Zelo escrita por Trubluu


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Essa fanfic foi um parto e tanto... Espero não ter decepcionado muito.



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Estou esperando meu pai e ele está atrasado de novo, pra variar.  

— Queria tomar um sorvete — digo, deitando o corpo no chão, tentando fugir do calor que fazia no Maranhão. — Quanto tempo ele vai demorar?

 

De ano em ano, meu pai vem fazer uma visita. É sempre um alívio muito grande pra mim quando ele chega. Sinto-me mais feliz. Minha mãe sempre foi receosa comigo para abordar esse assunto, mas, apesar de tudo, sei que eles tiveram um romance lindo. No fim das contas tenho pais normais, embora distantes. Também sei que não posso andar de mãos dadas com os dois, mas não fico ressentida por isso. Tento ser uma moça madura, como a vovó sempre me orienta.

 

De repente, o telefone toca. Levanto-me do chão rápido e corro para atender.

 

— Alô? Sim, tá tudo bem. Eu sei, eu sei. Ai mãe, você se preocupa demais. Está tudo bem. Já tenho 12 anos, posso ficar algumas horas sem você, não vou morrer. Tá bom. Tchau. Divirta-se com os autógrafos.

 

— Era ela? — não percebi papai entrando pela porta, sorrateiro. Sempre aparecia e sumia assim, de repente.

 

— Sim — fingi não estar surpresa, nem alegre, mas no fundo estava explodindo de animação com a vinda dele. — Mamãe foi até a livraria autografar mais livros.

 

— E o que ela disse?

 

— O de sempre… “Não saia de casa”. “Tem comida na geladeira”, “não vou demorar” e também “vê se não apronta”.

 

— “Vê se não apronta?” Quanta desconfiança — ele reclamou, entrando para sala. Carregava uma sacola de supermercado e vestia a mesma roupa relaxada de sempre: calça jeans, camisa polo branca com listras horizontais azuis e aquele sorriso sem graça no rosto.

 

— Desconfiança? É lógico. Você já tem ficha suja — Lembrei-o tentando ver o que tinha na sacola.

 

— Ficha suja? Como assim?

 

— Ano passado você me levou no zoológico sem avisar, lembra? A mamãe ficou uma fera naquele dia!

 

— Será que é tão difícil assim confiar no ex-marido? — ele reclamou, olhando pra mim, como se eu pudesse responder qualquer de suas perguntas.

 

— Bom… Você saiu de casa e nunca mais voltou. É difícil confiar em alguém assim.

 

— Eu não escolhi isso! — ele protestou, se defendendo. Me encarou com os olhos cerrados, meio insatisfeito. Pegou a sacola que trazia e jogou no meu colo. Eram potes de sorvete.

 

— Como sabia que eu queria? — fiquei feliz em ver a guloseima.

 

— O de morango é meu — ele falou, caminhando pela casa.

 

Passou pela sala, ignorando os poucos móveis que tínhamos. Chegou na cozinha, olhando a bancada larga que dividia os cômodos. Abriu as janelas, deixando o Sol entrar e iluminar o mármore da pia. Voltou, abrindo a janela da sala também. Parecia que não respirava ar fresco há muito tempo. Estava um tanto pálido até.

 

Esse jeito espontâneo sempre me deixava intrigada, acho que não puxei muita coisa do meu pai, no fim das contas.

 

— Que pequeno — ele comentou, olhando a varanda através da janela.

 

— É um pouco maior que nossa antiga casa — respondi, dando uma colherada generosa no sorvete de morango.

 

— Eu quase não parava em casa naquela época, então não saberia dizer — ele olhava pro céu, meio nostálgico.

 

Puxei a cadeira mais próxima e me sentei. A TV mantinha-se desligada num canto da sala, empoeirada, ele não parava de encará-la.

 

— Não é bom que a TV fique contra a janela dessa forma — ele tentou puxar assunto, mas eu não estava interessada em perder tempo falando da televisão.

— E agora, depois de tanto tempo, o que anda fazendo? Tem comido direito? — resolvi perguntar, curiosa, cortando o assunto. Estava fazendo o papel dele, no fim.

 

— Você fala igualzinha a sua mãe! — ele reclamou, fazendo careta.

 

— Faz sentido, já que sou filha dela.

 

Ele voltou para a janela, observando o Sol. Uma brisa quente soprava na nossa direção. Seu semblante era meio enigmático.

 

— Depois que você se acostuma — ele resolveu falar — qualquer lugar é bom pra se morar. De verdade.

 

— Sei. Mas não se sente sozinho?

 

— Sim, é bastante solitário.

 

— É perto? — insisto em perguntar.

 

— Não, na verdade é muito longe… — ele parecia refletir.

 

Termino o sorvete, levantando-me da mesa e indo até a cozinha. Não ter meu pai no meu dia a dia deixava-me um pouco triste, admito, mas saber que, ao menos uma vez no ano eu poderia vê-lo me tranquilizava.

 

— O que acha de eu ir te visitar na próxima? Assim não precisa vir aqui.

 

— Nem pensar! — ele se precipitou, me olhando emburrado.

 

— Hã? Por quê?

 

— Nem pensar, de jeito nenhum. Não estou pronto para que me visite.

 

— Chato — reclamo, insatisfeita. — O seu sorvete de morango estava ótimo também! — revelo, mostrando o pote vazio.

 

Ele fez uma cara zangada, suspirando em seguida. Pegou o sorvete restante — de tapioca — e guardou na geladeira. Da última vez que nos vemos, no zoológico, também comi seu sorvete. Estava virando tradição.  

 

Ficamos nos encarando por um tempo. Seus olhos castanhos, pele branca, cabelos sempre curtinhos. Um sorriso abestalhado na cara. Era tão simples e carente de detalhes marcantes, tão diferente da mamãe.

 

— Está deixando seu cabelo crescer? Estão maiores se comparados ao ano passado — ele reparou.

 

— Vou deixar grandes como os da mamãe — sorri, ajeitando a maria chiquinha que gostava de usar. Meus olhos eram como os do meu pai, mas os cabelos como o da mamãe. Na verdade sou muito mais parecida com ela do que com ele, tanto em aparência, tanto em personalidade. Talvez seja por ser menina, talvez pela ausência dele, não sei.

 

Nossa relação podia ser tão natural às vezes que parecia que estávamos sempre juntos. O que, no fim das contas, era a mais pura verdade. Estávamos juntos em pensamento e sentimento. Sempre. Por maior que possa haver distância, não há nada que afaste o sentimento de um pai para um filho e de um filho para o pai. Nem mesmo a morte.

 

— Pai, me ajude com as roupas, preciso pendurá-las no varal, mas não alcanço.

 

— Pendurar roupas? Até isso você já faz?

 

— Qual o problema?

 

— Nenhum — ele me olhava com curiosidade. — Você já é bem responsável pra sua idade, não acha?

 

— Vai ajudar ou não? Já que mamãe disse que dessa vez você não ia poder sair de casa, acho que não tem escolha — Argumentei.

 

Ele me olhou emburrado de novo, mas cedeu, mostrando um sorriso animador. Caminhei até a área de serviço, mais atrás, passando pela cozinha. Era pequena, cabendo apenas o tanque e a máquina de lavar. Ele veio logo atrás.

 

— Mamãe me disse que você não ajudava quase nada em casa antigamente.

 

— Ér… — ele gaguejou, sem graça.

 

— E também que estava sempre viajando para Portugal, à trabalho, nunca parava em casa — peguei as roupas e coloquei todas num balde, para levar até a varanda e pendurar no varal. — Se eu contar a ela que você está me ajudando agora com as roupas, talvez ela mude de opinião sobre você.

 

— Como se isso fosse adiantar alguma coisa — ele deu de ombros, me levantando pela cintura até as cordas do varal.

 

— Seu frouxo! — reclamei, mal educada.

 

— Nossa, você conhece palavras duras, hein?

 

— E você não tem jeito!

 

— Está falando igualzinho a sua mãe — ele suspirou, pendurando algumas das roupas também, parecia ainda mais nostálgico ao lembrar dela, quase choroso.

 

Passar algum tempo com meu pai, por mais comum que fosse, é especial para mim. Sempre senti muita falta dele. Uma saudade inexplicável e dolorosa, que aperta o peito e me deixa muito triste. Ter que lidar com a ausência dele é difícil. Crescer sozinha, sem esse amor paterno que sinto dele todos os dias, nos pequenos gestos, como trazer sorvete, ou fazer essa cara emburrada de sempre, é algo que ainda estou me acostumando.

 

Ter a oportunidade de passar a tarde inteira juntos era algo único e especial, mas nem todo o tempo do mundo parecia o bastante pra mim a essa altura. Por mais que a gente se abraçasse agora, e sorrisse um pro outro, e comesse sorvete juntos… O amor que meu pai me dava e a alegria que eu sentia por estar ao seu lado mais uma vez, era impagável. E insubstituível.

 

Depois de pendurar todas as roupas, sentamos no sofá e ligamos a TV. Comumente a TV quase não ficava ligada, eu não tinha o hábito de assistir, já que estava sempre na escola ou na casa da vovó enquanto mamãe trabalhava. Papai, por outro lado, sempre gostou de investir algumas horas na frente da televisão. Um hábito...

 

Com o passar do tempo, acabei adormecendo ao lado dele, acordando só quando ele já estava para ir embora.

 

— Podia ter me acordado — reclamei, vendo-o calçar os sapatos que havia tirado.

 

— Não se incomode. Criança tem mais é que dormir.

 

— Fique mais um pouco, por favor.

 

— Desculpe, Lúcia — ele colocou as mãos na minha cabeça. — Preciso ir. Acabou nosso tempo.

 

— Pai…

 

— Até ano que vem — ele decidiu, abrindo a porta. — Aproveite e diga a Zelir... que sinto muito não ter voltado naquele dia. Peça perdão, por mim.   

 

Essa sensação corrosiva.

 

Essa tristeza voltando.

 

Que insatisfação.

 

Por que ele precisa ir embora assim, sempre?

 

— Estou de volta — mamãe apareceu quando ele se foi, como combinado.

— Bem vinda de volta, mãe.

 

Ela chegou deixando a bolsa em cima da mesa, desprendendo o cabelo e ficando mais à vontade. Era sempre bonita e cheirosa, como papai gostava.

 

— Como ficou? Tudo bem? Estava preocupada.

 

— Sim. O que poderia acontecer de ruim? — falei, fechando a porta da casa.

 

— Não sei. Ano passado a senhorita foi ao zoológico sozinha. Fiquei preocupada! — ela desabafou, reparando no pote de sorvete de morango que esqueci na bancada da pia. — Você comprou sorvete? Eu não disse para não sair? — em seguida olhou as roupas no varal. — Não lembro de ter colocado essas roupas antes de sair.

 

— Foi eu!

 

— Mas você nem alcança o varal, Lúcia.

 

— Papai me ajudou. E trouxe os sorvetes.

 

Vi minha mãe suspirar. Meio amargurada. Mordeu os lábios. Apertou os punhos. Quando o assunto era papai, ela sempre ficava assim, triste, abalada. Eu sempre senti muito.

 

Ela abriu a geladeira para pegar água. Se deparou com o sorvete que estava lá, parecia em choque.

 

— Onde conseguiu isso? — ela mostrou o sorvete de tapioca. Era o sabor mais exótico e difícil de encontrar por ali. — É meu preferido, como sabia?

 

— Papai que trouxe.

 

— Seu pai não está mais aqui — ela segurou o choro.

 

Tentei não me comover também. Ser uma moça madura, como a vovó sempre dizia.

 

— Todos os anos, no dia 2 de novemb…

 

— Não, Lúcia. Você… — mamãe me abraçou, desabando em prantos. — Você sabe que seu pai...

 

— Morreu? Isso não importa pra sentir ele perto de mim — segurei o choro.

 

— Essa fantasia precisa acabar, Lúcia. Você sabe do acidente, sabe que ele não vai voltar mais.

 

— Mas ele estava comigo. Ele sempre fica comigo, quando sonho, ou quando estou sozinha, ou quando me leva ao zoológico, ou quando trás sorvetes… — o choro me impedia de continuar.

 

— Não filha. Isso tudo é coisa da sua cabeça — ela me olhou nos olhos, parecia atormentada. Segurou meu rosto, ainda chorando. — Olhe bem, por favor…

 

O som do vento forte batendo as janelas abertas foi o que me despertou. Estava quase a chover. Não estava um dia ensolarado, então?

 

— Lúcia, por favor... Preste atenção — minha mãe mostrou o banco que eu usei para pendurar as roupas sem ajuda.

 

— Mas mãe… Ele estava aqui, vimos TV juntos!

 

— Não, Lúcia. Não! A nossa TV está quebrada há meses. Está empoeirada… O seu pai morreu há 4 anos, querida.

 

Eu não estava chocada com as palavras de mamãe, na verdade me sentia mais confusa do que triste. No fundo, meu coração ardia. A ausência do meu pai… A sua morte… No fim das contas, nunca aceitei bem isso.

 

— Filha, o que quer que esteja sentindo, eu quero que saiba que Paulo… — ela suspirou. — O seu pai te amava.

 

Ventou forte de novo, como um presságio. Senti um calafrio, um desconforto.

 

— Mãe… — não consegui pensar no que dizer. As lágrimas me entorpeciam. Me deixavam abalada. — Eu sei que papai ainda está aqui, comigo.

 

— Sim, ele sempre vai estar. Eu sei. Mas...

 

Ela me abraçou, forte. Um abraço que há muito não sentia. Poderia ficar horas sentindo seu perfume e seu corpo abafando o meu choro. Eu não entendia todos os meus sentimentos e emoções ainda, sequer sabia porque estava chorando, exatamente. Mas o calor da mamãe me fazia bem. Me deixava mais tranquila, de alguma forma. Isso tudo, porém, sumiu com um espanto quando a TV ligou, sozinha.

 

Os olhos da mamãe refletiam um temor que eu nunca tinha visto. O chiado da televisão era como um grunhido estranho. Como um choro distante. Olhei para ela como se provasse meu ponto, como se pudesse provar que papai estava ali. Ela, no lugar disso, puxou a TV da tomada, limpando as lágrimas.

 

— Filha, se arruma, vamos dormir na vovó hoje, tá legal?

 

Fui direto para o meu quarto, sem esperar uma segunda ordem.

 

— Lúcia, espera — mamãe me chamou.

 

— O que foi?

 

— Amo você.

 

— Eu também. Amo vocês duas.






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Notas finais do capítulo

Dia dois de novembro é o dia de finados.

Obrigado por ler. Até mais e tudo de bom sempre. :D



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