Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 22
O Adeus e o Noviço


Notas iniciais do capítulo

Podem pegar as velhinhas e o bolo por que hoje Ode aos desafortunados está fazendo um ano! Com capa nova, totalmente original agora para comemorar toda essa jornada durante esses mais de vinte capítulos e com muito mais por vir! Quero agradecer a cada um que acompanhou essa história, vocês são o que me dão forças a continuar escrevendo ♥
Espero que curtam esse capítulo especial de aniversário



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Friedrich teria para sempre uma relação de dois gumes com sua vivência no mosteiro. Jamais seria a pessoa que havia se tornado se não fosse a promessa feita antes de seu próprio nascimento. O conhecimento que havia adquirido e as artes que lhe foram ensinadas, todos se tratavam de privilégios escondidos, afastados e proibidos para o restante do povo. O clero guardava seus segredos com uma exclusividade ferrenha, prendendo todo o saber em suas abadias como abelhas a vigiarem suas colmeias. O alquimista havia sido parte de uma parcela mínima da sociedade a possuir tal privilégio, e por mais que não fizesse mais parte da Ordem, ainda levava todo o saber e a eterna busca por ele dentro de si.

Amava aprender. Pois como alguém que viveu por muito tempo na ignorância sobre o mundo que o cercava, devorava os livros e discursos dos intelectuais de forma obstinada e com sede por ainda mais conhecimento, onde se pudesse aprenderia sobre todas as coisas sabidas caso fosse capaz. A praticidade e alcance pelos livros era algo que faria grande falta durante sua vida desde a partida do mosteiro, onde passaria a buscar pelo conhecimento não mais como algo diante dele, mas como um tesouro escondido e que sempre precisa ser reencontrado.

Foram tantas coisas que o mosteiro lhe proporcionou, junto a toda a devoção que tinha em seu espírito para com seu cargo, que não fora atoa todo trauma de ser expulso violentamente da irmandade que foi por tanto tempo sua casa. Uma vida tranquila e monótona completamente retirada à força de suas mãos, algo que Friedrich guardaria com pesar e lamentos por ainda muito tempo em seu interior.

Todavia, havia um detalhe que a memória de Friedrich muitas vezes mascarava sobre sua vivência em São Jerônimo. Sua saída do mosteiro não foi um dos momentos mais perturbadores, poderia ter sido o maior, mas não o único.

Pois a sua entrada como frade também havia sido lamentavelmente dolorosa.

Final de 1336, interior do condado de Hampshire, domínios de Lorde Harold Farley II. Ali foi onde um jovem fâmulo passou seus últimos instantes antes de isolar-se para a vida sacra.

As primeiras tochas estavam sendo acesas para iluminar os arredores da muralha e o caminho entre a plantação de trigo e o manso servil. O céu possuía o avermelhado típico do fim de dia, com cinzentas nuvens ameaçando trazer chuva ou neve ainda naquela noite, Friedrich sentia o vento veloz esvoaçando os cabelos compridos até a linha do queixo, refrescando por um instante o corpo imerso pelo calor do trabalho mesmo com o clima tenebroso do inverno. Quando a neve chegasse, provavelmente não precisaria mais trabalhar nos campos, mas a escassez tornaria tudo mais difícil, por isso onde passasse todos exibiam o mesmo olhar soturno e repleto de desânimo quanto ao dia seguinte.

As pernas doíam de tanto permanecer em pé, os braços pareciam amortecidos, ainda tendo de carregar um fardo de lenha até em casa. Contudo já estava muito bem acostumado com tais frutos do trabalho braçal.  Seu olhar apático denotava o cansaço que sentia, com parte significativa do descontentamento causado pelo estômago faminto que era raramente saciado por completo. Dificilmente comeria mais alguma coisa além de um naco de pão velho, já planejando se retirar para dormir logo após as orações que sempre fazia. Era mais fácil esquecer a fome dessa forma.

— Saudações meu caríssimo e digníssimo irmão! – Apesar da fala eloquente e dos seus ombros serem agarrados para a jovem saltar o mais alto que pudesse, Friedrich não se assustou com tal gesto, na realidade já esperava uma situação parecida assim que ouviu os passos leves e apressados  característicos de Ruth correrem em sua direção. Geralmente os dois saiam juntos dos campos, todavia após o trabalho ele se dirigiu até o manso senhorial para pegar a lenha oferecida á família naquela semana, deixando assim que o pai e a irmã partissem antes dele.

— Há pouco nos separamos para tal cumprimento. Que desejas? – Indagou com as sobrancelhas erguidas, mostrando que já conhecia muito bem os truques da irmã. Ruth lhe lançou um sorriso travesso, mostrando os dentes ainda mais tortos do que os dele, mas encantador da mesma forma com seu jeito sincero e espontâneo.

— Sabes dos menestréis que a pouco chegaram à vila? Anna me contou que eles irão se apresentar esta noite. Gostaríamos muito de poder vê-los tocar, e tu sabes como gosto de dançar! – A garota andava quase que saltitante ao seu lado, balançando para lá e para cá as tranças de cabelo castanho. – Mas a mãe e o pai jamais nos deixariam ir, ainda mais durante a noite! Isso se uma de nós pedisse, é claro...

— Também não permitiriam se eu pedisse. Não obstante, detesto dançar – Friedrich cortou com um tanto de mau humor no tom. Podia enxergar a alguns passos longe sua irmã Anne segurando a mão do pequeno Timóteo de quem cuidava no momento, esperando ansiosa o retorno dos dois, junto com a resposta se dançaria ou não aquela noite.

— Se há uma pequenina chance de eles deixarem, será somente se tu fizeres o pedido! Eles confiam de olhos fechados em você e escutam o que tens a dizer, pois não o veem mais como criança! – Ruth contestou, trazendo uma verdade que traria orgulho a qualquer outro primogênito de uma família, Friedrich já era visto como um adulto mesmo que ainda no corpo de um rapazote. Claro que ele se orgulhava de tamanha responsabilidade, mas também sentia nas costas todo o peso de tal alcunha a lhe quebrar os ossos diariamente. – E deixe de ser tolo, tu só não gostas de dançar com outras garotas além de mim! Pois lembra-te do outono passado em que eu falava sobre o dia que eu tivesse idade para os garotos me convidarem a dançar e tu me disseras que não se importaria caso um garoto lhe chamasse tamb...

— Calada Ruth! – A repreendeu apavorado, por ter consciência que tal mero deslize lhe poderia trazer a ruína. Não imaginava que Ruth ainda se lembrasse disso, uma bobagem que havia dito sem pensar quando deixaram que Friedrich bebesse vinho pela primeira vez. Queria nunca ter dito tal coisa próximo da irmã, que pelo jeito ainda não havia percebido tamanho sacrilégio na ideia profana.

— Por quê? Eu entendo por que disse isso, como vai se tornar frade não pode envolver-se com garotas. Não há de que se envergonhar por apreciar a dança enquanto não pode cair em tentação! – Ruth disse de forma que parecesse óbvio, fazendo com que Friedrich ficasse sem reação ao ouvir tal interpretação.

— Oh, é... Claro.  – Respondeu atônito, mas aliviado pela inocência da garota.

Chegaram próximos dos outros dois irmãos e Friedrich teve a mesma súplica da parte de Anna, que sempre ajudava a irmã mais velha atazana-lo. Refletiu em silêncio por alguns segundos, por mais que berrassem em seus ouvidos, pensando se valeria a pena enfrentar os pais e abdicar do descanso que tanto merecia e precisava. Todavia, ao olhar os rostos cheios de expectativa das irmãs, sedentas por uma novidade e alegria tão raras por aquelas terras frias, sabia que não conseguiria simplesmente negar.

— Eu vou tentar. – Declarou por fim, recebendo quase no mesmo instantes um abraço coletivo das meninas que o apertavam e lhe enchiam de beijos no rosto, até mesmo o pequeno Timóteo sem entender direito o que acontecia se aproximou para lhe abraçar as pernas. Tal euforia quase o fez derrubar toda a lenha que carregava, contudo inevitavelmente um singelo sorriso se formou em sua face, com a exaustão não se fazendo mais tão presente por um breve momento.

Deixou o séquito de crianças para trás, esperando ansiosamente pelo seu retorno. Rumou por entre as choupanas e o caminho estreito tomado por barro, sentindo os pés mal protegidos pelos sapatos de pano ficando encharcados conforme avançava. Ao parar na entrada, pensou em como bateria na porta de tábuas desiguais de sua casa, tentando a princípio ajeitar a lenha em seus braços para tentar liberar alguma das mãos, mas chegando a conclusão de que chutar seria mais eficiente.

Entretanto, desistiu no último segundo ao ouvir o choro de criança e de uma discussão no interior da pobre residência.

— [...] apenas um pouco de farinha para que ela se acalme. – Ouviu sua mãe dizer quase como uma súplica enquanto ouvia o choro de Grace se sobrepondo a voz de Marie.

— Este pouco de farinha fará falta, se começar a dar migalhas por aí logo não sobrará mais nada! Este ano tivemos uma colheita ruim e os impostos aumentaram de novo, não será oferecido mais do que já temos. – A voz ríspida de seu pai fez com que Friedrich sentisse um tremor tomar seu corpo de forma involuntária, conhecendo muito bem a personalidade firme e autoritária do homem.

— E se pedíssemos mais ao lorde? Poderia colocar Anne a trabalhar nos campos junto com nós e Timóteo cuidaria das vacas. Ele é pequeno, mas já possui idade.

— Já conversei com ele há tempos, contudo o senhor se nega á aumentar nosso sustento. Dizem que há uma guerra contra os francos para vir, quiçá seja a razão para o racionamento. Não duvido que comecem a procurar por homens para serem soldados. – Jeremiah disse com uma preocupação e estresse latentes. Todos se calaram por um momento, sobrando somente o choro da criança a machucar os ouvidos alheios. – Calada Grace! Ou lhe faço engolir a língua!

Até mesmo Friedrich do lado de fora se sobressaltou com o grito do pai, quase deixando a lenha cair. Não queria ser rude ao ficar ouvindo conversa por trás de paredes, porém tinha dúvidas se poderia interromper a discussão entre os pais. Parecia ser sério e não ousaria entrar em seu meio.

Ouviu a irmã esforçar-se para engolir o choro, enquanto seus responsáveis continuavam a se lamentar pela falta de condições:

— Então o que faremos Jerry? Todos eles têm fome, mesmo que só os pequenos reclamem.

— Sabes o que temos de fazer, ou melhor, já deveríamos ter feito. – Jeremiah inqueriu de maneira mais soturna, lançando um silêncio sepulcral que dominou tudo ao redor por alguns instantes. O primogênito do lado de fora não entendeu a princípio o que aquilo queria dizer, mas pode sentir um arrepio a lhe percorrer a espinha somente pela sensação que tal frase deixou no ar. – Não podemos cuidar mais de todos, tentamos, mas já não é mais possível. Recuso-me a ser como meu irmão a espalhar os filhos por aí na casa de estranhos, mas como Friedrich já será ordenado uma hora ou outra eu creio que seja o melhor momento para ir embora.

Friedrich sentiu o suor frio escorrer pelo seu pescoço e o corpo estremecer pelo nervosismo. Aquele era um assunto que passava por sua cabeça praticamente todos os dias, porém ainda assim nunca se sentia pronto para enfrentá-lo. Ouvi-lo da boca dos pais tornava a realidade ainda mais palpável, como se sua sina o encarasse a um palmo de distância. Estaria realmente na sua hora? Queria ter a certeza que estava pronto para seguir os passos da Igreja, por vezes até pedia por algum sinal do Altíssimo.

— Ele ainda é muito jovem.  

— Éramos noivos na idade dele Marie, há garotos que se tornam homens ainda mais cedo que isso.

— Precisamos dele. – Marie afirmou em súplica como último recurso para manter o filho.

— Eu sei. Friedrich faz grande parte do trabalho, por vezes ajuda a carregar essa família. Se pudéssemos mandar outro eu não discutiria, será difícil nos acostumarmos sem ele. – Jeremiah disse num tom de voz um pouco mais calmo, mas firme da mesma forma. O garoto sentiu a lenha pesar ainda mais em seus braços ao ouvir aquilo, não sabendo se carregava madeira ou sua própria alma. – Mas a promessa foste tua Marie, então não irei discutir quanto a isso. Porém, digo que o momento dele ir embora é agora. É só olhar para Timóteo, tem a metade de um menino de sua idade, não consegue segurar uma enxada, ficou de cama durante todo o inverno passado! Sinto em dizer, mas se continuarmos assim perderemos outro.

Novamente o silêncio se fez presente, ainda mais pesado que os anteriores. Sobrando somente o som de luto e desesperança que se espalhava feito vermes naquela terra miserável e sem dignidade. Friedrich sentiu a garganta apertar-se, absorvendo o desespero dos familiares enquanto temia seu futuro. Sabia que se tornaria frade uma hora ou outra, mas ainda assim tinha medo de se separar da família para jamais tornar a vê-los. Contudo, agora com o medo de ser um fardo, via-se ainda mais pressionado em vestir o hábito.

— Será melhor para todos, e para ele também. – A avó se manifestou por fim, a voz rouca tentando trazer alguma espécie de tranquilidade para aquela situação delicada. – Peçam ao padre escrever uma carta, assim ele ao menos terá algo a apresentar aos frades.

O clima pareceu tornar-se um pouco mais ameno após isso, com Friedrich suspirando pesadamente ao controlar o aperto que sentia no pescoço. Cansado de segurar a lenha e não querendo mais ouvir pelas costas, bateu então com a ponta do sapato na porta.

Fedwich! – Sua irmãzinha Grace foi quem o recebeu na porta com um sorriso afetuoso no rosto apesar dos olhos vermelhos pelo choro. Ao fundo da casa de único cômodo os pais e a avó o encaravam com um olhar letárgico, mas profundo de uma forma que o deixou desconfortável, ainda mais por saber o que estavam pensando naquele momento.

Mais tarde suas irmãs voltaram cabisbaixas para casa, sabendo que ele não havia perguntado aos pais se poderiam sair para dançar. Não quis incomodar eles com tal frivolidade, mas também não quis dizer para as meninas sobre o que havia escutado.  Deixou que ficassem chateadas com ele, imaginando que talvez fosse o melhor a fazer, por mais doloroso que fosse ter os olhares magoados em sua direção.

Mesmo esfomeado como estava, deu parte do pão para Grace e Timóteo escondido dos pais, pois não permitiriam que se alimentasse ainda menos e depois ficasse sem forças para trabalhar. Observou com atenção a ansiedade voraz conforme mastigavam, os rostos magros e braços finos, as roupas tão largas que os fazia sumir em seu interior, e velhas por terem passado por cada um deles conforme cresciam. Sabia que não havia muito mais a que ser feito, era uma época difícil a todos os fâmulos e não queria ter de esperar o destino escolher se eles suportariam toda a mazela que todos eles enfrentavam.

Era seu destino, sempre foi desde que viera ao mundo. O aceitava, e por mais que temesse sua chegada, chegou à conclusão que deveria enfrentá-lo de uma vez. Não se tratava mais somente uma promessa por uma criança viva, mas para mantê-las.

— Mãe? – Indagou aos sussurros em meio à penumbra, aproveitando o momento em que Marie fora despejar os baldes para fora de casa. Era uma noite fria que ameaçava trazer os primeiros flocos de neve, mas seu corpo não tremia por causa disso.

— Sim querido? – Ela não usava o véu naquele momento, com o cabelo loiro escorrendo liso feito cascatas, duplicados no primogênito a sua frente.

— Eu creio que estou pronto. – Afirmou da forma mais confiante que conseguia, mesmo gaguejando um pouco. – Acredito ser o momento certo para eu seguir a vida religiosa e me tornar por completo um servo de Deus.

Mesmo no escuro ele pode notar o rosto de Marie tornando-se soturno, apesar de logo esboçar um singelo sorriso repleto de melancolia. Ela acariciou sua face, o olhando num misto de orgulho e emoção. Parecia que não fazia mais que algumas semanas quando havia o pego no colo pela primeira vez, onde sentira o alívio e alegria por ouvir o primeiro choro que sinalizava sua vida. Friedrich nunca havia lhe dado trabalho, sempre havia sido um menino dócil e obediente, mesmo agora em que já estava quase um palmo mais alto que ela. Era uma verdadeira lástima perde-lo, mas havia sido o preço que acreditava ter pagado por sua vida.

— Tu sempre foste um bom menino... – Marie repousou os baldes no chão, a mãe se aproximou envolvendo-o em um abraço comovente, deixando lágrimas emotivas caírem nos ombros do filho que mordia o lábio inferior para que não se comovesse tanto quanto a mulher, desejando parecer firme o bastante para ser capaz de mantê-los vivos.

Pois sua partida havia se tornado mais que uma promessa.

                                                                      ***

‘’Obedeça aos frades’’ foram às últimas palavras que ouviu de seus pais e da avó antes de partir, enquanto Ruth chorava copiosamente em seus braços compadecendo-se por sua partida e pelo presente que não pode terminar para entrega-lo. Timóteo lhe questionou se não ia mesmo ensiná-lo a pescar e Friedrich lamentou por não ter podido levá-lo ao rio por conta de sua saúde frágil. Anne preferiu permanecer distante, dando um adeus seco em sua direção, enquanto Grace não parecia compreender o que realmente se passava, não parando de perguntar quando ele iria voltar. Friedrich se indagou como o pequeno Marcus cresceria, sem ter a oportunidade de ao menos ver os primeiros passos do irmão e afilhado.

Seguiu viagem andando junto a comerciantes, onde transportavam a mercadoria em duas mulas enquanto percorriam como andarilhos. Haviam prometido ao seu pai que o guiariam até o mosteiro de São Jerônimo, morada de frades beneditinos desde o século IX, mas não que iriam tomar conta dele durante o percurso. Desacostumado com longas caminhadas, quase ficara para trás diversas vezes, além de mal terem lhe oferecido comida durante os mais de dois dias de caminhada. Assim que os muros escurecidos do mosteiro apareceram no horizonte, Friedrich foi deixado completamente por sua conta, segurando consigo nada mais que uma faca atada ao cinto e a carta do padre que segurava nas mãos como bem mais precioso.

A entrada para São Jerônimo não possuía o mesmo aspecto tenebroso e impenetrável da maior parte dos feudos com suas fortes muralhas. Havia um muro sim, mas baixo o bastante para que Friedrich soubesse que com algum apoio conseguiria alcançar suas ameias se tivesse habilidade. Perambulou sua entrada por um curto período enquanto se questionava se apareceria alguém para poder recebê-lo.

— Não há mais comida de sobra, volte noutro dia caro filho de Deus! – Nas ameias surgiu um monge de guarda – posto clerical que não se via com frequência, contudo não era tão incomum, ainda mais em um mosteiro isolado demais para requisitar cavaleiros. A diferença mais óbvia em tal espécie de escolta era a ausência de espada ou qualquer tipo de lâmina, geralmente substituído por clavas de enorme peso para abater o inimigo, visto que um membro do clero não poderia derramar sangue durante a batalha.

— Oh meu senhor, não vim até tal morada para isso. Venho com a intenção de adentrar vossa santíssima ordem e tornar-me um irmão devoto de corpo e alma. – Friedrich explicou-se, sentindo uma pontada de orgulho ao conseguir rearranjar as palavras sem vacilar no discurso. O guarda semicerrou os olhos em sua direção, desconfiado, fazendo com que o jovem segurasse as próprias mãos encobertas com luvas para conter o nervosismo que o abatia.

— E quem serias tu?

— Friedrich filho de Jeremiah, filho de Aldred dos domínios de Lorde Harold Farley II. – Respondeu recebendo como resposta o franzir das sobrancelhas escuras do monge ao ouvir sua alcunha de muitos nomes, mas sem algum para que chamasse de seu.

— De onde surgiu tal ímpeto pela santidade meu filho?

— Possuo em minhas mãos uma carta do padre Howard Camden relatando em detalhes meu caso e recomendando-me como um bom candidato ao mosteiro. – O jovem respondeu estendendo a carta em direção ao guarda, onde apesar de não alcançar podia ver muito bem o selo vermelho da cera que lacrava o papel. O frei permaneceu em silêncio por mais um momento, refletindo a questão, deixando o garoto nervoso e sentindo as mãos que estendia a mensagem estremecerem.

— Espere um instante rapaz, preciso da permissão de Vossa Paternidade para tua entrada. – Disse-lhe o guarda antes de sumir por dentro dos muros, deixando Friedrich sozinho no frio sem maiores escolhas. O garoto não soube discernir se era somente a impressão que a ansiedade lhe causava ao estender o tempo, ou se a demora havia sido real, dado que chegou a ficar em dúvida se o frade poderia ter ido embora e ignorado por completo sua presença. Felizmente, depois de um período de espera o bastante para lhe doer os pés já cansados e lhe queimar a face pelo frio, ouviu o ranger das portas se abrindo e a visão de dezenas de homens a lhe encararem como um espécime desconhecido e estranho.

Mal estendeu a carta novamente que um dos frades lhe tomou rapidamente o papel, analisando-o cuidadosamente sem abrir o selo, passando então de irmão a irmão com todos observando desconfiados para o manuscrito. Apesar das claras diferenças de fisionomias e idades entre eles, Friedrich tinha a impressão de estar diante de diversas cópias de uma mesma pessoa. Todos possuíam a cabeça parcialmente raspada e vestiam as longas túnicas negras usando cordas como cintos. Alguns possuíam crucifixos de madeira no pescoço, terços atados ao cinto, outros se escondiam por dentro do capuz, mas todos pareciam se comunicar de uma forma única em que o silêncio predominava, com baixos cochichos ou simplesmente gestos e olhares que pareciam responder muito mais que palavras.

Os frades começaram a andar em direção a um dos edifícios de pedras escuras com janelas altas e estreitas, sendo Friedrich levemente empurrado para que os seguisse. Mesmo o edifício possuindo a luz das janelas adentrando seu interior, a sensação que Friedrich possuía é de estarem debaixo da terra pela escuridão do lugar, passando por tantos corredores que se assemelhava a um labirinto. Parte dos monges que encontrara do lado de fora se dispersara e começando a confabularem entre si, sobrando em sua escolta o que pareciam ser os mais velhos do mosteiro a lhe guiarem e também o vigiarem com olhares silenciosos mas repletos de desconfiança. Mantinha os ombros encolhidos e olhava para o chão a maior parte do tempo, até lhe levarem dentro de uma única sala onde todos adentraram em conjunto.

Parecia alguma espécie de depósito, repleto de pergaminhos e cartazes desenhados em couro entulhados um em cima do outro, alguns artefatos religiosos em metais preciosos que trouxeram surpresa aos olhos do pobre garoto. Contudo havia uma larga mesa de madeira entalhada com a imagem de Cristo e os apóstolos, repousando uma grande bíblia e mais uma porção de documentos, com um frasco de tinta e pena repousados num canto. Sentado em uma formosa cadeira de veludo carmim, o abade já parecia os esperar dado a serenidade na entrega da carta em suas mãos. Antes de abrir o lacre vermelho, o religioso segurou um óculos diante dos olhos já cansados pela idade, causando grande curiosidade no jovem que nunca havia se deparado com tamanha tecnologia.

— Sinto em já exprimir meus pensamentos Vossa Paternidade, porém creio que ele não possa permanecer conosco. – Um dos monges declarou, fazendo Friedrich encolher-se ainda mais no meio de tantos olhos estranhos. Naquele momento começou a sentir-se minúsculo, como uma formiga a andar pela comida e receber o olhar enojado das pessoas.

— Por que diz isso irmão Theodor? – O abade questionou sem tirar os olhos da carta, ainda rolando os olhos pelas letras.

— És um completo estranho, no qual mesmo com uma carta vinda de um clérigo não é o bastante para confiarmos em sua honestidade.

— Sua devoção me parece sincera, mas sua aparição inesperada é um ponto a se levar em conta, já possuímos noviços entre nós. – Outro frade retrucou em resposta enquanto o abade passava a carta para que os demais lessem o que o padre Howard havia dito. Isso deixava Friedrich ainda mais apreensivo, visto que ele próprio não sabia o que havia escrito sobre ele na carta, nem poderia saber se a tivesse em mãos.

— Outro noviço não seria um problema, dependendo o caso. Entretanto esse rapaz não me parece adequado a um cargo tão importante e santo no meio do clero. – Theodor retorquiu cruzando os braços e lançando um olhar na direção de Friedrich que o fazia se sentir ainda mais deslocado naquele meio. – Diga-me jovem, sabes ler?

— Não meu senhor.

— Tu não estás mais no mundo afora rapaz, aqui somos todos irmãos de um mesmo Pai. Sou o irmão Theodor, não seu senhor, e estes são os irmãos Alf, Oliver e nosso abade Esmond. – O frei o repreendeu fazendo com que murmurasse apavorado um ‘’desculpe-me’’ que sequer teve certeza se ouviram. – Conheces os números?

— Eu sei contar, irmão Theodor. – Friedrich respondeu franzindo levemente as sobrancelhas, não entendendo o que o frade realmente queria dizer com aquilo, dado que desconhecia o conceito acadêmico de aritmética.

— Latim?

— Sei o que o padre reza durante as missas. – Respondeu esperando que isso servisse de algo a seu favor, mas pelo olhar de todos ao redor não parecera nem um pouco impressionante, fazendo com que desviasse o olhar para seus próprios pés mais uma vez.

— Alguma outra língua que não a própria?

— Não, irmão Theodor. – Respondeu já sentindo-se derrotado por uma batalha que nem percebera estar lutando.

— Vejam que o pobre garoto não teve acesso algum a qualquer uma das artes liberales. Que espécie de disciplina poderemos esperar de sua parte? É até mesmo injusto de certa forma, és da porção mais ignorante dentre os leigos. – O monge concluiu fazendo o restante parecer refletir sobre o caso, enquanto Friedrich temia o que seria dele caso não o aceitassem. Como poderia retornar para casa numa situação tão difícil? E ainda mais quebrar uma promessa feita á Santa Virgem? Por mais humilhado que se sentisse dentro daquele meio, não via alternativas que não fosse acatar a vida que lhe havia sido designada.

— Parece ser um caso especialmente complicado irmão Theodor, não podemos simplesmente manda-lo de volta. Leia o documento e veja por si mesmo. – Irmão Alf indicou o papel.

— Trata-se de uma promessa á Santíssima mãe de Deus que este mancebo dedique sua vida inteiramente ao Altíssimo. Seria um verdadeiro pecado e afronta negar tamanho cometimento para com a Santa Igreja. – O abade declarou unindo as mãos e estudando Friedrich por trás das lentes. – És mesmo o que desejas Friedrich de Farley? Entregar-se-ia de corpo e alma para louvar o Pai Eterno e a se dedicar ao trabalho santo de Vossa igreja?

— És o que mais estimo, não me vejo de outra forma que não louvando ao nosso Senhor Jesus Cristo por toda a eternidade de minha alma! – Friedrich disse com convicção, fazendo os monges permanecerem em silêncio e refletirem entre si. Um filete de esperança se formou em seu coração ingênuo, esperando que tivessem piedade por sua situação e fizessem o papel de misericórdia que a Igreja dizia-se protagonizar.

— Então que se torne um de nossos noviços, não há sequer uma dúzia de rapazes conosco nesta temporada, e sempre há espaço para quem desejar de todo coração se dedicar a nossa santa ordem. – Declarou Oliver pela primeira vez de forma que parecesse óbvio o que deveria ser feito. Contudo, antes que Friedrich pudesse esboçar um sorriso de alívio, irmão Theodor balançou a cabeça em negação dizendo:

— E permitir que um iletrado sem um nome a acompanha-lo, acabe juntando-se aos outros noviços? Não sabemos quem é e muito menos sobre sua família, desconhecemos seus vícios e grosserias e dessa forma irá acabar sendo uma terrível influência aos rapazes!

Friedrich queria ter a audácia de se defender de acusações tão pérfidas, porém conteve-se para sua própria integridade. Era inevitável tal silêncio frente aquilo, sempre condicionado a obedecer ao clero acima de tudo. E mesmo que tivesse a voz para tal, provavelmente não o faria sem acabar dando um vexame de si mesmo, dado o nó que se formava em sua garganta que tentava conter mordendo o lábio inferior.

— Sei que somos velhos irmão, contudo sabes muito bem que eu mesmo era um iletrado sem nome. Por mais sejam a maioria, a Ordem não especifica frades de sangue nobre ou leigos de famílias detentoras de muitas libras. E por minha pele enrugada nota-se que já se faz muito tempo desde que um mero fâmulo plebeu realizou os votos. Há uma preferência deveras óbvia pelos homens escolhidos a se tornarem monges por aqui. – Oliver retrucou fazendo irmão Theodor fechar o cenho, não sendo possível dizer se por embaraço ou descontentamento.

— Concordo com suas afirmações caro Oliver, porém também compreendo os temores de Theodor. – O abade declarou, fazendo com que todos olhassem em sua direção. – Como faríamos para que este pobre mancebo se integrasse inteiramente a nossa rotina com leis tão regradas? Os jovens de hoje em dia não são os mesmos de nossa época, sabemos que o mundo caminha cada vez mais nas mentiras da devassidão.

— A promessa é para que ele se torne um religioso, mas não especificou da ordem. Creio que se daria muito melhor entre nossos irmãos franciscanos. – Alf sugeriu com um curto sorriso, crendo ter encontrado a solução.

— E quem se responsabilizaria a encaminhá-lo para algum mosteiro de franciscanos? O mais próximo encontra-se na França! – Theodor exclamou.

Os frades discutiam a questão sobre Friedrich como se ele mesmo não estivesse entre eles, fazendo-o sentir-se quase invisível, alguém insignificante que naquele momento não era nada mais que um estorvo entre eles. Era um nada, a mais torpe das criaturas, a classe mais baixa da qual lhe viravam o rosto diante de sua insignificante presença. Parecia querer desaparecer dentro da túnica que pertencera ao pai, ao encolher-se de forma a deixar ainda mais evidente a peça que não lhe servia direito. Não era isso que havia esperado, só queria que acabasse de uma vez e que pudesse fazer algo a sua família, seguindo o caminho que almejara desde tenra idade. Um sonho que parecia se fazer em pedaços dentro de tal discussão. Mesmo a classe clerical que se dedicava a aceitar todos os adeptos a segui-la, o rejeitava por suas vestes pobres e braços sujos de terra, fazendo-o se desiludir e sentir-se traído pela Igreja que sempre lhe prometera abrigo.

— Este rapaz pode desconhecer trivium et quadrivium, contudo afirmo que é capaz de saber mais do que todos nós sobre as artes mechanicae que o povo conhece de forma a fazer esta sociedade funcionar á todos nós. Podem ser considerados serviços vulgares dentre vós, mas como homens que seguem o preceito de São Bento, deveríamos nos focar em todo trabalho dessa terra criada pelo Altíssimo. És vergonhoso termos tantos fâmulos a ajudarem a cuidar dessa morada sagrada, donde nós que juramos proteger e zelar mal tocamos na verdadeira labora. – Oliver declarou fazendo os dois irmãos olharem constrangidos para os próprios pés, enquanto o abade o fitava surpreso e com interesse em suas palavras.  – Diga-me Friedrich, acredita ser capaz de passar por qualquer provação que o trabalho lhe compele?

— Com toda a certeza. – Respondeu levantando os olhos mais uma vez.

— Mesmo quando os braços e pernas não lhe responderem e o cansaço lhe dominar todo o corpo?

— Mas é o que sempre fiz irmão Oliver. – Respondeu de forma óbvia, recendo em resposta um sorriso presunçoso do frade que lançou um olhar satisfeito para o restante.

— Será mais fácil ensiná-lo a segurar uma pena e a recitar os salmos do que a viver por sua própria conta.  – Oliver disse por fim, o silêncio irrompendo a sala com tais palavras firmes.

— Se provar ser merecedor da Ordem, não vejo o porquê de não aceitá-lo então. Claro, se o restante dos irmãos concordarem. – Alf disse olhando com piedade para Friedrich que sentiu-se esperançoso finalmente. O abade permaneceu em silêncio por longos segundos, matutando a questão, até que por enfim inqueriu:

Probate spiritus si ex Deo sunt

‘’Provai o espírito se és de Deus’’ Friedrich descobriria o significado mais tarde, quando já iniciava sua árdua provação.

Enfim o mandaram se calar, somente permitindo ouvir e obedecer não só ao abade mas o que todos os outros monges diziam, visto que precisaria provar ser digno para entrar no noviciado. Por semanas fizera os trabalhos mais pesados, acompanhado dos outros fâmulos do mosteiro. Nos primeiros dias não deixaram que permanecesse a noite no mosteiro, tendo ao menos à sorte de se refugiar na casa dos servos que lhe ofereciam abrigo a noite, até o dia que lhe ofereceram a cela de hóspedes. Sofrera, injuriara-se e por noites chorou por saudades de casa e pelo tratamento ríspido que recebia dos demais, mas no dia seguinte, sempre continuava a trabalhar duro, pois almejava provar ser capaz de aturar todo o peso que lhe lançassem.

Quando o colocaram no dormitório dos noviços para se acostumar à rotina, pensou que as coisas se atenuariam, mas apenas tornaram-se mais difíceis. O mestre dos noviços no período – que viria a desistir da ordem alguns meses depois – desdenhava dos mais simples, acabando por sempre o importunar para lembrar que ainda era apenas um leigo, duvidando que Friedrich suportasse o tempo de provação. Os demais acabavam entrando no meio de tal jocosidade, e o pobre garoto ouvia as injúrias á si dia após dia em silêncio, pois não tinha o direito de reclamar. O único que se compadecia de sua situação era Bernard, na época um rapaz tímido e que pouco falava, mas que escondido dos demais apresentara as letras para Friedrich pela primeira vez e o instruía sobre a forma de agir. Persistiu com tal situação por cerca de dois meses, até o indagaram pela primeira vez:

Ecce lex sub qua militare vis

si potes observare, ingredere

si vero non potes, liber discede

E Friedrich aceitou as palavras sem hesitar de maneira alguma, pois aceitava o fardo que lhe fora incumbido, pois desejava entregar sua vida inteiramente a Deus e em São Bento consagrar-se. Ali tornara-se noviço de fato, e todas as vezes que lhe ditaram as mesmas regras, ele aceitou de todo coração, começando ali a ganhar o respeito dos demais noviços e monges que viam em seu olhar a sinceridade de sua devoção. Fazia tudo que lhe ensinavam, acatava os castigos por não escrever ou pronunciar o latim corretamente, ouvia os sermões com atenção e determinava-se a se tornar cada vez melhor na vida clerical.

Ao final dos dezesseis ou início dos dezessete anos – nunca possuíra a certeza de sua própria idade – realizou por fim os juramentos e votos finais para se tornar um frade beneditino. E vitorioso, pode com as próprias mãos escrever no oratório na frente de todos os irmãos o versículo que marcaria sua verdadeira entrada para a congregação:

Suscipe me, Domine,

secundum eloquium tuum et vivam,

et ne confundas me ab expectatione mea.

E quando todos os irmãos responderam em coro ‘’Gloria Patri. ’’, Friedrich não pode conter as lágrimas de emoção por tamanha felicidade. Finalmente havia alcançado sua razão de vida, seu destino desde o princípio, da qual adorava de todo coração seguir tão sagrado ofício. Que felicidade maior haveria em vida que não o amor de Cristo? Entregando por inteiro sua vida ao Altíssimo via-se num estado de paz e altivez que o fazia ter ainda mais certeza quanto sua escolha de vida. Havia lutado muito para chegar onde estava, e continuaria a batalhar todos os dias pelo seu digníssimo ofício.

Naquele momento, Friedrich acreditava não existir outro lugar no mundo para ele fora daqueles muros.


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Notas finais do capítulo

Novamente agradeço a todos vocês que estão lendo, essa história não seria a mesma sem vocês ♥ Além do mais consegui dar uma boa adiantada nos capítulos, então talvez eu nem precise fazer a tal pausa que mencionei no capítulo anterior, mas de qualquer maneira no máximo até março a história irá voltar com tudo!
Como sempre, comentem o que acharam e nos vemos no próximo capítulo! ^-^



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