O Sangue do Mestiço escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 30
Prata


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura :)



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Os raios de luz estavam cada vez mais discretos. Densas nuvens tomavam espaço e uma tenebrosa escuridão ia dominando Roanoke, ainda que a manhã estivesse longe de acabar. Fora da ilha, um homem de olhar sisudo e indiscreto bigode observava a silhueta de seu destino enquanto ouvia o quebrar das ondas do mar.

— Só mais alguns minutos — disse revelando assim a sua grave voz. Estava encostado no guarda-corpo do barco, sem temer todo aquele balançar da estrutura de madeira. — Jake?

Olhou para trás e não viu o seu companheiro de viagem. Tudo que seus olhos enxergavam era o vazio dos assentos da embarcação. Os únicos presentes ali, afinal, eram ele próprio, seu colega de trabalho e o condutor. Afastou-se então do guarda-corpo e foi em busca do tal Jake.

— Meu Deus do céu — exclamou quando viu o seu amigo.

Jake era um homem esguio e pálido. Aparentava ter quase dois metros, mas se fazia encolhido no outro canto do barco enquanto esticava seu tronco para o lado do mar a fim de vomitar.

— Se está tão enjoado com o mar, por que continua o encarando? — O homem sisudo perguntou sem muita educação.

— Negan... — Jake parou por um instante quando liberou mais uma rajada nojenta de vômito. — Você já olhou o banheiro? Eu não sei o que me enjoa mais!

Negan não podia julgar o amigo: estavam vindo de Nova York e aquela viagem marítima não era nada agradável. A umidade era excessiva e a salinidade gerava uma sensação estranha na boca e nos olhos. Para piorar, a embarcação não aparentava ser a das melhores. Na verdade, hora ou outra a dupla se assustava com alguns estalos que madeira dava. Ainda assim, estavam perto de seu destino: a famosa e lendária ilha de Roanoke.

— Estamos quase lá, está certo? — Negan usou um tom mais amigável dessa vez. — Vamos, levante-se. Ficar aí não vai ajudar em nada.

O homem bigodudo ajudou o esguio a erguer-se. Os dois foram então até os assentos e sentaram-se enquanto o barco seguia o seu trajeto lentamente.

— Eu sinto agonia só em pensar na viagem de volta — Jake falou enquanto roía as poucas unhas que lhe sobravam. — Eles bem que poderiam ter uma estrutura semelhante a do Titanic.

— Olha, o Titanic afundou — Negan se permitiu brincar com a tragédia. — Nós ainda estamos aqui.

Aquele breve momento fez com que Jake ensaiasse um sorriso, mas toda aquela história ainda o preocupava demais. Aquela não era uma viagem comum e ela nem deveria estar acontecendo. Era tudo um grande desafio, na realidade.

— É uma bela vista, não? — O homem de voz grave resolveu quebrar o breve silêncio que havia se instalado. — Sinto um ar de mistério nisso tudo.

— Ar de mistério? Falando assim até parece que você não trabalhou nas traduções daquele texto! — A pele do homem esguio ficava mais pálida a cada nova frase que saía de sua boca. — Ou melhor, textos.

Negan soltou um pesado suspiro e puxou uma pequena mala abaixo do assento. Ela era feita de couro e finamente decorada com fios de ouro: um produto de difícil obtenção mesmo na grande cidade que era Nova York. Abrindo-a, retirou seu par de óculos e, logo em seguida, uma pequena agenda de capa esverdeada com os dizeres “Jornal Novo Mundo de NY”.

— Eu detesto essas agendas que eles nos dão — Jake disse com algum desprezo.

— Ao menos servem de algo — seu colega de trabalho respondeu. Folheando aquela agenda do trabalho, começou a relembrar de tudo que havia descoberto com aquelas traduções. Nada parecia real. — Esse David nos mete em cada enrascada, não? Você acha que traduzimos tudo da maneira certa? Esse John Dee era um louco.

— Primeiramente, creio que quem nos meteu nesta enrascada foi o Patwin. Que dizer, por que diabos o homem quis vir para este fim de mundo? — Deu uma pausa ao notar que havia falado alto demais, de maneira que poderia vir a ofender o condutor da embarcação. Por sorte, o homem parecia ser meio surdo. — Em segundo lugar, John Dee podia ser um louco, mas também era um gênio. O simples fato de esses textos estarem nesta ilha me assustam demais. Você não acha tudo isso estranho?

— O que não é estranho? E veja bem, eu conversei com o Patwin antes da sua viagem. Ele me disse que queria fazer uma pesquisa, mas também confessou que tinha algo envolvendo a família dele. Eu soube que o pai faleceu há pouco tempo. Será que não foi isso?

— Bem, ele sempre foi muito calado quanto a esse tipo de coisa.

O silêncio voltou a tomar conta do barco. Apenas as ondas e o vento eram audíveis. Até mesmo o estalar da madeira parecia ter cessado em meio àquela áurea de mistério. No fim das contas, não importava o motivo do mestiço ter ido para Roanoke e ainda por cima ter levado o filho do chefe do jornal “Novo Mundo” de Nova York com ele. O fato é que todos aqueles dizeres nos textos eram perturbadores, coisas simplesmente dignas de livros e filmes de terror. E, ainda assim, a dupla de jornalistas tentava a todo momento ignorar os pensamentos perturbadores que aquelas traduções traziam. Mas era impossível.

— Isso tudo cairia bem na seção de histórias e lendas do jornal — Jake voltou a falar enquanto colocava as mãos na mala do amigo para examinar uma porção de papéis com a transcrição que David fizera.

— Você sabe que isso não importa de verdade, não é? — O bigode de Negan parecia criar vida quando ele estava nervoso, como era o caso. — Estamos aqui apenas para trazer David e Patwin de volta. Principalmente o David, claro. Essas lendas são só isto: lendas. Que fiquem aqui em Roanoke enquanto o garoto volta para o pai. Ele já passou tempo demais por aqui.

Tendo a meta definida, a dupla finalmente encontrou o precário píer da ilha. A visão não diferia muito da que Patwin tivera semanas atrás: a madeira envelhecida, as pessoas paupérrimas e o clima sinistro que emanava de toda aquela massa de terra em meio ao azul marinho. Concomitantemente, o céu parecia se fechar para o resto do mundo, transformando Roanoke num inferno particular.

— Terra firme! — Negan anunciou com alegria enquanto dava o primeiro passo rumo ao píer. Jake o acompanhou enquanto carregava a mala, mas ao se levantar pôde sentir seu estômago se revirar. — Ei, cuidado!

Por um instante, parecia que o homem esguio iria cair na água que dançava abaixo de seus pés. Por sorte, seu bom colega esticou o braço e o agarrou com força, impedindo não só que ele se molhasse, mas como todos os documentos e traduções. Finalmente em terra firme, Jake pôde vomitar uma última vez antes de finalmente colocar-se definitivamente de pé.

— Graças a Deus a ilha não balança — Negan brincou mais uma vez.

Pela primeira vez puderam apreciar a beleza do lugar. O intenso verde da floresta se misturava com o céu escuro, ao mesmo tempo em que o tom amadeirado e quente da vila se destacava em meio ao horizonte natural. Além disso, a elevação presente na ilha também era digna de atenção em decorrência de sua beleza. Fora isso, o local era praticamente plano.

— Devo admitir que é de uma beleza singular — Jake, finalmente recomposto, disse. — Mas então, quais os próximos passos?

— Acredito que o lugar óbvio para se conseguir informações seria no bar, não? — O bigodudo falou enquanto puxava algo de seu bolso. — No entanto, acho melhor manter a minha tradição de cada viagem.

Puxou então um pequeno crucifixo que sempre levava consigo e o admirou por longos segundos. O seu olhar externava gratidão, apesar do medo que sentia após ter lido todas aquelas traduções e lendas.

— Igreja? Sério? — O homem mais alto não parecia muito disposto para aquilo. — Você é religioso demais, Negan.

— É parte do meu ser — Negan deu um sorriso que desfez a sua cara tipicamente fechada e carrancuda. — Vamos, não levará nem cinco minutos.

Sabendo que não adiantaria argumentar, Jake apenas aceitou a ideia do colega e o seguiu. A vila estava logo a frente e não havia forma de errar o caminho. Quando chegaram lá, impressionaram-se com o tamanho minúsculo do lugar. As casinhas desajeitadas e as pessoas pobres chamavam a atenção. Mas mais do que isso: algo de sinistro pairava no ar. As pessoas não pareciam impressionadas com aquela dupla de forasteiros. Elas, na verdade, olhavam para a maior e mais bonita construção do local: uma mansão.

— Provavelmente é a do tal Edward Muller — Negan lembrava-se bem de quando Patwin falara do homem e também do padre com quem mantivera contato antes de viajar para Roanoke. — O “prefeito” daqui, creio eu.

— A porta está quebrada? — Jake forçou a visão e vislumbrou a ausência de porta na entrada principal. Aquilo lhe trouxe mais uma carga de maus pressentimentos, mas ele deveria seguir com seu objetivo. — Vamos logo para sua igreja, tem algo de estranho acontecendo.

A dupla seguiu o caminho e logo se deparou com a singela, mas bonita igreja. As portas estavam fechadas, mas mesmo assim o homem de fé tentou a sorte pensando na possiblidade do lugar estar acessível ao público. E ele estava certo.

Ao abrir das portas, a surpresa foi mútua: lá estava David Fincher. E o garoto não estava sozinho: um homem negro com densa barba e trajando uma batina também se fazia presente.

— Minha nossa! — O pequeno jornalista não escondeu seu espanto. Estava sentado em um dos bancos da casa de Deus quando saltou para reencontrar seus colegas de trabalho. — Negan? Jake? Não acredito! O que fazem aqui? Conseguiram traduzir os textos? Meu Deus do céu, vocês são doidos!

Entre risos e abraços, aquele foi um momento que trouxe paz para cada um dos presentes. Padre Marcus alegrou-se ao ver David um pouco mais tranquilo, ainda mais levando em conta todos os acontecimentos recentes.

— Não sabia que você tinha virado tão religioso quanto o Negan — Jake brincou. — Olá, padre.

Marcus aproximou-se e cumprimentou os dois homens. O bigodudo logo se curvou diante dele e pediu a benção divina. Um pouco sem jeito, o padre fez o que foi pedido. Finalmente de pé, o jornalista questionou David:

— Mas afinal, o que faz aqui?

— Olha, se eu te contasse você não acreditaria — o garoto estava em êxtase, mas temia que todas aquelas histórias vividas por ele e Patwin pudessem assustar seus amigos. — Esse lugar é surreal. É estranho, sinistro e todos outros adjetivos que vocês puderem imaginar. Mas então, trouxeram o que pedi?

— Sim — Jake respondeu apenas para ver a empolgação nos olhos do jovem. No entanto, não moveu um dedo sequer para pegar os documentos. Ao invés disso, manteve-se exatamente onde estava e prosseguiu com suas palavras. — Mas não estamos verdadeiramente aqui para isso. Você deve saber que já faz um bom tempo desde que você e Patwin saíram para esse trabalho. Seu pai ficou preocupado e acredita que já está na hora de você voltar para Nova York. Estamos aqui para buscá-lo. Aliás, cadê o Pat?

Os olhos do pequeno jornalista logo se converteram em fúria. Não, ele não podia aceitar aquilo. Já não bastava o mestiço querer mandar nele e fazê-lo desistir de toda a investigação sobre o deus protetor e todos os outros mistérios da ilha? Não, ele não poderia voltar para Nova York, não quando estava tão perto de descobrir a verdade. Ainda assim, manteve o controle e, após respirar fundo, argumentou:

— Patwin está investigando uma coisa séria — sua voz era serena, mas seu espírito fervia intensamente. — Algo que tem a ver com as suas traduções, garotos. E querem saber? Não posso voltar para casa. Não agora.

Negan e Jake se entreolharam com grande estranheza. Aquela não era resposta esperada.

— Como? — O homem que carregava um crucifixo questionou. — Acho que não entendi bem.

— Como eu disse, há algo grande em jogo e deixar tudo para trás agora seria um grande desperdício — David podia ver que os seus dois colegas não pareciam se interessar muito em tais palavras de grandeza. — Vamos, vocês são jornalistas! São homens inteligentes e traduziram os textos, não foi? Vai dizer que não estão curiosos?

Sim, estavam. Mas nenhum deles ousaria dizer aquilo, pois tinham um trabalho muito claro: trazer David e Patwin de volta. Não havia exceção para aquilo. O trabalho a respeito de Roanoke deveria ser interrompido, independente do estágio em que as informações sobre o local estivessem. Por sorte, a dupla não precisou mentir para o garoto. A porta da igreja se abriu novamente e mais uma surpresa apareceu diante de seus olhos: Patwin Winslow. O rosto do mestiço estava feio em decorrência dos machucados que carregava. Levaria um bom tempo para ele se livrar das marcas que Muralha deixara.

— Patwin! Minha nossa! — A dupla de Nova York exclamou em uníssono.

A surpresa também atingiu Pat em cheio. No entanto, sua mente já estava lotada de informações: ele havia acabado de chegar da visita que fizera a mansão de Edward Muller. A destruição do lugar e os restos mortais do demônio de Roanoke só podiam indicar uma coisa: o deus protetor era real. E, perto disso, não havia nada mais que realmente impressionasse o mestiço.

— Meus amigos — ele disse enquanto ensaiava um sorriso que insistia em não sair. Ainda que aquelas fossem boas pessoas para se encontrar, havia um revés: eles agora estavam em perigo, tendo em vista que o deus protetor estava solto por aí. — O que fazem aqui?

As explicações foram rápidas. O quarteto logo se sentou enquanto o padre acompanhava toda a conversa sem se intrometer. Pat logo ficou sabendo que eles haviam recebido os textos de John Dee e fizeram um incrível trabalho de tradução. Mas não só isso: com o longo tempo que o mestiço e o pequeno jornalista passaram na ilha, o pai do garoto resolveu que havia chegado a hora de seu filho voltar para casa. E aí a presença daquela surpreendente dupla se fez oportuna.

— Do jeito que eu queria — Pat disse com algum alívio. — David irá com vocês, mas os textos ficam. Tenho coisas a resolver.

— O quê?! — David saltou do assento mais uma vez possesso de raiva. — Já falamos sobre isso, Patwin!

— Esse lugar é perigoso — o mestiço ignorou seu amigo e resolveu encarar os dois novatos na ilha. — Havia um louco no poder possesso de ódio e desejo de vingança. Na verdade, ele está morto agora.

Ouvindo aquilo, o padre resolveu se manifestar.

— Está? — A sua voz transitava entre a surpresa e o alívio. Ele sabia que não era certo comemorar a morte de alguém, mas aquilo poderia marcar novos tempos para Roanoke. Tempos de paz.

Juntamente do homem de Deus, David apagou um pouco sua raiva para saciar sua curiosidade. Seu espírito jornalístico simplesmente não dormia.

— Fui até sua mansão, como disse que faria — Pat prosseguiu. — O lugar estava uma verdadeira bagunça. Vi que parte do piso estava danificada, como se algo ou alguém fosse pesado ou forte o suficiente para causar danos ali. Como se fossem pegadas. Não só isso: vi com meus próprios olhos restos humanos. Vísceras, tripas, não sei como dizer ao certo. Mas seja o que for, algo acabou de vez com Edward Muller.

A serenidade na voz do mestiço não condizia com seu estado de espírito. Todo aquele inferno parecia não ter fim. Desde que chegara na ilha, fora amaldiçoado diversas vezes. Será que encontraria paz em algum momento? Isso até ele mesmo duvidava. No entanto, não era o único a cultivar o medo e a insegurança. David olhava para o vazio enquanto refletia sobre o testemunho de seu amigo. O padre fazia da mesma forma. Se antes tinham textos e histórias, agora tinham alguém que vira as consequências de um encontro com o deus protetor. O maior medo deles era estar certo e, infelizmente, esse era o caso.

Enquanto isso, Jake abriu a mala e passou a examinar os documentos que traduzira. Uma enchente de medo invadiu o seu espírito e ele pôde sentir suas pernas tremerem. Negan, por outro lado, simplesmente olhou para o Cristo na cruz e se benzeu. Para ele, independente do que acontecesse, não poderia desanimar. O horror era real, mas a fé era maior.

— O que é isso? — David foi tomado mais uma vez pela curiosidade ao ver aquela pilha de papéis. Tentou ignorar o temor, mas toda aquela carga de informações o fazia se sentir ainda mais acuado naquele mundo perigoso. — Vocês sabem do que estamos falando, não é?

A dupla de forasteiros se entreolhou e logo em seguida confirmou.

— As traduções falam de um ser... — Negan não sabia como descrever. — Parecia folclore, entende? Pensei que fosse uma lenda ou qualquer outra coisa. Mas com isso que Patwin disse agora...

— Espera, o que estão esperando para nos mostrarem as traduções? — Marcus ergueu-se do medo e tomou a atitude que ele sabia ser a necessária. Diante do caos, apenas um pensamento ordenado poderia trazer esperança.

Jake retirou os papéis restantes e disse:

— Conseguimos traduzir quase tudo. Foi bem difícil, devo admitir — tentava parecer calmo, mas sua voz estava trêmula e seus olhos iam de um lado para o outro, como se temesse encontrar um monstro a qualquer momento. — Tivemos que pesquisar em outros livros e entender mais desse tal de John Dee. Mas no fim, creio que tivemos um bom resultado.

Diante daquele momento, até Selvagem apareceu como se pudesse entender toda aquela situação. Estando o grupo todo reunido, o homem esguio começou a resumir toda aquela gama de descobertas.

— John Dee disse ter encontrado indícios da origem do deus protetor. Supostamente há uma espécie de mineral aqui na ilha com propriedades únicas. Vocês já devem saber, mas não custa lembrar: o homem era um alquimista e um verdadeiro gênio de seu tempo. Dee escreveu que esse mineral não é encontrado em nenhuma outra parte do mundo conhecido. Basicamente, o que os nativos faziam era “cozinhar” alguém estando exposto a esse tipo de rocha. Ela se esfarelava com facilidade e aderia ao corpo da oferenda. Ao que tudo indica, todo esse processo gerava alterações químicas no corpo humano e, após muita dor, pronto: tinha-se um ser transformado, um “deus”.

Ao ouvir toda aquela história de novo, Negan fez o sinal da cruz enquanto Patwin apertava firmemente suas mãos.

— Ter uma explicação minimamente científica não retira o absurdo ou divino da coisa toda — o mestiço foi sincero. — Isso não nos ajuda em nada em toda essa luta.

— Não acaba por aqui — Jake alertou. — John conseguiu uma fração dessa rocha. Ele não detalha como, ou simplesmente não conseguimos traduzir essa parte, mas ele provavelmente deve ter tido aliados de todos os lados. O homem não era um espião à toa, afinal. Aqui diz que ele realizou experimentos com o tal mineral e conseguiu resultados interessantes. A rocha parece ser resistente a muitas coisas, mas reage de maneira diferente quando exposta a prata. Ela é corroída, enfraquecida.

— O ponto fraco do deus protetor — David concluiu e finalmente esboçou um sorriso diante de todas aquelas descobertas.

— Ainda há textos remanescentes que queremos traduzir, mas creio que Jake fez um bom resumo de todo conteúdo que obtivemos até então — Negan explicou. — Mas antes que nos esqueçamos, tem mais uma coisa. O tal do deus protetor parece gostar de trabalhar por apenas um turno. Isto é, ele passa metade do dia escondido, acuado ou simplesmente enfraquecido. Ao menos John Dee não encontrou registros dele pela manhã. A noite, por outro lado, era cheia de sangue.

— Só uma coisa que me irrita — o pequeno jornalista disse de maneira peculiar. — Por que criptografar tudo? Por que esconder todas essas histórias? Quer dizer, nós poderíamos estar mortos se não soubéssemos disso. Por que toda essa dificuldade?

Retirando alguns papéis das mãos de Jake, o homem de denso bigode recolheu uma página e começou:

— “Diante de tais descobertas, fico a pensar em como proceder. Tais informações são de imenso poder e a descoberta disso pelas pessoas erradas pode pôr em risco todo o destino do mundo. O que Deus escondeu, que assim permaneça. Que apenas os dignos possam saber desse segredo e fazer aquilo que o Pai Celeste desejar”, palavras do homem. Ele temia o que os poderosos de seu tempo fariam com algo tão grandioso. Já imaginou se um mineral como esses vai para a Europa? Eu só consigo pensar no caos e em poderosos usando isso para conseguir ainda mais poder. Talvez John Dee tenha sido sábio em ocultar tudo isso.

Mais uma vez, qualquer som pareceu se extinguir diante de tais fatos. Ninguém conseguia discordar dos pensamentos daquele que fora espião e conselheiro da rainha Elizabeth. Até que o mais jovem presente deixou que suas dúvidas escapassem através de uma pergunta:

— E agora?

Como se estivesse passando por um momento de iluminação, Patwin se levantou do banco de madeira e olhou para cima, como se recebesse alguma benção divina. E então disse:

 — Se o deus protetor está por aí, então ainda existem nativos vivos, talvez até em um bom número. Eu posso tentar achá-los e negociar com eles sobre tudo isso. Se Macawi estiver por aí, ele com certeza me ouvirá.

— E se não estiver? — David perguntou sombriamente.

— Então teremos que lutar.

Aquela resposta fez com que os quatro, que ainda estavam sentados, erguessem-se de seus bancos. Os corações de todos estavam disparados, principalmente os de Jake e Negan, pois ainda não estavam contextualizados em relação a toda a questão com os índios da ilha. Respirando fundo, Padre Marcus resolveu vir com algum plano. Talvez não fosse o melhor, mas certamente teria o seu valor.

— O ponto fraco dele deve ser prata, certo? — Quis confirmar a possibilidade. Na verdade, ainda não havia certeza alguma, mas qualquer espaço para fé já trazia grande alívio para o homem de Deus. — Eu não duvido que tenhamos bastante prata na mansão de Edward Muller. Além disso, qualquer outra pessoa da ilha poderia ajudar com isso. Temos também uma boa quantidade de armas e balas. Eu realmente não entendo tanto de munições e nem como faríamos isso, mas talvez pudéssemos revestir as balas de prata, não sei. O Donald Green era fissurado por armas e entendia bastante do assunto. Talvez a sua filha, a Melinda, tenha aprendido algo com o pai. Seria um tremendo acréscimo ao nosso plano.

Diante de toda a incerteza do futuro, Patwin sabia que não podia exigir um plano mais elaborado. O céu fora da igreja estava fechado e ele podia pressentir que uma tempestade estava chegando. Não havia fuga e a inação seria um erro tremendo. Persistir era a única opção.

— Que assim seja — declarou o mestiço. — Padre, David, Negan e Jake: consigam a prata e tudo que mais que for necessário. Não quero lutar, mas talvez não tenhamos opção. Eu irei até o bosque e encontrarei a tribo. Tenho que conseguir.


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Notas finais do capítulo

Obrigado por ter lido mais este capítulo!
O fim está próximo ;)



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