— Desculpe, eu não tive a intenção...

— Eu sei. O problema sou eu. Está difícil ouvir que eu não sou o pai quando alguma atitude ou decisão minha irrita um de vocês. Mas o contrário, ou seja, ser apontado como um pai quando eu deveria apenas ser um irmão, também é complicado.

Benedict assentiu enquanto Anthony dava um gole na bebida. Foi com o olhar fixo no conteúdo do copo que esse último indagou:

—Você se lembra das nossas primeiras férias depois que você entrou em Eton?

O irmão fez que sim, embora não percebesse aonde o outro queria chegar. Anthony prosseguiu:

— Você se queixou que era muito difícil ser meu irmão.

—Ah! —exclamou Benedict, percebendo qual era o ponto. —Eu me lembro. Era difícil mesmo. Ainda é. As pessoas me comparam o tempo todo com você. E devo confessar que tenho de me esforçar bastante para não perder na comparação, sem ser, ao mesmo tempo, sua cópia. Mas suponho que esse seja um problema que todo irmão mais novo costuma enfrentar. Principalmente um irmão mais novo de alguém de personalidade forte, como você.

— Se isso lhe serve de consolo, acho que agora sei como você se sente. Só que, no meu caso, a concorrência é bem mais pesada.

Os lábios de Benedict se ergueram levemente.

— Você está falando do nosso pai?

Anthony suspirou, concordando. O sorriso de Benedict alargou-se.

—Desculpe, mas o caso é completamente diferente.

— Como assim?

— Não me entenda mal, mas não há comparação. Vocês pertencem a categorias diferentes. Ele era nosso pai. Você é nosso irmão.

— Se acredita mesmo nisso, por que não quer tirar comigo as suas dúvidas técnicas sobre garotas?

Benedict abriu os braços, como o lutador que admite o golpe.

Touché, Anthony. Sabe, sempre achei que se você não estivesse destinado a ser visconde, seria advogado. Não perde uma.

— Humpf... Vai tirar suas dúvidas ou não?

— Sobre garotas? Não... Fica para outro dia.

— Por favor, não me arrume confusão.

— Pode deixar. Vou me virar com o que sei.

— Quando estiver à vontade, procure por mim para tirar suas dúvidas. Ou para compartilhar comigo suas histórias. Ainda sou seu irmão. E prometo tornar sua entrada em Oxford, daqui a dois anos, menos penosa do que sua entrada em Eton.

—Não é culpa sua. Você é o que é.

— A questão é essa: o que sou eu, exatamente? E para quem?...

Benedict não respondeu.


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Notas finais do capítulo

No próximo capítulo, Anthony encontrará uma pessoa disposta a guiá-lo na árdua tarefa de ser o sétimo Visconde Bridgerton. O preço? Ele mesmo.



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