Redenção escrita por truthbullet


Capítulo 1
Capítulo 1 — Rosa entre Pedras


Notas iniciais do capítulo

Mais um desafio! Dessa vez, esse consiste de uma shortfic de cinco capítulos, que devem ser postado em todos os domingos de dezembro a partir desse.

Palavras usadas:

EPULÁRIO - substantivo masculino
ant. indivíduo que participava das épulas; conviva, comensal.

SÚBITAS - substantivo feminino plural
maneiras inesperadas e repentinas.

Boa leitura!



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"Cento e noventa e dois..."

"Cento e noventa e três..."

"Cento e noventa e quatro..."

 

Naquele número, ela ouviu um suspiro. Brandiu a lâmina, e sangue afogou seu articulador antes de completá-lo.


"Cento e noventa e cinco..."
"Cento e noventa e seis..."
"Cento e noventa e sete..."


Pouco a pouco, qualquer mínimo sinal de respiração morria, rapidamente abafados pelo salto de sua bota. O cobre estava cego, com golpes não tão precisos quanto o ideal — afinal, estava apenas treinando —, então alguns dos mortos demoraram mais tempo para encontrar seu destino.

 

Era o que eles mereciam, repetia, num mantra mental. Os porcos sujos e traiçoeiros, mereciam algo pior que uma Ceifa tão piedosa.


"Cento e noventa e oito...
Cento e noventa e nove...
... Duzentos..."


Uma mão trêmula tentou agarrar seu tornozelo. Foi decepada. Sangue esguichou, colorindo mais uma parte de seus trajes de vermelho-escuro.


"... Duzentos e um.
Todos os alvos foram eliminados com sucesso."

Com a conclusão de sua missão, embainhou a lâmina eivada, examinando seus arredores uma última vez, apenas para ter certeza. Tudo o que viu foram cadáveres em massa, esparramados pelo chão dos corredores apertados. Sangue inundava o concreto do chão e a camada de aço que cobria as paredes. Não havia mais nenhum ofego nem clamor por piedade.

 

As vozes já tinham desaparecido de sua mente, dispensáveis como eram. Somente uma marca foi feita por eles; um corte vertical, bem no antebraço esquerdo, cujo sangramento demorou a cessar. Mais uma cicatriz, também, tão trivial quanto todas as outras.

 

Fez seu trajeto pelo mar de corpos, pisoteando feridas, olhos, narizes, dentes e entranhas expostas, resultado da resiliência dos corruptos em se renderem. Alguns se recusavam a morrer, até mesmo com facas cravadas no peito, então o cobre abria-lhe as tripas e as disseminava pelo chão.

 

Eventualmente, sua marcha da morte alcançou a entrada. O sangue fazia um gradiente, indo da concentração de cadáveres até alguns corredores antes dos portões principais. Tudo o que precisou fazer para não ser pega de cara foi desligar o disjuntor responsável pelos alarmes de entrada; um guarda foi eletrocutado no processo. Ou seja, sem grandes consequências.

 

Quando ia girar a maçaneta adornada, ouviu um som que lhe trouxe calafrios.

 

Choro.

 

Pranto próximo e feminino, entrecortado por soluços e pânico. De repente, a assassina sentiu um nó se formar, firme, em seu estômago, a ponto de formar um laço de fita. As lágrimas súbitas, produzidas por uma voz que nunca ouvira na vida, só podiam vir de um fantasma.

 

Mais um.

 

Ponderou por um instante, e então, deu as costas aos portões. Demoraria mais algumas horas até sentirem falta de tanta gente, considerando a baixa produção da época. Não demoraria nem dez minutos para sair do território, seguindo o atalho por onde entrou. Tinha tempo suficiente.

 

Seguiu o choro; a ameaça de seus passos não o pararam. Foi levada até uma porta entreaberta, bem onde o gradiente começava a se tornar verdadeiramente rubro.

 

Graças à sua contagem, não se preocupou em checar as salas antes, certa de que as ruindades já tinham morrido. Entretanto, não estivera atenta para outras pessoas em geral.

 

Abriu o resto da porta metálica. A movimentação fez com que os sensores no teto se ativassem, ligando as luzes.

 

De início, não viu nada além de uma silhueta pequena e frágil. Demorou, muito mais que o normal, para raciocinar o que seus olhos captaram. Tinha uma garota loira acuada no canto da sala.

 

Uma garota nua. Ferida. Sangrando.

 

Naquele momento, prendeu o ar. Forçou-se para fora de seu congelamento e cruzou a sala, estupefata, até se ver agachada diante da coisinha, puxando-lhe os dedos que cobriam seu rosto.

 

Viu olhos azuis, inchados e rosados por lágrimas, e um rosto magro e maltratado, tão apavorado que não comunicava absolutamente nada além disso.

 

De súbito, suas pálpebras penderam, e ela fechou os olhos.

 

Segurou-a pelos braços, atônita. O corpo tinha amolecido, mas ainda respirava. Invadida pelo alívio irracional de ser apenas um desmaio, investigou seu corpo.

 

No choque inicial, tinha se precipitado quanto às lesões. Nada sangrava, por já ter se fechado, mas a poça ao redor da menina tinha chegado perto do ponto onde não tinha mais volta. Entretanto, pelo pior lado, avistou muitos outros ferimentos, não necessariamente sangrados ou recém feitos; queimaduras de cigarro, marcas de dentes, hematomas de agarrões e chupões.

 

Teve que abaixar o olhar e respirar fundo. Devia ter feito pior, pensou, com o âmago afundando em óleo. Devia tê-los queimado vivos. Jogado aos cães. Executado à forma lingchi¹. Cães miseráveis…

 

Um canto de sua mente lembrou-a da missão, e ela pôs-se em pé, puxando a capa atrás de si e a jogando por cima do corpo, como uma coberta. Logo em seguida, ajeitou-a em seus braços, tirando um segundo para refletir, e então colocou-a nas próprias costas.

 

Retornou ao lado de fora. Sua mente tinha entrado em turbilhão cada vez maior. Algum epulário manteve aquela garota ali, e deixou que fizesse sabe-se lá quais coisas com ela.

 

Sabia quais coisas, pois sua mente reconhecida qualquer ferimento que surgisse em sua visão, mas só de pensar nisso, sentia o sangue ferver. Uma garota inocente possivelmente esteve sendo torturada naquele lugar, e não foi comunicada de nada.

 

Passou pelo verde do campo, até dobrar no meio da selva e escalar uma das árvores, como se o peso da resgatada se equivalesse a nada. Era a sua árvore — marcada com um 阿² —, aquela que marcou especialmente para que pudesse reutilizar seu atalho. Naquele momento, ficou extremamente grata por tê-lo feito, já que  Caminhou pelo longo galho da planta anciã, alcançando a cerca do lado de fora num pulo e passando o corpo por cima dela com facilidade.

 

Então, pousou no chão como um sapo. Um alarme conhecido tocou, na fronteira do território.

 

Não foi inesperado; não tinha sido cuidadosa como o ideal. Porém, se alguém decidisse lutar para vingar aqueles homens e impedi-la de levar a pobre garota à segurança, mereceria morrer, também.

 

A assassina puxou sua espada. E correu.


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Notas finais do capítulo

¹ - "Lingchi" é um método chinês de execução, onde o prisioneiro tem a pele totalmente retirada enquanto ainda vivo. É bem desagradável.

² - "阿" é um kanji pra letra "A".



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