komorebi escrita por socordia


Capítulo 8
Oito.


Notas iniciais do capítulo

pois eu DISSE que vou terminar essa história custe o que custar.

menção a racismo e violência doméstica no primeiro trecho - se você acha melhor pular essa parte, é só começar a ler depois da primeira quebra de texto, marcada pelos asteriscos.



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Lily é pega de surpresa pelo interrogatório dos pais, e mesmo de Petunia e Vernon, enquanto assa seus biscoitos de Natal. Ela está confeitando os biscoitos de gengibre de Alice quando seu celular exclama várias mensagens, cortando o som da música clássica que Lily ouve enquanto cozinha, mas ela o ignora. A pintura que tem que fazer nos biscoitos é delicada, porque a cobertura endurece rápido no inverno, e demanda toda sua atenção.

Ela nem percebe quando Petunia pega o aparelho e acende a tela, e certamente não vê o nariz franzido da irmã mais velha ao investigar a tela de bloqueio de Lily.

— Quem é esse tal de James que vive te mandando mensagens, Lily? — ela pergunta, com um tom definitivamente desgostoso.

Lily levanta o olhar do seu trabalho e pisca, desorientada.

— James? — interrompe seu pai, olhando por cima do The Sun em sua cadeira estofada surrada. — Esse não é aquele garoto que tem aparecido nas suas fotos?

A forma pela qual o pai de Lily fala as palavras aquele garoto faz com que um arrepio de asco percorra a espinha de Lily. Ela solta o saco de confeitar em cima do balcão e respira fundo, sentindo seu estômago embrulhar.

Seus pais nunca foram de ficar checando obsessivamente suas redes sociais. Lily consegue sentir o cheiro das artimanhas de Petunia de longe, e fuzila a irmã com o olhar. Petunia só soergue uma das sobrancelhas em resposta, oferecendo o celular para Lily pela ponta dos dedos, como se ele tivesse pegado um vírus que pode ser transmitido aos humanos apenas pelo toque.

— Ele é só um amigo — Lily diz, em tom cauteloso, apertando o botão de pause no Spotify e guardando o celular no bolso.

— Na mensagem ele perguntava quando você tá chegando em Londres — provoca Petunia, navegando pelo próprio celular com uma unha perigosamente afiada. — Não parece coisa só de amigo não, viu.

— Petunia... — Lily adverte, apertando os lábios um contra o outro numa linha fina.

— É o imigrante, não é, Tuney? — quer saber Vernon, levantando do sofá onde estava esparramado abraçando uma cerveja e indo sentar-se no banco ao lado da noiva, em frente ao balcão, encarando Lily. — Achei que Hogwarts fosse melhor frequentada.

— Claramente não é a mesma universidade que já foi um dia... — comenta Petunia num tom casual. Lily trinca a mandíbula.

— James é inglês. — É a resposta seca que Lily dá. — E já disse. Ele é um amigo. Não acredito que vocês vão continuar a monitorar minhas amizades.

— A gente só o quer o melhor pra você, Lil — rebate Petunia, fazendo-se de ofendida. — Você fica a maior parte do ano fora e a gente fica sem saber o quê você fica fazendo lá na Escócia...

Se você se importasse em responder minhas mensagens, Lily pensa furiosamente, talvez tivesse algum direito de me interrogar, Petunia.

O Sr. Evans faz um som de desagrado de sua poltrona, alcançando o controle remoto e mudando de canais vagarosamente, até que encontra uma reprise de um jogo de futebol do campeonato português.

— Você tem que tomar mais cuidado com as suas companhias, Lily. Fica se misturando com essa gente que deveria voltar da onde veio ao invés de ficar ocupando espaço no nosso país. — Ele repreende, ao mesmo tempo em que nem se dignifica a olhar para a filha. — Não te criei pra ficar se engraçando com...

Lily sente o sangue ferver e os tons de vermelho ao seu redor intensificarem-se.

— Chega. — Sua voz está fria como a neve que cai do lado de fora. — Não vim lá da Escócia pra ouvir vocês criticando minhas escolhas de amizade. — Ela trinca a mandíbula quando o Sr. Evans volta o olhar para ela, de sobrancelha erguida. — E já deu essa história super preconceituosa, ignorante e idiota...

— Lily! — exclama horrorizada a Sra. Evans. — Isso é jeito de falar com o seu pai?

— Ué, se ele não mede palavras pra falar comigo sobre os meus amigos!

— Mas você tá abusada, né, garota? — rosna o Sr. Evans, erguendo-se da poltrona, no alto de seu mais de metro e noventa de altura. — Só porque tá estudando naquele lugar de gente rica tá se achando melhor que a sua família, é?

Lily ri, arremessando o pano de prato que estava em seu ombro num dos bancos altos ao lado de Vernon. Petunia interfere, colocando-se entre a irmã e o pai, e puxando Lily pelo braço para fora da cozinha antes que ela cuspa as palavras incandescentes que ia arremessar no rosto do Sr. Evans. Mas Lily consegue fuzilar o pai com o olhar ao mesmo tempo em que observa a mãe botar as mãos nos ombros do marido, arrulhando qualquer coisa no ouvido dele.

Mesmo que não tivesse começado seu processo de colorização, Lily tem certeza que estaria vendo tudo em febris tons de vermelho, como está agora. Petunia aperta seu braço com força, empurrando-a na direção do quarto, e a raiva cresce tanto no peito de Lily que ela sente-se grata pela dor que irradia em seu braço, porque pelo menos pode se concentrar em alguma coisa que não gritar com seus pais. Petunia praticamente arremessa Lily para dentro do quarto e bate a porta atrás de si com um estrondo.

— Você enlouqueceu? — ela pergunta, de olhos arregalados, e alguma coisa em Lily congela. Toda a cor foi drenada do rosto de Petunia, e ela está tremendo tanto que tem que se sentar na cama que Lily não arrumou desde que chegou. — Você não pode provocar o pai desse jeito — ela sibila, buscando Lily com o olhar e com sua voz se quebrando em mil pedaços. — Não quando você não tá aqui pra aturar as consequências.

— Tuney... — Lily tenta, sentando-se ao lado da irmã e tentando alcançar as mãos dela com as suas. Petunia foge do gesto como se Lily estivesse pegando fogo, e Lily deixa as mãos caírem em seu colo. — Desculpa, eu nem pensei. Ele só falou aquelas coisas horrorosas da Marls e do James e eu...

— Como sempre, pensando nos seus amigos de Hogwarts antes de mim! Que sou sua irmã!

— Ah, Tuney, não vem com essa! — rebate Lily, odiando perceber que seus olhos enchem-se de lágrimas e que sua garganta se fecha nas últimas sílabas. — Eu tô lá sozinha, você queria o quê, que eu não tivesse amigos? Que ficasse trancada no meu quarto o tempo todo? Pelo menos eu respondo as suas mensagens.

— É o mínimo que você tem que fazer! — vocifera a outra, pondo-se de pé e abrindo a porta do quarto de Lily com tanta força que a parede até treme. — Depois de me abandonar aqui!

E Petunia vai embora, deixando a porta bater atrás de si novamente. Lily não a segue — ela pega um dos seus travesseiros e afunda o rosto nele, gritando até que sua garganta parece estar em carne viva. Os soluços fazem todo o corpo de Lily sacudir em espasmos dolorosos, e toda vez que ela acha que terminou de chorar, lembra-se do rosto de Petunia, assustado e furioso, e volta a chorar desconsolada. Como as duas chegaram nesse ponto? Sempre protegeram uma a outra do temperamento descompensado do Sr. Evans, fugindo de casa quando ele voltava bêbado, dando respostas modestas e baixas, ficando fora do caminho e aquiescendo aos seus pedidos descabidos.

Mas Lily conseguiu se libertar, com a bolsa de Hogwarts. E Petunia... ficou em casa, fazendo cursos de formação complementar e ressentindo-se de Lily. Ah, Tuney..., Lily lamenta, chorosa, apertando os olhos com as palmas das mãos até pontos de luz dançarem em suas pálpebras fechadas. Lily lembra-se dos telefonemas secos em que Petunia respondia suas perguntas com monossílabos desinteressados e sempre parecia apressada para passar o telefone para um dos pais, e em como ficou cada vez mais difícil falar com a irmã depois que Petunia conheceu Vernon.

Lily não gosta de Vernon, mas pelo menos ele vai conseguir tirar sua irmã dessa casa horrorosa.

A própria Lily gostaria de ter motivos para nunca mais pisar aqui.

É aí que ela toma uma decisão. A casa está silenciosa ao seu redor — Petunia deve ter saído com o noivo, e os pais delas já devem ter se recolhido. Lily pega o celular e confere a hora; é ridiculamente tarde para estar se telefonando para qualquer pessoa, mas ela sabe que Alice vai entender. Depois de assegurar muitas vezes à amiga que sim, está bem apesar de ter passado as últimas horas chorando, Lily desliga e avalia seu pequeno quarto com critério.

A grande maioria das suas coisas já está em Hogwarts. Aqui ela só tem alguns pares de roupas que não farão muita falta, uns livros, seus pôsteres velhos e algumas fotos — ela arruma tudo o que acha que será útil na mala pequena que trouxe do dormitório de maneira frenética. Não esquece de juntar seus patins de gelo a pilha de malas, agradecendo a si mesma por já ter levado os patins de rodas para Hogwarts há dois verões.

Lily senta-se em sua escrivaninha e escreve duas cartas. Seus dedos estão tremendo um pouco, e suas lágrimas mancham o papel aqui e ali, mas ela controla a respiração e força as palavras a saírem de dentro de si. A primeira carta, ela endereça aos pais e fixa na geladeira depois de pedir seu Uber e estar saindo de casa. A segunda, ela endereça para Petunia e enfia debaixo da porta trancada do quarto da irmã.

Os biscoitos que estava confeitando ainda estão incompletos em cima do balcão da cozinha. Lily sente-se terrivelmente culpada, mas sabe que seus amigos vão perdoá-la por deixar seus presentes de Natal para trás.

Lily aperta a chave da porta da frente contra os dedos com tanta força que os dentes de metal marcam suas mãos. Ela não consegue reunir a coragem para botar as chaves na caixa de correio, e escolhe levá-las consigo. Lily cumprimenta o motorista do Uber com voz miúda e permanece em silêncio durante todo o caminho que fazem até a estação de trem.

***

Deus abençoe Londres e seus trens que sempre operam no horário. O dia está raiando, uma luz fraca passando pelas janelas forte o suficiente para incomodar os olhos fechados de Lily, que acaba despertando sem querer. Sua cabeça está latejando tanto que Lily acha que ela pode sair flutuando para além do seu pescoço a qualquer momento, e ela geme em resposta a claridade, esfregando os olhos com delicadeza.

O trem dela é um dos primeiros do dia, e as plataformas de King’s Cross estão movimentadas, sim, mas bem pouco. Os anúncios são espaçados, e é tão cedo e está tão frio que parece que todas as pessoas ao redor de Lily estão no modo de economia de energia, movimentando-se lentamente, falando baixo, ocupando-se com seus copos de papel fumegantes cheios de chá.

Lily mataria por uma boa xícara de Earl Grey com leite, nesse momento. Mas suas duas mãos estão ocupadas, e ela acha que quer chorar até dormir mais — e, para isso, precisa chegar em casa.

Ou melhor, no apartamento de Frank. Em Belgravia, um dos bairros mais ricos de Londres. Quando Alice convidou os amigos para passarem o Ano Novo em Londres com eles, Lily aceitou porque queria fugir da família e porque, embora só conheça Alice há poucos meses, já morreria por ela. E, depois da briga com os pais e Petunia, seu único pensamento era em sair dali — ela tinha se esquecido que teria que lidar com... gente absurdamente rica. E as coisas absurdas que elas fazem, sem sequer perceber que estão sendo absurdas. Sendo sincera consigo mesma, Lily consegue admitir que esquece em grande parte do tempo que Frank é herdeiro de uma das famílias mais importantes de Singapura, porque o mais longe que ela mesma já viajou em toda a sua vida foi para Dublin, e é difícil conceber altos níveis de luxo.

Agora ela vai ter alguma experiência, porque o carro do qual salta Alice, agasalhada com um sobretudo felpudo que alcança quase seus pés, parece custar a hipoteca da casa suburbana dos Evans. Lily engole em seco enquanto acena ao reconhecer a amiga e o namorado, que está saindo do carro e dirigindo-se ao porta-malas. Alice olha seriamente para Lily por um segundo, mas logo abre um grande sorriso e puxa a outra para um abraço apertado, ficando na ponta dos pés para conseguir passar os braços pelo pescoço de Lily, que é bem mais alta que Alice.

— Feliz Natal, Lil! — Ela brada, animadamente, sacudindo Lily de um lado para o outro e arrancando uma risada entremeada por lágrimas da garota. — Tô tão feliz de te ter aqui — cochicha Alice. — Tamos tendo problemas com a família do Frank, vai ser muito bom ter você do meu lado.

Lily respira fundo, o som quebradiço e estilhaçando-se conforme passa por seus pulmões. Mas é bom saber que não é apenas ela que tem que lidar com dramas familiares e que pode se preocupar com Alice e esquecer da sua discussão com os pais e a irmã por enquanto.

— Feliz Natal, Ali. — As duas dão-se os braços e caminham na direção do enorme carro brilhante, com Frank apertando o passo para pegar as malas de Lily. — Feliz Natal, Frank. Obrigada pelo convite.

— É um prazer receber você e o Remus, Lil — ele assegura, sorrindo e fazendo questão de acondicionar as bagagens de Lily no porta-malas ele mesmo. — Londres é muito... solitária, me parece.

— É o mal das cidades grandes, acho — opina Alice, beijando o namorado num selinho rápido. — Quando não se cresceu na cidade em questão, pelo menos.

— Tô feliz de estar aqui com vocês. Só não consegui trazer seus biscoitos, o que é uma pena. Eles estavam muito bonitinhos, me sinto péssima de não ter nada pra vocês.

— Tudo bem, é só fazer uma lista que o Frank compra todos os ingredientes pra você.

Alice dá uma piscadela, Frank rola os olhos e Lily ri.

— Fico feliz em pagar pela minha hospedagem cozinhando pra vocês.

— Droga, você descobriu o motivo por termos te convidado! — Alice resmunga, em tom de brincadeira, abrindo a porta para Lily entrar no carro. — Não tô falando sério, tá, Lil? — Ela se apressa a adicionar, preocupada. — Se você quiser ficar só assistindo filmes de Natal pelos próximos dias eu não apenas te apoio como aproveito pra informar que já tenho até uma lista de quais podemos ver.

Lily enxuga as lágrimas de emoção que insistem em sair pelo canto dos seus olhos com a ponta dos dedos, o mais discretamente possível. Alice toma as rédeas da conversa, conseguindo ler sem dificuldades o humor um tanto taciturno de Lily, falando sobre os planos para o fim de ano e interagindo bem mais com Frank do que com Lily. E, por isso, Lily é grata: o som da voz de sua amiga é um alento para seu coração machucado, mas saber que não precisa participar ativamente da conversa também é um alívio. Alice e Frank conversam sobre o prédio em que estão morando, informando Lily de que todas as amenidades — como a academia, a piscina aquecida e a biblioteca — estão à disposição dela. Lily agradece a preocupação, e logo estão discutindo o especial de Natal de Doctor Who.

O tempo parece voar e logo Frank está digitando a senha da garagem, e manobrando o carro para o subsolo de um prédio com colunas clássicas e ar refinado. Tudo é extremamente tecnológico, o que não é surpresa nenhuma para quem quer que conheça Frank — ele é um aficionado por tecnologia, sempre experimentando os novos lançamentos e entrando em debates acalorados sobre certas marcas de eletrônicos. Pegando as malas de Lily, eles se dirigem ao elevador da garagem: Frank informa que, para chegarem no apartamento, devem digitar a senha ou serem liberados pelo porteiro.

— É um apartamento por andar — explica, quando todos os três estão acomodados na espaçosa caixa de metal. — O elevador já abre direto pro nosso hall de entrada.

Lily acena em concordância com a cabeça porque está momentaneamente sem palavras. Ela sempre dividiu a casa com os pais, e, embora fosse sortuda o bastante para ter seu próprio quarto, tem ciência de que ele é pouco mais que um armário glorificado, com espaço para sua cama, uma cômoda de compensando e uma escrivaninha doada por alguém da igreja que sua avó costumava frequentar, quando era viva. Mudar-se para o alojamento da Grifinória, especialmente para o apartamento mais espaçoso dos RAs, foi um upgrade daqueles na vida de Lily, especialmente considerando-se que em Hogwarts ela tem um banheiro todinho para si.

Quando as portas do elevador abrem-se para o apartamento, Lily só consegue pensar que parecem estar chegando num hotel. É tudo muito espaçoso, com flores em jarros altos, poltronas esguias circulando uma mesa de centro e um aparador bem debaixo do botão para chamar o elevador. Frank pede para que Lily tire os sapatos, o que ela faz sem hesitação, sentindo o chão de pedra artificialmente aquecido debaixo de suas meias. Frank diz que vai guardar as bagagens de Lily no quarto que separaram para ela e Alice entrelaça o braço no da amiga, levando-a para um pequeno tour ao redor do apartamento.

Cinco quartos, todos suítes, além de um escritório, sala de estar, de jantar e de jogos — Lily fica tonta com tanto espaço, e tudo decorado no estilo minimalista e elegante, com obras de arte estrategicamente posicionadas e uma cozinha toda em inox e mármore. Alice termina o tour no quarto de Lily, que tem uma cama enorme de casal com cabeceira acolchoada e cobertas felpudas. Ela aponta que o armário no corredor tem roupas de cama e banho limpas, e que a governanta e a equipe de limpeza estão de recesso, e por isso eles serão responsáveis pela manutenção da casa. Lily diz que não se importa, que está acostumada a cuidar de si e de seu quarto, e Alice sussurra, em tom de confidência:

— Eu também prefiro fazer minhas próprias coisas, mas a família do Frank... — Alice respira fundo e deixa o resto do comentário flutuar pelo ar. — Depois eu te mostro a lavanderia, caso você precise. Mas descansa o tanto que quiser, eu e Frank já demos conta do almoço e você não precisa se preocupar com isso.

— Obrigada, Ali. — Ela abraça a amiga apertado, e Alice beija a bochecha dela. — De verdade.

— Amigos são a família que a gente escolhe, Lil. — Ela sorri e dá de ombros. — Obrigada você por me escolher e por deixar que eu te escolha de volta.

Ela sai antes que Lily consiga responder, fechando a porta com o mais suave click! possível atrás de si. Lily sente um calor espalhar-se por seu peito de forma crescente, até que é sufocado pela culpa aterradora e ela vai preparar um banho para que possa chorar em paz.

Enrolada num roupão felpudo e com olhos inchados de tanto chorar, Lily se joga na cama macia de seu quarto emprestado e dorme um sono sem sonhos. Acorda bastante tempo depois, ao olhar pela janela e ver que a luz mudou. Alcança seu celular, que está desesperadamente avisando-a que a bateria está para acabar e vê que não recebeu nenhuma mensagem ou ligação de Petunia ou dos pais. Remus quer saber se ela chegou bem em Londres, Marls mandou uma foto dela e de Dorcas na Jamaica, James repassou um link do laboratório de animais exóticos de Hogwarts em que pinguins estão nadando despreocupados em seu tanque. Lily conecta o carregador no celular e responde aos três antes de trocar de roupa e sair do quarto.

O cheiro de comida vai ficando cada vez mais forte conforme ela se aproxima da cozinha, e o estômago de Lily se aperta — é só aí que ela percebe que a última vez que comeu foi no dia anterior, e o relógio do seu celular já dizia que se aproximavam das duas da tarde. Frank e Alice estavam terminando de preparar o almoço, e Lily ajudou no que pode, lavando a louça em seguida e aceitando o convite de Alice para verem filmes de Natal.

Lily vai dormir cedo, e é a primeira a acordar. Ela põe a mesa do café, preparando uma xícara forte de chá preto para si e fazendo panquecas. Não demora para Alice aparecer, cabelos em tranças duplas e esfregando os olhos debaixo das lentes dos gigantescos óculos de grau que usa. Elas trocam cumprimentos ainda sonolentos e comem em silêncio, até que Frank aparece, põe uma torrada na boca e anuncia que está indo para a academia do prédio correr um pouco.

— Odeio pessoas matinais — resmunga Alice enquanto torce o nariz, mas em seguida dando um beijo de despedida no namorado. — Obrigada pelo chá, babe.

— O prazer é meu — responde Lily, jogando mais mel por cima das suas panquecas e sentando-se na banqueta ao lado de Alice. — Podíamos assistir alguma coisa enquanto Frank está lá embaixo.

Alice concorda e as duas terminam por cair no sono no meio de cobertores macios no sofá enorme que fica em frente a TV. Elas acordam com o barulho do elevador, e olham ambas grogues para um Frank que está suado e muito mais bem disposto do que é aceitável para o horário. Alice enrola-se num dos cobertores e senta-se com ele enquanto come, e Lily a segue, beliscando alguns biscoitinhos açucarados.

— Acho que vou ao mercado hoje depois do almoço — conjectura Frank, usando sua cafeteira de cápsula Nespresso para preparar um cappuccino. — Vocês querem alguma coisa?

— Eu tava pensando em tentar fazer seus biscoitos de Natal de novo — Lily confessa, sangue correndo para suas bochechas. — Tô me sentindo péssima de ter deixado tudo nos meus pais...

— Não se preocupa com isso, Lily — assegura Frank, dando de ombros e comendo um sanduíche ao mesmo tempo. — A gente entende.

— Só cozinha se você quiser, amiga — pede Alice, pegando as mãos de Lily entre as suas. — A gente só quer que você fique bem.

— Eu amo cozinhar, acho que me faria bem.

— Então tudo bem.  Me dá a lista de ingredientes que eu compro quando sair.

— Tudo bem. Vou pegar o dinheiro também.

— Que dinheiro o quê, Lily — ralha Frank, bastante sério. — Você é minha convidada e minha amiga. Não se preocupa com dinheiro.

— Mas, Frank-

— Lily, por favor. — A voz dele é estoica, quase severa, e ele prende o olhar de Lily com o seu. Diante da insistência dele, Lily concorda de forma hesitante. — Obrigado. — Ele respira fundo, como se ter sido inflexível dois segundos atrás tivesse sido mais exaustivo do que sua hora e meia na academia. Frank dá a última mordida em seu sanduíche e lava as mãos na pia da cozinha. — Vou tomar banho.

Quando ele sumiu de vista, Lily suspira alto.

— Não fica assim, Lily. O Frank só quer ser gentil. E o dinheiro não vai fazer falta pra ele, acredita em mim. — Alice ajeita o cobertor nos ombros antes de continuar. — Ele sempre foi assim, e ainda era pior quando a gente começou a namorar. Não me deixava pagar nada, me fazia surpresas exorbitantes... É só o jeito dele de mostrar afeição. Se você insistir ele vai ficar ofendido.

— Como você conseguiu estabelecer limites com ele e essa vontade de gastar dinheiro?

— Conversando muito. E terapia, quando a gente saiu de Singapura. A minha família não tem dinheiro, e de vez em quando a gente ainda discute um pouco sobre isso, mas ele tá ficando melhor em respeitar os meus limites. E eu tô ficando melhor em enxergar dinheiro... diferente. — Alice hesita, escolhendo com cuidado as palavras. — Pelo menos pra pessoas como o Frank e o Jay, dinheiro não tem o mesmo peso ou significado do que pra gente.

Lily apoia os queixos nas mãos e os cotovelos no balcão da cozinha.

— Eu não quero que o Frank pense que eu tô me aproveitando dele.

Alice ri, mas é um riso seco e sem humor. Lily olha para a amiga, confusa.

— Desculpa, Lil. Mas esse é exatamente o problema que tenho com a família dele...

E então Alice desembesta a falar sobre os Leong, a família podre de rica de Frank, que tem propriedades imobiliárias por toda Singapura — e por todo o mundo. Esse apartamento mesmo, por exemplo, é de propriedade real de Frank. Lily acha um tanto inconcebível uma pessoa com menos de trinta anos ser proprietária de bens imóveis, mas cá está ela, dormindo no quarto mais luxuoso da sua vida dentro do que, aparentemente, é o apartamento menos ostentoso de Frank.

No final das contas, Lily descobre que os pais de Frank não gostam de Alice porque os dois não se colorizaram e eles acham que ela está tirando vantagem do filho. Eles até se separaram por um tempo, porque Alice não aguentava mais a perseguição e o assédio por parte dos pais de Frank. Foi por isso mesmo que ela decidiu continuar os estudos na Europa, longe dos Leong — mas não esperava que Frank fosse segui-la, renunciando às pressões da família e empenhado em reconquistá-la.

É tudo tão romântico que Lily não consegue parar de sorrir e seus dentes quase doem tamanha a doçura da história e das feições de Alice contando sobre os obstáculos que ela e Frank tiveram que enfrentar (e ainda enfrentam) para ficarem juntos. Os pais e irmãos mais novos de Frank estão atualmente em Londres, aproveitando o final de ano e tentando se reaproximar do filho que os deixou há alguns anos, e isso está sendo extremamente estressante. Eles até parecem serem mais receptivos com Alice, mas ela mostra para Lily as mensagens de texto extremamente passivo-agressivas que a Sra. Leong enviou ao chamarem os dois para um jantar.

Em conclusão, as duas estão até o pescoço com problemas familiares e acabam usando uma a outra como suporte. Lily ouve Alice de bom grado, interrompendo-a de vez em quando para pedir esclarecimentos ou ficar horrorizada, e Alice dá espaço para que Lily desabafe, mas ela prefere focar na amiga, pelo menos por enquanto.

Elas param para preparem o almoço, e Frank sai em seguida, lista de compras anotada de maneira segura no celular. Lily tira um cochilo e é só quando acorda que lembra de conferir o celular.

Nenhuma ligação ou mensagem de nenhum dos Evans. Lily decide arrancar o band-aid e telefona para a casa dos pais. A linha toca algumas vezes mas ninguém atende, e ela consegue o exato mesmo resultado ao tentar o celular de Petunia. Ela responde as mensagens pendentes e sai do quarto, seus pés a levando para a cozinha, onde Lily começa a preparar chá, automaticamente.

Frank chega quando ela está misturando um pouco de leite à sua xícara e ela se apressa para ir ajudá-lo.

— Valeu, Lil — ele agradece, depois que colocaram tudo em seus devidos lugares. — Ah, eu não consegui achar alguns dos seus ingredientes. — Ele mostra para ela o app de notas do celular, em que alguns itens não estão riscados. — Tavam em falta.

— Ah, que pena. Justo os ingredientes pros biscoitos do James...

— Bom, não se preocupe. Tenho certeza que o James vai te perdoar — replica Frank, numa tentativa falha de soar casual, o que faz com que Lily franza as sobrancelhas. — Mas e aí, Ali te falou do nosso drama? Sei que ela tava ansiosa pra você chegar e ela ter outra pessoa com quem conversar sobre isso.

Lily é pega de surpresa pela maneira tão honesta com a qual Frank aborda o assunto. Afinal de contas, é sobre a família dele sendo incrivelmente rude com a mulher que ele ama, com uma das pessoas mais queridas da vida de Lily. Ele não pode estar esperando empatia da parte dela.

Mas Lily ainda tenta ser diplomática.

— É, a gente conversou sobre isso. Eles não gostam muito dela, né?

Frank suspira.

— Eles não aceitam que eu amo Alice mesmo ela não sendo a minha alma gêmea.

Lily já tinha pensado abstratamente no relacionamento dos dois nesses termos, mas ver Frank sendo tão aberto com tudo isso chega a dar um pouco de tontura em Lily.

— Mas eu não vou desistir dela.

— E ela não vai desistir de você.

Frank abre um sorriso enorme e bobo no rosto, suas bochechas pontos de cor que mesmo Lily consegue identificar.

— Assim espero.

***

 Lily está na cozinha, com sua playlist favorita tocando, quando o interfone toca. Ela levanta o olhar da massa de biscoitos que está preparando, mas Alice dispensa a preocupação dela com um gesto, deslizando pelo chão encerado com suas pantufas. Ela aperta o botão de resposta e o rosto do porteiro aparece na tela.

Eles conversam por alguns segundos, palavras que Lily não consegue ouvir, e depois de desligar Alice bate palmas em empolgação.

— Sirius e Rem chegaram!

E poucos minutos depois lá estão eles, dentro da cozinha e sem sapatos. Rem abraça Lily muito apertado, sacudindo-a de um lado para o outro e ela retribui, rindo. Ele sussurra coisas gentis e acolhedoras no ouvido de Lily, escolhendo as palavras exatas para que lágrimas de emoção subam em seus olhos. Ela beija a bochecha dele e Sirius se joga no meio dos dois, com gritos de “abraço em grupo”, puxando Alice em seguida. Os quatro desembestam de rir até ficarem sem ar, mas quando se separam Sirius puxa Lily para um abraço individual. Ela expulsa os dois da cozinha empunhando ameaçadoramente uma colher de pau, e eles se juntam a Alice, indo apartamento adentro, enquanto Alice dá o tour dos demais cômodos.

Eles voltam quando Lily está tirando uma fornada de biscoitos, deixando-os esfriar para que possam confeitá-los.

— Cadê o James? — ela pergunta, enquanto acondiciona os biscoitos numa folha de papel manteiga para desocupar a forma.

— Ele vem mais tarde. Eu tive que ir buscar o Rem, o Jay teve que ir buscar a avó e a tia.

— Buscar? Da onde? — Quer saber Alice, roubando um par de biscoitos de forma tão sorrateira que Lily não tem oportunidade de fazer nada para detê-la.

Alice é algum tipo de ninja quando se trata de guloseimas, e Lily não pode culpá-la.

— Aeroporto. — Sirius levanta e ajuda Lily com os potinhos cheios de cobertura. — Elas moram na Áustria, se mudaram pra lá depois que o avô do Prongs faleceu, há alguns anos. De vez em quando eles passam o Natal com elas em Viena, mas elas sempre vêm pra cá pro Ano Novo, pra festa que os Potter dão pras pessoas próximas. — Ele olha por cima do ombro, olhando para Alice e Frank, que está abraçando a namorada pela cintura. — E todos vocês estão convidados, falando nisso.

Alice bate as mãos em animação, e Lily começa a encher um dos sacos de confeitar para se manter ocupada e não ter que responder ao convite. No momento, o que Lily menos quer é participar de uma festa pomposa, cheia de gente rica, especialmente com a família extremamente feliz de James e Sirius sorrindo enquanto recebem os convidados. Além do mais, ela literalmente nem tem roupa pra isso.

— Vai ser ótimo! — exclama Alice. — A gente bem que tava querendo uma desculpa pra fugir de, hm, outros compromissos.

Lily consegue ouvir a risada de Frank.

— É, Black, você nos deu a desculpa perfeita pra furar com minha família! Valeu.

— Entendo como ninguém a necessidade de fugir de família ingrata, Leong. É um prazer poder ajudar.

Lily olha para cima, procurando o olhar de Remus com o seu. Ele levanta as sobrancelhas e Lily faz uma careta discreta em resposta. Sirius fala pouco da família, pelo menos perto de Lily, mas o que ele diz já é o suficiente para um calafrio percorrer sua coluna. Ela não quer fofocar, mas parece que pelo menos Rem está mais a par sobre os dramas familiares do homem que é sua alma gêmea, então Lily fica aliviada em saber que os dois estão conversando.

Os minutos passam suavemente, ligando-se uns aos outros pelo ritmo confortável da conversa de todos, sendo apenas interrompidos pelos timers de Lily e pelas formas de biscoito que põe e tira do forno em intervalos regulares. Seus amigos perguntam se ela precisa de ajuda, mas Lily diz que não: esse é o presente de Natal dela para eles, e gostaria que fosse ela que fizesse tudo, até mesmo embalasse os biscoitos. Todos concordam e sentam-se no balcão da cozinha, fazendo companhia pra Lily e jogando conversa fora. Eles falam sobre os diferentes prédios de Hogwarts, sobre o Brexit, sobre qual franquia de vídeo game transformada em filme é melhor ou mais verdadeira aos jogos nos quais foram inspiradas, sobre destilação de bebidas e muito mais. O burburinho de vozes é entremeado pelas orquestras sinfônicas tocando no celular de Lily, e ela se sente leve e tranquila conforme percorre a cozinha enorme de Frank, como se fosse dona do lugar.

Algum tempo depois, o interfone toca, no fundo da música, e Frank vai atender. Lily tira mais uma forma cheia de biscoitos assados de dentro do forno. Alice está tentando arrancar de Sirius mais detalhes sobre a festa, mas Black diz que ele é proibido de ajudar com os preparativos por conta de desastres passados — ele conta sobre uma vez em que uma das atrações contratadas pegou fogo por alguns minutos por causa da natureza desastrada de Sirius, e Lily arregala os olhos em resposta.

— Potter chegou — informa Frank, passando por Lily para alcançar a geladeira. — A gente já pode decidir o que vai jantar. Por minha conta.

Lily põe a última fornada de biscoitos para assar e programa o timer pra dali a alguns minutos. O elevador solta seu sonoro ding!, anunciando que chegou no apartamento de Frank, e Lily se pega olhando para a porta de entrada ao mesmo tempo em que James Potter aparece, passando os dedos longos de uma mão pelos cabelos cacheados e pisando para fora dos sapatos.

— Oi, todo mundo! — James cumprimenta, acondicionando os sapatos no lugar apropriado antes de entrar no apartamento propriamente dito. Ele ergue a cabeça, sorrindo, e seus olhos brilhantes encontram os de Lily quase instantaneamente; ela faz a coisa corajosa e encara os biscoitos quase completamente cobertos à sua frente.

Suas bochechas estão pegando fogo, pois durante o instante em que teve contato visual com James, percebeu que ele deixou a barba crescer durante o recesso de fim de ano. E ficou muito bonito.

— Feliz Natal atrasado.

Todos retribuem o cumprimento, inclusive Lily, e conforme ele se aproxima da cozinha ela toma alguns segundos para avaliar sua opinião acerca da aparência de James. Ela não acha que está errada — ele sempre foi atraente —, mas o que mais está lhe irritando no momento é que a opinião sequer existe. Lily não deveria estar pensando na nova barba muito bem cuidada de James Potter, nem no sobretudo de bom gosto que ele guarda no armário de casacos, muito menos em como seu cabelo parece macio apesar de desarrumado e como seria bom passar seus dedos pelos fios sedosos...

Lily quase grunhe em frustração, e procura se ocupar com seus biscoitos mais uma vez.

— Ei, Evans — ele diz, subitamente ao lado dela, sua presença se manifestando quase que como um pilar de calor por sobre o ombro de Lily. Eles se abraçam desajeitadamente, já que Lily está toda suja de farinha e não quer melecar James com os resquícios da preparação dos biscoitos. Ele vira-se para o balcão totalmente ocupado pelos espólios gastronômicos de Lily. — Que bonitos! — James elogia os biscoitos dela, arrumando-os mais simetricamente num dos pratos.

— Obrigada — responde ela, num tom de voz que espera que não seja esganiçado. Lily pega um copo d’água com uma mão enquanto manuseia a espátula com a outra. — São os presentes de Natal.

James não precisa saber que ela não conseguiu fazer os dele. Ou melhor, que fez os dele — mas que eles ficaram em Surrey, de onde ela saiu quase fugida e aos prantos. Ela ainda vai conseguir pensar em alguma alternativa para o presente de Potter.

— Posso ajudar em alguma coisa? — Ele pergunta, olhando ao redor e procurando nada em particular.

— Não precisa.

— É, a Lily é tipo a czar dos biscoitos — brinca Sirius, empurrando-a com o ombro. — Ela não deixa a gente chegar perto deles.

Ela sorri brilhantemente em resposta, retribuindo o empurrão e expulsando-o dos arredores do balcão.

— Ninguém vai comer nenhum dos presentes adiantado! — Ela anuncia, brandindo a espátula na direção de Sirius. — Me desafia só pra você ver, Black — ameaça, estreitando os olhos e rindo em seguida.

Sirius põe as mãos para cima, em rendição.

— Perdão, Majestade Imperial. Valorizo demais a minha vida para colocá-la em perigo ao atrair sua fúria.

— Como você tá bem comportado, Pads — alfineta James, sorrindo de lado e cruzando os braços na frente do peito. Lily decididamente não nota os bíceps dele por debaixo do suéter. — Isso tudo é influência do Moony?

— Eu sou a imagem da boa moral e dos bons costumes — Remus intervém, de maneira impassível. — É apenas natural que um pouco do meu bom senso passe pro Sirius.

— Ou que um pouco da loucura dele seja transferida pra você — aponta Lily casualmente, recebendo um fuzilamento via olhar de Rem em seguida.

— Eu gosto mais da segunda opção! — Declara Sirius, abraçando Remus pela cintura e ficando quase na ponta dos pés para conseguir um beijo do namorado.

Lily e James trocam um olhar de pais corujas ao observarem a doçura da cena

— Gente, vamos escolher a pizza! — Grita Alice, sua voz vindo da sala de jogos.

— Podem ir — diz Lily. — Eu como qualquer coisa e tenho que ficar de olho na última fornada — ela aponta para o forno atrás de si com o polegar.

— Só não peçam pizza com abacaxi, por tudo que é mais sagrado — completa James, puxando um dos bancos e sentando-se no balcão, apoiando os cotovelos no tampo de mármore.

Ela pisca, surpresa por James não seguir Rem e Sirius para a sala de jogos, mas não diz nada.

— Há quanto tempo você tá cozinhando?

Lily dá de ombros.

— Acho que a tarde toda?

Ele assovia, impressionado.

— Uau, Evans.

— Eu gosto — ela responde, um pouco na defensiva, olhando para ele e sustentando o contato visual. James está a um tampo de mármore de distância, com seus óculos redondos fazendo seu olhar parecer particularmente afiado. — É bom pra manter a cabeça ocupada.

Ele franze as sobrancelhas, uma dobrinha adorável instalando-se no lugar onde elas se encontram, e Lily imediatamente volta-se para as coberturas. Falei demais. Pelo canto da visão periférica ela vê James estendendo a mão pelo balcão, mas parando no meio do caminho. Lily inspira fundo, prendendo a respiração por alguns segundos enquanto desenha os detalhes em um dos biscoitos.

— Já sei — James diz, arrastando o banco no qual estava sentado e pondo-se de pé. — Vou te ajudar guardando as coisas.

— Potter, é sério, não preci...

— Não quero ficar sem fazer nada.

Ela estreita os olhos para ele, desconfiada.

— Tá bom. Obrigada.

— De nada.

Ele caminha pelo cômodo com a naturalidade de quem sabe se virar muito bem em cozinhas alheias, não tendo nenhuma inibição em abrir gavetas e vasculhas armários. Ele tampa os potes de mantimentos que Lily usou, reúne todos os medidores e enrola as mangas do suéter para atacar a louça que Lily não teve tempo de lavar ainda.

— Eu vou lavar a louça e não tem nada que você possa fazer sobre isso, Lily — ele diz, antes que ela tenha oportunidade de reclamar. — Quero fazer alguma coisa pra ajudar.

Ela respira fundo, tentando matar todas as borboletas que estão esvoaçando em seu estômago. Lambendo os lábios, ela agradece a ele e alcança seu celular, para conferir se perdeu alguma ligação ou mensagem. Não tem nenhuma notificação nova na tela, e uma coisa desconfortável e ácida sobe pela garganta de Lily. Ela coloca o celular no lugar que estava antes, deixando a música instrumental continuar a tocar e encara seu trabalho em andamento. Ela ainda vai precisar de mais algum tempo para terminar de confeitar tudo, mas está confiante de que consegue terminar antes do Ano Novo.

Lily decide começar a enxugar a louça que James está lavando, para dar tempo dos biscoitos cobertos descansarem e da última fornada terminar de assar.

— Eu juro que não tô te supervisionando — ela diz, pegando um dos panos de prato numa mão e alguns dos talheres recém-lavados na outra. — Só que assim a gente termina mais rápido.

Ele olha para ela de lado, os olhos parcialmente obstruídos pela armação dos óculos, e sorri. Lily sorri de volta.

— Tudo bem. — Ele lhe dá uma das formas para secar e seus dedos se tocam. James limpa a garganta e ela se pergunta se ele também está sentindo a energia estática subindo até seu cotovelo. — Sobre o Ano Novo... os meus pais sempre dão uma festa pros mais chegados e...

— O Sirius tava falando sobre isso mais cedo. Disse que estamos todos convidados.

— E estão. — James pausa, e deliberadamente se volta para Lily, encontrando o olhar dela com o seu. — Mas eu queria te convidar eu mesmo. Adoraria que você fosse.

Lily tem a impressão de que todo o sangue em seu corpo saiu correndo para suas bochechas, e é por isso que seus dedos parecem dormentes enquanto ainda seguram a forma que estava enxugando. Com esforço, Lily consegue desviar seu olhar do de James, guardando a forma no armário certo.

— Eu, hm, tava pensando em não ir, na verdade.

— Ah. — Ele solta o ar numa lufada ruidosa.

— É só que — Lily se apressa em completar, detestando ouvir a nota de decepção na voz dele — eu não sei se tô em clima de festa. — Ela faz uma careta. — Meu Natal foi uma porcaria. Não quero estragar o Ano Novo da sua família com o meu mau humor.

— Lils. — Ele larga a louça que estava lavando e alcança uma das mãos dela com a sua. As borboletas voltam a se agitar em seu estômago ao ouvi-lo usando seu apelido. — Por que você não falou nada? Não adianta ficar guardando esse tipo de coisa pra você, só piora tudo.

— Eu sei — ela responde, baixinho, entrelaçando seus dedos nos dele. — É só que a minha família... — Lily nem conclui o pensamento, e só grunhe em frustração.

— Todo mundo tem problemas com a família — ele oferece, num tom de voz compreensivo. — Eles geralmente só querem o nosso bem, mas não sabem como...

O sangue de Lily ferve em suas veias. Aqui está James, consolando-a por ter brigado com a família em plenas festas de fim de ano, tentando convencê-la que eles não são de todo ruins, quando eles fizeram comentários horrorosos dirigidos especificamente a ele. Ela pressiona os lábios em uma linha fina e o interrompe.

— Eles foram intolerantes e racistas. — Ela encara-o nos olhos, a mandíbula trincada. — Com relação a você. — O ar fica carregado de tensão entre os dois por um milésimo de segundo, mas Lily continua. — E a Marls. Eu não...

Ela respira fundo, se perguntando porquê é que o mundo de repente perdeu o foco; e é só aí que percebe que algumas lágrimas estão se acumulando em seus olhos. Lily pisca furiosamente, determinada a não chorar na frente de James, mas essa tarefa vai ser difícil, já que em seguida ele a envolve num abraço reconfortante e quentinho. Ele cheira a algo cítrico, limpeza, café e... algo vermelho? Isso não faz sentido nenhum, e Lily está ocupada com o esforço de não chorar no suéter macio de caxemira de James para tentar processar tudo de maneira apropriada. Ela só funga, de forma nada discreta ou educada, e aceita o abraço, passando os braços pela cintura dele e descansando a cabeça no peito de James.

— Lily...

A forma pela qual ele fala o nome dela faz com que seus olhos se encham mais rapidamente de lágrimas, e ela aperta-os com força na tentativa de conter o choro.

Ela funga alto de novo, e usa uma das mãos para esfregar o nariz.

— Viu, é por isso que eu não posso ir pra sua festa. Imagina se eu caio no choro do nada lá também — ela resmunga ainda encasulada no abraço aconchegante de James.

Em resposta, ele estreita ainda mais o abraço, apoiando seu queixo no topo da cabeça de Lily.

— Se você achar que realmente vai te fazer mal, tudo bem — ele diz, suavemente, traçando círculos na base da coluna de Lily. Ela sente sua pele se arrepiando e reza silenciosamente para que James não consiga perceber através das camadas de tecido entre eles. — Mas eu realmente queria que você fosse.

— Hm. — Ela pondera por alguns segundos, sentindo o ritmo forte do coração de James contra a pele de sua bochecha. — Vou pensar. Prometo.

O timer dos biscoitos dispara, forçando James e Lily a romperem o abraço. Ela limpa a garganta, sentindo-se febril e envergonhada, e James bagunça o cabelo com as mãos de novo. Lily tira os biscoitos do forno, grata pelo calor que pode servir de justificativa para seu rubor, e desliga-o em seguida.

— James. — Ela o chama, baixinho, meia cozinha de distância entre eles. — Obrigada por me escutar.

Ela consegue ouvir que ele parou de lavar a louça, e mesmo estando se preocupando de propósito com os últimos biscoitos, Lily sente o olhar dele quase em cima de si.

— Tô aqui pra isso, Lil. Pode contar comigo.


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Notas finais do capítulo

esse capítulo fugiu totalmente do meu controle e acabou ficando enorme, ao mesmo tempo em que não cobriu tudo que eu gostaria. espero que vocês gostem e perdoem novamente a demora e a falta de revisão. espero conseguir postar mais agora que estou ficando mais tempo em casa.

desde meu último sinal de vida, muitas coisas aconteceram. eu fiz uma playlist pra fic (segue o link: https://open.spotify.com/playlist/0VPTI09eDAekMunehsBKmt?si=oxQCZ_fFQfSbCbpSQrjDtg ) e percebi que o James Potter perfeito é ninguém mais ninguém menos que Dev Patel. então é isso aí, mantenham essa imagem maravilhosa em suas mentes conforme a leitura (ou... releitura?!) da fic. com esse update, a história alcançou 50 mil palavras, feito que nunca alcancei antes. então, gostaria de agradecer a todos que me acompanham, à Lily e ao James, desde o início ou tendo descoberto a história agora. muito obrigada, gente!

espero que vocês estejam todos bem, e seguros. fiquem em casa e cuidem de si e de seus entes queridos! o próximo capítulo será provavelmente um monstro gigantesco!