O Sangue do Mestiço escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 20
Selvagens




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— Eu sei que você sentiu o meu silêncio. Que sentiu minha ausência — Edward Muller dizia com extrema calma em sua voz. — Deve ter pensado que eu fosse um homem que simplesmente joga promessas ao vento. Que não tem a coragem de fazer o que deve ser feito. Afinal de contas, perdi as duas pessoas mais importantes na vida e não reagi como deveria. Mas saiba, Maria, que o tempo chegou. Se antes uma letargia era aparente em minhas ações, ou se eu não agia seguindo as proporções corretas, digo que tudo muda agora. Mas eu preciso de você.

Maria, esposa do falecido Rico, encarava com seriedade o ricaço de Roanoke enquanto ele proferia tais palavras. Eles se encontravam na humilde casa da viúva, antes habitada pelo há muito sem vida guarda de Muller. O homem bebia um chá na simplória cozinha, enquanto ela observava com atenção e até mesmo um pouco de descrença cada uma de suas palavras.

— Eu entreguei o fugitivo — Maria falou em um tom firme. — Serviu de algo?

Edward se ajeitou na desconfortável cadeira de madeira e pôs sua xícara sobre a mesa. Encarando diretamente os olhos da mulher, que se fazia de pé naquele momento, respondeu:

— Sim. Ele trouxe as respostas que tanto procurávamos. E agora poderei trazer a justiça que tanto prometi ao longo desses dias.

Maria caminhou até a pia e, apoiando seus braços, olhou para baixo e começou a chorar. Muller fez menção de se aproximar para consolá-la, mas o simples arrastar da cadeira fez com que ela se virasse e começasse a falar:

— Como posso saber? Meus filhos estão lá fora brincando com outras crianças, mas não são mais os mesmos — dizia agora com grande pesar em sua voz e os lábios tremendo. — Eles sentem falta do pai. Sempre digo a eles que os selvagens o mataram por ele ser um homem bom. E eles perguntam: “o que nós faremos?”. E eu sempre respondo que devemos aguardar a justiça de Deus. Mas onde ela está?

Pondo-se de pé, mas ainda mantendo a distância, Edward respirou fundo e falou com firmeza:

— Não faço ideia de onde está a justiça de Deus. Nunca a encontrei durante toda a minha vida. Eu estou aqui para fazer a nossa justiça! — Suas palavras soaram mais fortes do que planejara, mas causaram uma reação aparentemente positiva na viúva. — Eu já chorei demais. A única coisa que irá jorrar agora será sangue daqueles que tiraram vidas inocentes. Isso não é só uma promessa: é um fato que será consumado em algumas horas. Mas repito: eu preciso de você.

Maria sentiu-se desconcertada com aquelas palavras. Por que o poderoso Muller precisaria da ajuda de uma pobre viúva? Ele teria realmente boas intenções? O fato é: a simples lembrança de Rico despertava fortes emoções na moça. Independente dos motivos, se Edward realmente trouxesse justiça para os assassinos de seu marido, aquilo tudo valeria a pena.

— Como posso ajudá-lo? — Ela questionou.

O poderoso homem voltou a se sentar e Maria seguiu o movimento. Feito isso, ele começou:

— Você deve saber do recente incidente envolvendo o padre. Estou certo?

Ela assentiu com a cabeça e fez uma clara expressão de reprovação.

— Sim, eu sei, foi uma coisa horrorosa — Muller seguiu com a reprovação. — Não foi culpa minha diretamente, mas de um dos meus homens. Já o adverti e irei providenciar qualquer ajuda que necessária para a recuperação de Marcus. O fato é que as pessoas estão desconfiadas de mim. Joseph mesmo me disse que muitos se sentem “desapontados”.

Edward deu um sorriso irônico, enquanto Maria acompanhava tudo aquilo com certa perplexidade.

— Infelizmente não se pode voltar no tempo. Eu mudaria muitas coisas — prosseguiu. — Mas não dá. Entretanto, acredito que esses erros não devem impedir a execução da justiça. Pense, Maria: existem selvagens aí fora. Jessica pereceu diante deles, depois Rico. Quem será o próximo? Não podemos deixar que as coisas continuem assim.

Maria começava a entender qual seria sua utilidade em toda a questão. Disse:

— Você quer que eu fale com o povo? Quer que eu os convença que é um bom homem?

Muller balançou a cabeça negativamente e disse com firmeza:

— Não preciso que pensem que sou um bom homem. Preciso que saibam que a justiça não deve ser evitada por simples erros de percurso.  Então a resposta é sim: quero que fale. Mas não fale de mim. Fale de Rico, dos selvagens, da sua família. Faça-os sentir empatia. Só assim poderemos trazer justiça e paz para nossos amados.

A mulher sorriu pensando na possibilidade de ajudar. Entretanto, ainda tinha dúvidas quanto a efetividade de tal plano.

— Eu já falei no bar uma vez — ela lembrou com preocupação. — Acha que adiantará fazer isso de novo? Não acha que vão pensar errado? Eu não sei.

Edward cerrou o punho e respirou fundo. Tomou então o último gole de chá e encarou seus próprios pés. “Caminhei tão longe só para isso?”, pensou. Imagens de Richard Olsen sem vida invadiram sua imaginação e ele lutou bravamente para se livrar daquilo. Maria estranhou os longos segundos de silêncio e chamou:

— Senhor Muller?

— Apenas pensando — respondeu com sinceridade.

Teve então as terríveis imagens ofuscadas em sua mente após ouvir o barulhento ranger da porta da sala. Um ofegante garoto de uns nove ou dez anos entrou por ali trazendo uma bola em suas mãos. Foi direto para a cozinha e se assustou com a presença de Edward Muller sem sua típica barba.

— Jámes, dê as boas-vindas ao senhor Muller. Ele está aqui para nos ajudar novamente — Maria explicou ao filho.

E, observando aquela criança sem pai, a cabeça do poderoso de Roanoke logo se encheu de ideias.

— Olá, Jámes. Como você está? — Muller estendeu a mão para cumprimentar o menino.

O garoto retribuiu o gesto e, após uns segundos em silêncio por conta de uma clara timidez, respondeu:

— Estou bem.

Maria então falou algo no ouvido do garoto. Após isso, ele pareceu mais solto e disse:

— Sinto falta do papai. Ele sempre brincava com todos nós e cuidava da casa. Ele era um bom homem, senhor Muller.

— Eu sei — Edward respondeu com um largo sorriso no rosto. — Eu estou aqui para ajudar, mas precisarei de você, Jámes. Quer ajudar a fazer justiça pelo seu pai?

A viúva fez uma expressão de leve espanto, até entender a intenção do homem. O garotinho sorriu e assentiu com a cabeça.

— Daqui a algumas horas irei fazer um pronunciamento — Muller explicou. — Seria muito bom contar com você. Poderia falar de seu pai, da saudade e do que espera da vila de Roanoke. Será que você pode fazer isso?

Sentindo orgulho de ter a oportunidade de ajudar de alguma maneira sua vila e a própria memória de seu pai, Jámes olhou para a mãe em busca de aprovação. Após breves segundos, Maria simplesmente balançou a cabeça positivamente. O menino então se virou para Edward e disse:

— Eu consigo!

O ricaço sorriu e deu um tenro abraço naquela criança. Fechou os olhos e, por um instante, lembrou-se do abraço de sua amada Jessica Muller quando infante. “Que isso possa trazer paz para sua alma”, pensou antes do término daquela demonstração de afeto. Tendo aquilo feito, despediu-se da família mutilada e partiu em direção ao bar, pois sabia que em poucas horas o destino da ilha de Roanoke mudaria para sempre. “Mal posso esperar”, refletiu.

E realmente não teve que aguardar tanto. O tempo passou rápido para ele e o lugar logo estava lotado de homens e mulheres aguardando as palavras do todo poderoso de Roanoke. Antes daquilo, já havia feito um certo trabalho de divulgação com o auxílio de Joseph para que as pessoas se fazerem presentes no momento certo. Preferiu poupar Muralha de tal tarefa, pois sabia que ele não estava sendo nada bem visto.

— Obrigado, Joseph — Edward disse ao seu guarda. — Sei que os últimos dias foram duros para você, mas fez um excelente trabalho.

Se alguém sentia letargia, esse alguém era Joseph. O homem trabalhava para Muller há um bom tempo, mas nunca teve que fazer nenhum trabalho verdadeiramente sujo. Aquilo que fizeram com Richard era imperdoável. Ainda assim, ele ficava justificando em sua cabeça cada uma daquelas atitudes. “Ele tentou matar o chefe, nada mais justo”, pensava. Mas sua consciência sempre trazia a verdade à tona. Dessa forma, sua única opção para continuar são era simplesmente fingir que nada havia acontecido. E assim seguia sua vida de omissão.

— Eu que agradeço, chefe — Joseph respondeu no modo automático.

Mais alguns minutos se passaram, e o bar logo estava lotado. Ronald Green, dono do estabelecimento, ficou muito contente com o fato de Muller ter marcado um pronunciamento tão importante ali. Sorria e vendia cerveja e outras bebidas com grande alegria. Parecia até mais paciente com sua filha, Melinda Green.

No entanto, o lugar não era só sorrisos. Muitos olhares curiosos estranhavam a ausência da densa barba de Edward Muller. Além do mais, o incidente envolvendo o padre ainda era muito recente, gerando um clima um tanto quanto tenso no ambiente. Foi uma boa escolha do ricaço ter pedido para que Muralha ficasse longe dali, simplesmente aguardando na mansão. O gigante ainda teria sua utilidade, mas apenas após o discurso que estava por vir.

Após beber água para limpar a garganta, o ricaço voltou a encarar as tantas pessoas que se amontoavam ali. “Chegou a hora”, refletiu. Colocando o copo sobre o balcão, respirou fundo e, com sua típica voz forte, começou:

— Fico feliz que estejam todos aqui. — Se antes havia o ruído de fofocas e cadeiras sendo arrastadas, o chamado de Muller logo fez com que o silêncio imperasse. Apenas a voz dele era ouvida. — Confesso que temi que o incidente com o padre fosse prejudicar nossa busca por justiça. Afinal, não é algo que eu só procuro, mas o povo de Roanoke busca. Quem aqui nunca sentiu medo? Sim, medo. O mais puro sentimento de desespero. Você olha para sua filha ou esposa e pensa no que pode acontecer. Existem selvagens aí. O que podem fazer com sua família? Não sei vocês, mas mesmo com todas as minhas perdas, eu tremo todas as vezes que penso nisso.

As pessoas ouviam o discurso com interesse. Ainda que uma parcela encarasse Edward com descrença, uma outra parte já estava muito bem convencida pelas palavras do homem. Entretanto, o momento foi rompido por uma voz já conhecida.

— Imagino que o padre tenha sentido muito medo. Dizem que ele perdeu a visão — a voz pertencia a Melinda, já conhecida por interromper os discursos do poderoso Muller. Apesar de jovem, ela tinha a coragem de uma mulher feita.

Apesar da reação de surpresa e tensão do público, Edward manteve a calma. Ele já esperava por isso e tinha muito bem guardado suas cartas na manga, além de palavras previamente pensadas.

— Você faz muito bem em dizer isso, jovem Melinda — ele respondeu com certa doçura na voz. A garota o olhou com surpresa, pois não esperava de forma alguma palavras elogiosas. — Um contraponto sempre é importante. Fico feliz em contar com você para isso, e mais ainda por ter a oportunidade de explicar o ocorrido. O padre, como um bom cristão, resolveu pedir mais calma a todos nós durante todo o processo investigativo. Muralha entendeu isso como uma afronta e acabou acertando-o em cheio. Que coisa terrível!

Muller fez sua melhor expressão de tristeza e pesar que podia. Melinda permaneceu sem palavras enquanto escutava o que ele tinha para dizer.

— Conversei com o meu homem — prosseguiu. — Ele me pareceu verdadeiramente arrependido, mas não se sente pronto para encarar tantos olhares. Muralha sabe que fez algo muito errado e está disposto a se redimir, esse é o fato. Espero que o padre também possa conceder esse perdão. Logicamente, irei ajudá-lo da forma que possível com seu tratamento. Infelizmente, temo a visão dele não retornará, mas irei compensá-lo de alguma forma. Minha palavra é de ouro, isso eu garanto.

Tendo dito aquilo, viu que a maré aos poucos estava virando ao seu favor. Ainda assim, não deixava de perceber olhares que esbanjavam descrença. Definitivamente não tinha a mesma força que antes. “Será que estou me repetindo?”, pensou brevemente. Não, não teria tempo para refletir mais. Precisava agir.

— Acho que já entenderam toda essa questão do incidente, certo? — Questionou e ouviu algumas respostas positivas aqui e ali. — Estando esse assunto resolvido, iremos agora ao objetivo de toda esta conversa, o cerne deste encontro: temos que enfrentar o medo. Ficar em nossas casas não trará segurança às nossas mulheres e crianças. Fechar os olhos para o problema nunca é a solução. Dessa forma, devemos agir. E hoje é o dia. Convoco-os, meus amigos, para que peguemos em armas e lutemos pela nossa segurança. Que nenhum selvagem mais possa interromper a nossa paz.

Ainda que estivesse conquistando algum apoio, Edward sentia que havia uma certa divisão no bar. Ronald e vários outros homens o apoiavam sonoramente, enquanto a filha dele e boa parcela dos presentes permaneciam em silêncio. “Isso não irá bastar”, refletiu o poderoso homem de Roanoke. Ocorreu então de mais uma voz se erguer em meio à multidão.

— Eles não estão nos atacando. Estamos bem! Por que atacar pessoas que nem sequer aparecem por aqui? — Era a voz do magrelo do Albert, o mesmo garoto que primeiro testemunhou o corpo sem vida de Jessica Muller. Estava cheio de coragem e inspiração após ser apoiado por Melinda Green.

“Esse é o momento”, Muller pensou enquanto dava um sorriso discreto. Caminhou em direção a porta enquanto falava:

— Não estão nos atacando? Creio que devo refrescar a memória de vocês — dito aquilo, abriu a porta. O pequeno Jámes e sua mãe, Maria, adentraram o estabelecimento. Ambos estavam com um semblante sereno, ainda que a criança apresentasse certo nervosismo diante dos tantos olhos a sua frente. — Vocês conhecem bem essa senhora. Maria, esposa do falecido Rico. Rico era um homem bom, honesto e trabalhador. Morreu em decorrência de um envenenamento causado por uma flecha dos selvagens. E o pequeno é seu filho, o tão educado e gentil Jámes. Deixarei que eles falem o que eu mesmo não posso expressar.

Cercado de olhares curiosos, Jámes sentiu um certo receio de começar a falar, chegando até mesmo a se encolher. Maria, no entanto, falou em seu ouvido para fazer isso pelo pai e deu um leve empurrãozinho para o garoto seguir em frente. Edward deu um singelo sorriso para ele e, com isso, a criança finalmente sentiu-se confortável para discursar:

— Eu sinto falta do meu pai — sua voz estava trêmula e chorosa, mas embebida em verdade. — Ele sempre brincava comigo. Me carregava em suas costas e dizia que eu seria um grande cavaleiro, que nem as histórias antigas. Ele também me contava fábulas e falava sobre como estava ajudando Ronaoke. “Vou trabalhar para um homem importante”, ele disse assim que começou a trabalhar para o senhor Muller. Ele só queria o bem para nós. Sempre tratou a mamãe como uma rainha. Por que mataram ele?

A essa altura, o garotinho já se desfazia em lágrimas com tantas memórias. O mesmo ocorria com alguns dos ouvintes. Apesar das poucas palavras, era duro ver uma criança em tamanho sofrimento e saudade. Edward se aproximou dele e lhe deu um tenro abraço. Falou em seu ouvido:

— Seu pai está muito orgulhoso!

Jámes lhe deu um sorriso e abraçou o poderoso de Roanoke com ainda mais força. Maria também se emocionou e logo também pôde contar com os abraços calorosos do filho. Voltando a olhar para o público, Muller viu que tudo havia funcionado como planejado: as pessoas estavam afetadas pela emoção, sentiam a perda tanto quanto aquela criança. Deveria finalizar o momento com chave de ouro. Disse:

— É para que crianças como Jámes não vivam sem seus pais que eu quero fazer isso. E é para que pais como eu não vivam sem seus filhos e esposas. Vocês estão comigo nessa?

E, num coro vibrante, o ricaço viu a concordância quase total dos eventos que estariam por vir. Nem mesmo Melinda ou Albert ousaram falar algo. Edward concluiu:

— Então descansem — falou com firmeza. — Partiremos ao fim da tarde.

Longe dali, Adaky refletia um pouco mais distante da tribo. Lembrava-se dos acontecimentos recentes e de como estava superando tudo aquilo “Não sou tão frágil, afinal”, pensou. O sol já tinha cedido seu lugar a lua e a noite apresentava uma beleza ímpar naquele momento. Não tardou para que Patwin marcasse presença ao lado do jovem nativo. Caminhando através da mata para conseguir sossego da tribo, o mestiço se surpreendeu com a presença solitária do garoto.

— Adaky? O que faz aqui? — Questionou com serenidade.

O índio virou-se para encarar o jornalista. Ele estava trajando roupas de homens brancos, diferentemente do que fizera anteriormente.

— Cansou-se da tribo? — Adaky perguntou.

— Difícil explicar — Pat caminhou lentamente e sentou-se ao lado de seu amigo. — Muitas coisas aconteceram desde que cheguei aqui. Céus, desde antes de eu sequer vir para cá. Toda vez que encontro uma certeza, duas dúvidas aparecem. Quis, só por um momento, lembrar como é ser um “homem da cidade”. Espero que não tenha problema.

— Você é livre. Todos somos. Ou ao menos deveríamos.

— Sim — o mestiço assentiu com certa tristeza no olhar. — Às vezes sinto que nós, humanos, estamos sempre tentando encaixar as coisas. Não sei se estou sendo claro, mas parece que sempre fazemos parte de algum grupo. Índios, brancos, mestiços. Acho que sempre persegui um rótulo para chamar de meu, mas creio que nenhuma dessas coletivizações realmente sirva.

Adaky ouvia atentamente a reflexão feita por Patwin, mas não emitiu resposta alguma. Com o silêncio que surgiu, logo escutaram os passos de mais uma pessoa se aproximando: Eyanosa.

— Esses hábitos noturnos estão se espalhando com rapidez, hein? — Ela brincou.

Pat e Adaky soltaram risadas e convidaram a moça a se juntar a eles. Sentando-se, ela começou:

— Debatendo algum tema importante ou só jogando palavras ao vento?

— Só palavras ao vento — respondeu Adaky. — Ei, o que acha das vestimentas do Patwin?

Eyanosa não se surpreendeu com o que viu: já havia conversado anteriormente com o mestiço sobre o tema. Na verdade, já haviam conversado sobre muitas coisas.

— Certamente não é uma vestimenta tão bela quanto a que usamos, mas não fica nada mal nele.

Patwin sorriu e encarou profundamente os olhos da nativa. Era incrível a paz que ela trazia para ele durante aqueles tempos conturbados. Era como uma válvula de escape, uma anestesia para toda dor existente naquela ilha amaldiçoada.

— O céu hoje parece mais belo — disse o mestiço com os olhos brilhando. — Nunca deixa de me surpreender. Não tenho uma vista dessas em Nova York.

O trio estava no meio da densa floresta, cercado por árvores, pequenos animais e os milhares de olhos do céu estrelado. Havia luz naquele dia escuro.

— Sabe, eu sou grato por ter conhecido você, Patwin — Adaky falou com firmeza na voz. — Se não fosse por você, eu possivelmente teria simplesmente desistido de tudo. Lá na prisão, você agiu com coragem. É mais forte do que pensa, amigo.

— Sua força é incomparável. Não sei se eu teria forças caso perdesse alguém que amasse — Pat respondeu, mas logo se lembrou que já havia perdido muitas pessoas na vida: sua mãe e seu pai. E a verdade é que vivia no modo automático, convivendo com a perda, mas sem senti-la como deveria. Seria isso uma prova de força ou fraqueza? No entanto, também lembrava de seu ponto de reação: a vinda para Roanoke.

— A vida continua — Eyanosa concluiu. — Eu tenho muito a agradecer também.

E, com aquelas palavras, o trio entrou em um momento de silêncio confortável. Encaravam o céu com confiança e fé em dias melhores. Por um momento, Patwin pensou que o futuro estava assegurado, que as coisas se resolveriam e não haveria mais dor. No entanto, uma luz trouxe a escuridão.

A alguns metros de onde estava o trio, o mestiço percebeu uma luz trêmula de cor alaranjada que se aproximava. Não só uma, várias! Os pontos de brilho tornaram-se mais numerosos e intensos, de maneira que Eyanosa e Adaky logo perceberam também.

— O que é isso? — Adaky questionou com preocupação.

Eyanosa fez um gesto para que o grupo mantivesse o silêncio. Prestando atenção em seus olhos e ouvidos, logo escutou passos numerosos se aproximando. Não só isso, palavras de ordem também se tornaram audíveis.

— Estamos nos aproximando — uma voz grave dizia.

Patwin e Adaky se entreolharam com expressões mistas de medo e surpresa. Era a voz de Edward Muller. O mestiço logo tratou de tatear o corpo em busca de seu arco, mas lembrou que havia deixado o armamento na tribo.

— Temos que sair daqui! — O nativo começou a entrar em desespero. — É o demônio de Roanoke.

— Não se mexa! — Eyanosa ordenou. — Observe: estão vindo na nossa direção. Escondam-se ou seremos mortos.

Misturando-se entre densas folhagens e a escuridão da noite, o trio permaneceu imóvel. Pat suava frio, mas mantinha sua compostura de maneira que nem ele mesmo acreditava. Os passos barulhentos dos homens da cidade se aproximavam cada vez mais e as conversas paralelas começaram a se tornar mais altas e audíveis.

— Meus pés doem — dizia algum rapaz com a voz enfraquecida. — Esse tal de Richard falou a verdade sobre a tribo?

— É melhor que sim — era a voz do temível Muralha que trazia a resposta.

O grandioso grupo aproximou-se e passou pela área onde estava o trio oculto. Apesar do medo visível em sua face, Adaky manteve o silêncio e, junto de seus amigos, conseguiu permanecer invisível aos olhos de seus temíveis algozes. O grupo de Edward Muller prosseguiu rumo ao seu destino.

— O que faremos agora? — O garoto não estava raciocinando direito.

— Daremos a volta — a moça era mais controlada. — Vamos chegar na tribo e alertar nossos irmãos.

Pat assentiu e seguiu a liderança da nativa. O trio partiu com cautela a cada passo dado, ao mesmo tempo em que ouviam os seus inimigos e viam suas trêmulas tochas. O mestiço logo se lembrou da história contada por Macawi de séculos atrás, quando a vila tribal fora desproporcionalmente (e talvez injustamente) punida com um incêndio brutal. “Isso não acontecerá de novo”, prometeu.

Seguindo o outro caminho, Edward mantinha seu objetivo fixo na mente: traria justiça por tudo que aconteceu com sua esposa, sua filha e o pobre Rico. “Hoje isso tudo acaba”, pensava a cada passo que dava. Estava com um bom exército e com boas armas, ao menos o suficiente para enfrentar selvagens que usavam arcos com flechas possivelmente envenenadas. O ricaço sabia atirar bem, tendo em vista que havia caçado bastante durante anos anteriores. Esperava não ter perdido a prática. Junto dele, o omisso Joseph e o brutal Muralha seguiam a marcha, além de todo um grupo de homens comovidos com seu discurso e, no âmago de suas almas, desejosos por violência supostamente justificada. E então aquela visão chamou a atenção de Muller.

— Parados — ordenou e gesticulou com sua mão direita. — Ali!

As primeiras estruturas de madeira e tendas eram vistas alguns metros a frente do grupo de assalto. Não enxergavam índio algum, algo que causou estranheza.

— Ao meu sinal — disse Edward. Um filme passou por sua cabeça. Lembrou-se de todos os momentos com as mulheres da sua vida, da descoberta do corpo de Jessica, da prisão do mestiço, do índio e do artista. A imagem de Richard morto voltou a atacar sua memória e ele sorriu com aquilo. Sim, estava conseguindo um resultado. — Agora!

Ronald Green estava entre os atacantes. Correu com velocidade assustadora apesar do tamanho da sua barrida, trazendo consigo uma bela espingarda. Entretanto, o que o grupo de ataque não esperava é que os índios tivessem sido avisados alguns minutos antes. Estando ocultos, os guerreiros secotan aos poucos foram aparecendo e disparando suas flechas. Uma dela viajou e acertou o peito do dono do bar, que caiu sangrando e gritando de dor. Não só ele: mais homens do grupo foram acertados urrando de dor e desespero.

Os nativos estavam por toda parte: ocultos entre as suas construções, entre as árvores e até mesmo acima delas. Eram hábeis, espertos e mais que tudo: corajosos. No entanto, o povo da cidade também tinha seus talentos únicos, ou melhor, suas armas. Revólveres, espingardas e rifles foram erguidos e o som ensurdecedor de tiros sendo disparados tomou conta completamente do ambiente. Balas voaram por todos os lados, atingindo estruturas, árvores e nativos. Madeira, areia e sangue se espalharam pelo ar. As primeiras vidas da tribo começaram a ser perdidas de forma brutal e o vermelho encharcou o solo dos secotan.

A essa altura, Patwin, Eyanosa e Adaky já haviam pego em armas. O trio andava o tempo todo junto, buscando apoio um no outro. Mahpee e Macawi iam pelo outro lado, ao mesmo tempo em que crianças, idosos e outras pessoas inaptas para o campo de batalha fugiam desesperadamente em busca de sobrevivência.

— Muller! — O mestiço disse com ódio ao vislumbrar o seu algoz.

Segurou o arco com firmeza, pegou sua flecha e mirou sem hesitar. Respirou fundo e disparou. A flecha viajou com velocidade, mas o resultado foi diferente do que o jornalista imaginara: ele simplesmente errou. No entanto, o ataque não passou despercebido pelo demônio de Roanoke, que logo virou o rosto e a arma e viu o mestiço fugitivo.

— Ali! — Apontou indicando o caminho para Joseph e Muralha, enquanto ele mesmo disparava sem sucesso dali.

— Espalhem-se! — Eyanosa deu as ordens.

Com os tiros se tornando cada vez mais frequentes e os índios tendo uma reação mais lenta, a pequena vila logo foi tomada e rapidamente incendiada. O fogo iluminou os tantos corpos ali presentes. Brancos e índios comungavam o cenário de carnificina e desespero. Mesmo com os alertas anteriores de Patwin e seus amigos, a fuga não havia tido total eficácia: mulheres e crianças jaziam no chão sem vida alguma, perfurados por balas que não distinguiam guerreiros e puras vítimas da violência humana.

A batalha se espalhou para dentro da floresta. Escondidos entre as árvores, os nativos voltaram a ter alguma vantagem, mas o grupo de brancos avançava com a brutalidade de sempre. Patwin corria sozinho em disparada quando se chocou com Joseph, causando a queda de ambos. O homem de Muller acabou deixando sua arma, uma espingarda com uma lâmina acoplada, cair entre eles.

— Maldito! — O mestiço sentia puro ódio.

Avançando com agilidade, Pat conseguiu pegar a arma enquanto Joseph permanecia no chão. Apontando a lâmina contra a garganta do algoz, questionou:

— Por quê?

Vendo o olhar de medo de seu inimigo e sem obter resposta alguma, o mestiço pensou em executá-lo, mas uma bala pegou seu ombro de raspão. Afastando-se sentindo medo e dor, acabou dando tempo e espaço para que o homem caído sacasse um revólver e se preparasse para atirar. Por sorte, uma flecha misteriosa cortou o ar e perfurou o pescoço de Joseph, que sofreu lentamente enquanto se afogava em sangue.

— Você se distraiu! — Gritou Eyanosa, a autora da flechada.

Patwin agilmente se virou e viu que o autor do tiro fora Muralha. “Maldito demônio”, pensou o mestiço. Ele acreditava que aquele homem era pior que o próprio Edward Muller, às vezes. Apontou a arma de Joseph contra o gigante, mas o homem rapidamente saiu de seu campo de visão. Com o coração em disparada, Pat voltou a correr buscando alguma forma de ajudar o seu povo naquela guerra.

Do outro lado, Mahpee usou toda sua habilidade e, estando bem escondido, disparou uma flecha envenenada que acertou a panturrilha esquerda do demônio de Roanoke. Muller caiu no chão enquanto gritava de dor. Alguns homens ao seu lado rapidamente começaram a carregar o homem e a recuar. A luta estava acabada para ele. Vendo a cena, Muralha logo entendeu que não havia mais como estender o combate. Muitos índios haviam fugido, outras dezenas estavam mortos. Além disso, a morte de brancos também era elevada. Ainda assim, o maldito sentia uma sede de sangue insaciável. Seus olhos então encontraram Eyanosa.

A nativa matava sem hesitar seus inimigos. Era precisa com o arco e flecha e não tremia com a situação caótica. Entretanto, sua sequência logo seria interrompida. Estando na mira do gigante, ela por pouco não foi atingida. Em um momento de puro desespero e emoção, Patwin saltou empurrando a nativa e tomando o seu lugar. Dessa forma, também tomou o que seria a bala que iria de encontro a ela. Penetrando o peito do mestiço, ele sentiu o sangue fluir sobre seu corpo. Suas pernas tremeram e ele caiu no chão. Eyanosa habilmente disparou flechas contra a posição de Muralha, mas o homem já havia saído dali e recuado com um sorriso no rosto.

— Patwin! — Ela gritou em desespero enquanto examinava o seu homem.

— Fuja! Fuja agora! — O mestiço ordenou desesperadamente.

Em prantos e finalmente sem controle de suas ações, Eyanosa seguiu o pedido de seu amado a contragosto. Correu sem rumo, sem direção. Seguindo um caminho oposto ao de seus irmãos de tribo, não olhou para trás, apesar de ter deixado parte da sua alma ali. Patwin, por outro lado, ficou no chão aguardando a morte. A escuridão logo invadiu os seus olhos. Pouco depois, os sons de tiros e gritos de dor cessaram.


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