O Sangue do Mestiço escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 1
A alma da ilha


Notas iniciais do capítulo

Boa noite! Fico muito feliz em finalmente iniciar as postagens desse projeto que tanto amo! "O Sangue do Mestiço" conta com alguns elementos históricos reais, mas sem perder a liberdade criativa.

Espero que goste!



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Era verão, mas um frio tenebroso atravessou a espinha do jornalista e o acordou em meio a viagem de barco. O mar estava agitado, o céu se escondia em meio a nuvens carregadas e o som do vento com a água soava como o canto da morte. Tremendo, o homem pegou a pequena mala sob seus pés, abriu-a e retirou um cobertor. Suas costas já doíam em decorrência da lenta viagem, mas o frio tornava tudo muito pior. Tentando encontrar o horizonte, tudo que ele via era uma tenebrosa névoa que insistia em não se dissipar. Nada parecia confortá-lo naquele momento: o cheiro, a vista, os sinistros sons e nem mesmo o tato. Para o paladar, restou ao jornalista as bolachas secas que sempre trazia consigo. Entretanto, o som do mar foi rompido graças a estridente voz do jovem que sentava ao seu lado.

— Mais de cem! Mais de cem colonos desaparecidos, Pat. Dá para acreditar nisso?

Os olhos verdes do jovem estavam arregalados enquanto se deleitava com um pequeno livro cujo título era “Lendas da América”. Pat bocejou indiscretamente antes de perguntar:

— Quais as teorias?

O jovem se ajeitou na cadeira ao mesmo tempo em que esfregava as mãos em decorrência do frio. Em seguida, respondeu com interesse genuíno pelo assunto:

— Talvez eles tenham sido devorados pelos nativos? Ou então foram raptados? É difícil dizer. Não foram encontrados vestígios de sangue ou ossadas. Mas pode-se dizer que violência é uma solução costumeira para problemas humanos. É, talvez tenham sido devorados.

O jornalista gargalhou com as ideias levantadas pelo garoto, chegando a involuntariamente fechar seus olhos, olhos esses que já eram naturalmente apertados. Recompondo-se, disse:

— Olha, não duvido que tenha acontecido algo violento, ainda mais levando em consideração o mundo em que vivemos. Faz o quê? Menos de dez anos que a Europa literalmente explodia? Bem, o fato é que as vezes as coisas não são tão óbvias. Olhe para mim, por exemplo. — Pat gesticulou apontando para o próprio rosto. — Sou uma mistura genuína dos nativos que você acusou de serem canibais e branquelos como você. Certamente meu pai não devorou minha mãe. E isso pode ter acontecido com os colonos desaparecidos. Uma fábrica de mestiços, talvez.

O jovem riu tão alto que chegou a despertar um velho que dormia sentado próximo aos dois. Após uma profunda respiração, o pequeno disse:

— Espero não ser devorado. Meu pai me mataria.

— E eu perderia meu emprego — respondeu o jornalista.

E, dessa forma, a dupla pôde desfrutar de um clima menos mórbido do que aquele cuja a natureza os presenteava. Aos poucos o mar se acalmava, o vento soprava mais leve, as nuvens se dissipavam e davam espaço para que pequenos feixes de luz atravessassem a grande parede cinza e aquecessem os dois. Pat então apontou para o horizonte, onde uma grande massa de terra começava a ganhar forma e ocupar espaço na visão dos viajantes.

— Bem-vindo a Roanoke.

O garoto olhou com admiração para a grandiosidade daquela terra. Ainda que fosse apenas uma sombra dentro da névoa que ainda estava se dissipando lentamente, ela já apresentava um peso inquestionável. O pequeno estava, afinal, visitando um lugar digno de lendas e livros, onde o mistério estava sempre presente e a dúvida era a melhor amiga de qualquer pessoa. Talvez fosse bom copiar um pouco do ceticismo do jornalista sentado a seu lado, ele pensou.

— Pode recapitular nossa missão? — O garoto questionou, enquanto ainda admirava a paisagem.

— A missão está no seu livro. Basicamente devemos falar com os cidadãos, questionar sobre as lendas, esse tipo de coisa. Eu tentarei entrar em contato com os nativos. É sempre bom ouvir todos os lados, David — Pat explicou.

— Bem, pelo menos eu li que hoje os nativos se relacionam bem com os moradores. Não vai ser difícil para você — David parou de falar por um momento quando observou uma certa seriedade no olhar do jornalista. — Só espero acabar isso rápido. Por mais interessante que seja, não posso deixar de falar como sinto saudade dos prédios.

— Mas já?

A conversa foi interrompida com o vislumbre de uma sombra em meio a névoa. Era pequena, mas claramente se tratava de uma forma humana. Ela remava em uma pequena embarcação até parar em determinado ponto e então jogar uma rede ao mar.

— Pescadores — o jornalista concluiu. — Prepare-se para comer peixe todo dia.

Apesar da piadinha, David não reagiu. Ele continuou encarando fixamente o pescador distante. O homem ao seu lado estranhou tal fixação e, após esfregar os olhos, conseguiu enxergar com mais clareza: o tal pescador trajava algumas penas e contava ainda com pinturas pelo corpo. A distância era grande para a obtenção de maiores detalhes, mas Pat concluiu que aquilo era, na verdade, um nativo da região.

— Eu nunca tinha visto um. Digo, não pessoalmente — David disse.

— Não são tão assustadores como as histórias contam, hein? Apenas um homem como qualquer outro buscando alimentar sua família — Pat explicou.

— Ele deve ter muita coragem para encarar esse mar sozinho.

— Ele já está acostumado com o selvagem, David. A civilização como conhecemos tem muitas vantagens, mas existe uma verdade dolorosa: somos um bando de covardes preguiçosos. Nisso eu tenho que concordar com o que meu pai dizia.

A viagem continuou silenciosa, enquanto a massa de terra a frente do barco começou a ganhar uma forma melhor definida. Majoritariamente plana, a ilha era coberta pelo verde das árvores e da grama, sendo esse verde interrompido apenas pela madeira presente no píer e nas construções da pequena vila que se apresentava logo a frente. Era como se o lugar ainda fosse uma colônia.

— Eu tenho medo de uma coisa, mas vai soar desrespeitoso — David alertou.

— E alguma vez eu já liguei para isso? Desembucha, garoto — o jornalista respondeu.

— Bem, aí vai. Tenho medo de nos depararmos não só com índios canibais, mas com matutos moradores de vilas que nem sabem que fazem parte dos Estados Unidos da América. Tipo aqueles caras que pensam que William Howard ainda é presidente.

Pat deu uma grande gargalhada com os pensamentos do garoto. Parando para respirar fundo, ele finalmente disse:

— Olhando pelo lado bom, os matutos costumam ser legais. Sempre tem alguma história para contar. Quando você ultrapassar os trinta talvez entenda. Talvez.

— Chegamos! — Declarou com uma estrondosa e irritada voz o condutor do barco.

O homem de barba branca e cabelos desajustados atracou a embarcação e saiu resmungando impropérios de difícil identificação. Pat e David se entreolharam, provavelmente chegando a conclusão de que a conversa entre os dois tenha irritado profundamente o condutor, que aguentou tudo calado durante toda a viagem. A dupla então agarrou suas malas e se retirou com pressa da embarcação.

Assim que pisaram no píer, puderam escutar o incômodo barulho da madeira frágil, como se a estrutura pudesse ceder a qualquer momento. Além disso, o ar estava cheio do inconfundível odor de madeira podre. Aquele trabalho era claramente amador. Apesar de manter a compostura, o jornalista sentiu um frio na barriga. David, no entanto, estava distraído com a vista pela frente: após o píer, um tapete de grama e areia se estendia. Sobre o tapete estavam singelas estruturas de madeira. A vila crescera de forma linear, de maneira que sua exploração era notadamente sem graça. Ao fim da linha, o garoto percebeu uma estrutura maior, mais rica e bonita: uma mansão.

— Achamos o chefão da vila — disse David apontando para o que se podia ver da grande residência.

— Tenha cautela com as conclusões, garoto. Nem tudo é o que parece — alertou Pat.

— A maioria das vezes as coisas são exatamente o que parecem.

O jornalista riu até ouvir o seu nome ser chamado.

— Patwin Winslow! — Gritava um homem de batina no terço final do píer.

Patwin apressou o passo e finalmente confirmou que aquele era mesmo o seu contato das semanas anteriores.

— Padre Marcus? — Patwin queria a confirmação.

O homem de batina coçou sua cabeça negra e careca que suava com o calor que tomou o lugar do frio de outrora.

— Exatamente! — Ele confirmou.

Padre Marcus estava acompanhado de uma vira-lata amarela e extremamente dócil. Ela rapidamente avançou na direção de Patwin e começou a lamber seus dedos e a suplicar por carinho, carinho esse que o jornalista logo ofereceu. Enquanto isso, David acompanhava tudo com estranheza. Percebendo isso, Pat logo fez as apresentações necessárias:

— Padre, este aqui ao meu lado é David Fincher. Ele é filho do chefe do jornal que trabalho, Novo Mundo, lá de Nova York. É um garoto excepcional e está aqui para me ajudar na pesquisa. David, o padre Marcus é o homem com quem eu troquei aquelas correspondências. Eu não viria aqui despreparado, não é?

O padre então se aproximou e apertou a mão de Patwin, que se assustou com a grande estatura do homem. David, mais baixo e tímido, fez o mesmo, mas sem soltar uma só palavra. Marcus então lembrou-se de um detalhe que havia esquecido:

— Ah, essa é a Selvagem — disse enquanto apontava para a vira-lata. — Ela é um amor e a amiga de todos aqui na cidade.

— Já percebi — falou Patwin enquanto acariciava mais uma vez a cabeça da cadela. — Mas então, por onde começamos?

— Vocês devem estar cansados, imagino eu. Vou apresentá-los a estalagem.

O padre então conduziu a dupla pelo curto caminho até a estalagem. Patwin pôde observar a simplicidade de cada casinha, mas também percebeu a estrutura mais robusta de algo que parecia ser um bar. Enquanto isso, David olhava para cada uma das pessoas presentes na rua. Havia um número relativamente grande de crianças mal vestidas brincando com pedras e pulando de um lado para o outro. Próximas as casas, mães vigiavam suas crias enquanto costuravam, escreviam cartas ou tratavam os peixes que os maridos pescavam. Marcus era cumprimentado por onde passava, de maneira que a dupla de jornalistas logo entendeu que ele era uma figura querida na vila.

— Povo muito religioso, padre? — Patwin questionou.

— Nem tanto. Eles gostam de mim porque eu consigo falar diretamente com o “prefeito”, se é que posso chamá-lo assim. Como pode ver, as pessoas estão jogadas às traças. Mas se por “religioso” você quer dizer “ir à missa”, então a resposta é sim — respondeu com sinceridade o padre. — E finalmente chegamos.

A frente do trio se erguia mais uma estrutura que ultrapassava a humildade vista nas outras construções. A estalagem tinha dois andares e apresentava uma arquitetura vistosa, mesmo que simples. Ainda assim, o barulho da madeira com o pisar era algo que iria incomodar Pat durante toda a eternidade.

— Bem, agradeço muito pela ajuda, padre. Nos falamos em breve — o jornalista se despediu.

— Qualquer coisa é só dar uma passada na igreja — respondeu Marcus enquanto apontava para uma pequena cruz que por pouco aparecia acima de outras casinhas.

Selvagem acompanhou seu dono durante a retirada, enquanto Pat e David adentravam a estalagem. O local não era muito bem iluminado, mas a dupla conseguia enxergar o suficiente. Logo a frente, em um balcão, estava uma senhora de longos cabelos negros com uma pilha de papel e incontáveis números de colares no pescoço.

— Sejam bem-vindos! — Ela disse com um belo sorriso.

— Olá! Eu me chamo Patwin e este aqui é o David. Queremos um quarto — o jornalista foi direto.

— Perdão, nem me apresentei! Eu me chamo Margaret Olsen, mas podem me chamar de Marg. Por quanto tempo pretendem ficar?

— Indeterminado — David cortou a fala de Pat.

— Seu filho? — Margaret questionou.

— Quase — Patwin brincou.

Com um riso social ecoando de todos, Marg se apressou e logo entregou a chave do quarto à dupla, além de falar as instruções de acesso. O quarto estava no segundo andar. Patwin e David subiram as escadas ao lado do balcão e logo se depararam com a porta de madeira maciça que separava o quarto do resto da estalagem. Pat girou a chave com dificuldade, graças ao mau estado da tranca da porta, mas conseguiu entrar com sucesso.

O quarto, apesar de pequeno, era organizado. As camas estavam arrumadas e o lugar cheirava bem. David jogou sua bolsa no chão e logo pulou numa das camas, deitando-se e ficando imóvel por longos segundos. Enquanto isso, Patwin foi até o banheiro e viu que o lugar havia sido limpo recentemente, o que o agradou bastante.

— Simples, mas bem cuidado — Patwin falou.

— Matutos de boa higiene — David brincou.

O jornalista aproveitou a deixa para tomar uma ducha. Enquanto isso, David acabou adormecendo enquanto lia “Lendas da América”. Ao sair do banho, Pat estava sem sono e com uma curiosidade acerca do local. Com seu parceiro de trabalho dormindo profundamente, ele decidiu partir sozinho rumo ao bar ali próximo. Pat sabia que bares eram excelentes lugares para se adquirir informação, fazer amizades e, indubitavelmente, beber.

Após andar poucos metros, ele já estava abrindo a pesada porta do bar. Lá dentro, o barulho incomodava. Um bêbado tentava tocar alguma coisa com um violão, mas apenas reproduzia melodias que ofendiam a boa música. Ao mesmo tempo, conversas paralelas corriam soltas e a acústica do local era péssima. Pat então logo avançou para o barman, um homem gordo e com as bochechas que quase saltavam do rosto.

— Uma dose da melhor coisa que você tiver aí — pediu Patwin.

O barman se abaixou e tirou do compartimento uma estranha bebida de coloração azul. Depois disso, adicionou um pouco de uísque e quase colocou absinto, mas Pat pediu para que o poupasse do último elemento da receita.

— Novo na cidade? — O barman perguntou.

— Apenas visitando — Pat respondeu.

— Pois aproveite a visita, forasteiro. A propósito, eu me chamo Ronald. Ronald Green.

— Prazer, Ronald — Pat respondeu enquanto provava o primeiro gole da sua bebida. — Pode me chamar de Patwin.

Um fogo começou a subir pelas paredes da garganta do jornalista. Seu estômago começou a ferver, suas tripas se contorciam e seus olhos começaram a marejar. Aquilo, seja lá o que fosse, era extremamente forte. “Graças a Deus ele não colocou o absinto”, Patwin pensou. O jornalista decidiu então se sentar para observar melhor o ambiente e, quem sabe, descolar uma conversa útil ou divertida. Ocupando a última mesa vazia, olhou para os lados em busca de rostos singulares e informações adquiríveis a partir do reles olhar.

Da porta atrás da bancada, ele pôde ver o surgimento de uma moça magra e de cabelos castanhos claros. Ela se aproximou de Ronald lentamente e disse algo em seu ouvido, de maneira submissa e como se esperasse uma resposta agressiva. Ronald respondeu com muitas gesticulações de suas mãos e logo a moça voltou para o lugar de onde tinha saído. Pat supôs que aquela era a filha de Ronald, provavelmente a herdeira do negócio da família, daí a firmeza do tratamento do seu pai.

Nas outras mesas, o jornalista observava casais, dentre eles alguns que aparentavam timidez e, de maneira suspeita, estavam sempre olhando para os lados. Seriam casos extraconjugais? Patwin não podia provar, mas era uma aposta que ele faria. Por último, mas não menos importante, um cliente solitário chamou a atenção do observador. Sobre a mesa havia apenas um caderno e esse cliente, um garoto de uns vinte anos, desenhava algo incessantemente, parando apenas para observar um bêbado desacordado na mesa ao lado. Com o rosto liso e longos cabelos negros, o garoto tinha algo que lembrava a dona da estalagem, a senhora Olsen. Patwin então se aproximou.

— Forasteiro também? — O jornalista questionou.

O garoto parou de desenhar e passou a encarar estranha e fixamente Patwin. Após intermináveis segundos, ele respondeu:

— Moro aqui há 23 anos e até hoje sou um forasteiro.

— O que você está desenhando aí? — Perguntou um curioso Pat.

— Tudo. Todos. E você está atrapalhando.

A sinceridade do garoto chocou o jornalista. Ele não esperava uma resposta daquela, por mais verdadeira que fosse. Ele sabia que o garoto estava certo, mas aquele não era o comportamento esperado dentro da civilização. Ainda assim, Pat conseguiu manter a compostura.

— Perdão! Vou deixar que continue a desenhar, senhor... — disse Pat.

— Richard Olsen — completou o garoto.

— Patwin Winslow.

Pat estendeu a mão para um aperto cordial, mas a inação de Richard o pegou desprevenido mais uma vez. O garoto estava olhando fixamente para o papel, parando apenas para observar o bêbado desmaiado e então voltando a acrescentar alguns traços novos.  

Após o momento de estranheza, Patwin voltou para sua mesa. Entretanto, sua observação foi interrompida pelo abrir repentino da pesada porta do bar. Do outro lado, um garoto magérrimo, com os olhos fundos e uma cara de desespero começou a gritar desesperado:

— Jessica Muller está morta! O corpo dela está na floresta, eu vi!


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Notas finais do capítulo

Muito obrigado por ter lido até aqui!

Esse é apenas o início de uma grande história (com postagens semanais). O que achou?

Nos vemos no próximo capítulo =D



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