Yume escrita por Zatanna


Capítulo 2
Parte I: Regra I




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Primeiro: juízes não podem
parar de efetuar julgamentos,
essa é a razão de sua existência.

 

Entre todas as quatro leis, Decim somente não havia quebrado essa. Desde o momento em que as portas cerraram, o bartender não conseguia se mover para qualquer direção, nem mesmo fazer algo produtivo, como arrumar o local para os próximos clientes.

O sorriso que demonstrava os seus sentimentos ainda estava lá, ele sabia que Chiyuki havia entendido, pois ela era a mais apaixonada leitora de Chavvot. Decim nunca havia o lido, nem sequer folheado, mas as memórias de Chiyuki, de quem ela foi – de quem ela representava – ainda estavam lá, palpitando em algum lugar no seu peito, que se manchava de dor e solidão.

E fantasias.

Decim percebeu que fantasiava estar com sua assistente por mais e mais tempo. Isso o quebrava. Quebrava aos poucos, como pequenas rachaduras incuráveis, muito piores que meras cicatrizes, pois bonecos só rachavam e rachavam. Sem sentir. Mas como ele sentia tanto?

Decim era Jimmy, em todos os aspectos. O menino que buscava loucamente dizer seus sentimentos, mas sem saber como, pois, nem sequer os compreendia. O menino que a encarou correndo no gelo e imediatamente se apaixonou por sua beleza. Tudo porque ela era muito bonita e possuía um sorriso encantador. Não que Chiyuki fosse surda como Chavvot, mas ele era incomparavelmente sem sensibilidade para dizer qualquer coisa, mesmo que fosse insignificante. Como aquela senhora contadora de histórias havia dito, em sua intensa sabedoria, não importa o lugar do mundo: o sorriso é o sinônimo da felicidade.

E ele tinha tido algum sentimento como felicidade, angústia ou solidão antes dela?

Sem que percebesse, os olhos de Decim perderam suas marcas e, mais uma vez, as lágrimas começaram a cair. Uma a uma. Sós. Desacompanhadas. Em sua extrema solidão de servir para um propósito que se entendia incapaz, mas que faria o melhor, por pessoas como ela.

Esperando, por algum milagre, que ela passasse por ali outra vez. Até outra hora; como Chiyuki havia proferido.

O bartender sentiu seus joelhos fraquejarem, como se estivessem com algum tipo de defeito. Sabia que não poderia ser, mas, mesmo assim, não se importou em cair. O vazio e o chão pareciam ser a mesma coisa, como um abismo que a alma se afunda em suas piores agonias, embora nunca tivesse ido até lá, foi assim que se sentiu: em uma metáfora odiosamente bem elaborada para sua sanidade. Suas lágrimas avulsas copiosamente molhavam seu rosto, suas vestes e suas memórias.

Rogando para não as esquecer e implorando para que parassem de fazê-lo sofrer, as memórias tomavam conta de seus tremores, seus remorsos e suas fantasias. Decim sabia como humanos se comportavam quando nutriam sentimentos românticos, eles envolviam a alma uma na outra, como o corpo.

 Isso o fez se recordar e, por um instante, seus olhos voltaram ao normal, analisando como um juiz. Chiyuki já nutria sentimentos por ele antes mesmo que pudesse perceber, sentir seu sofrimento, entendê-la.

Pessoas não são tão complexas quanto pensa
que são. Elas são simples, elas ficam tristes e
bravas com coisas simples[...]são rapidamente
afetas pelas coisas mínimas, e vivem sem saber
o que acontecerá se caírem uma última vez.

 

É assim que as pessoas são. Decim lembrava-se de Chiyuki repetir essa sentença diversas vezes, enquanto o socava no peito, como se tentasse fazer com que seu coração batesse e julgasse de outra forma.

Uma forma mais humana.

Ele não tinha experiência com assassinos, nem com suas motivações e nem com a facilidade de tirar outra vida se humanos agarravam-se tanto a ela para existir. O barman não compreendia o egoísmo do gesto, por consequência, julgava pertinente pensar que todos mereciam o vazio, no entanto, as expressões de Chiyuki, principalmente depois de saber as memórias, faziam-no questionar.

Não somente analisar como um juiz, mas questionar. Até que ponto, sem entender os sentimentos, um árbitro era capaz de definir esse tipo de situação? A questão continuava martelando em sua mente, em cada pequeno soco que ela deferia em seu peito, tornava-se mais evidente a dúvida que carregava. Ele duvidava que pudesse julgar muitos casos, porém, dessa vez, tornou-se um caso particularmente inapropriado para o que sabia e conhecia de julgamentos; conhecia dos homens.

Chiyuki não o encarava, buscando garrafas pelo bar e bagunçando a ordem deixada pelo bartender. Os cabelos negros moviam-se rapidamente, tais os movimentos de sua dona, traçavam caminhos pelo ar que Decim capitava como fúria, raiva e remorso, mesmo que não fosse culpada de nada.

— Chiyuki-san, desculpe interrompê-la...

Ignorou-o. Completamente. Contudo, Decim arregalou os olhos ao vê-la virar uma garrafa repleta de bebida alcoólica na boca, sem esvaziá-la em uma taça ou um copo anteriormente. Ela simplesmente ingeriu direto da garrafa, como um bêbado faria.

Como um desesperado faria.

— As pessoas são tão frágeis, que tipo de decisão podem tomar, a que ponto podem chegar no seu momento mais desesperador... — continuou falando e bebendo. O conteúdo se esvaziava rapidamente, ela já estava procurando outra garrafa. — Como julgar as pessoas pelo seu desespero e não, pelo seu amor? Pela sua compaixão? Que tipo de seres são vocês que não buscam isso?

Engoliu mais um gole. Depois outro. Mais um. Ela já havia esvaziado uma garrafa, pegou outra e a abriu. Bebeu mais um gole, lágrimas escorriam de seus olhos, vez ou outra, enquanto continuava a falar sobre os sentimentos, principalmente o amor, o medo, a tristeza, o sofrimento. Decim a ouvia, porque nada compreendia e porque estava desejoso em aprender.

Ele percebeu o próprio interesse nas pequenas expressões, no desespero pela bebida e no rosto corado e cada vez mais honesto da jovem humana que o acompanhava como assistente.

Depois da quarta garrafa, as palavras dela se embolavam nas memórias que ainda habitavam em sua mente. Por falta de memórias humanas próprias, Chiyuki poderia se confundir, adaptar aquelas memórias como se lhe pertencessem, era um risco, como Nona havia dito e pedido para que ele tomasse conta dela, para julgá-la corretamente como a Chiyuki que conhecia.

Que conhecia.

— Chiyuki-san, acho que a senhorita atingiu um limite inesperado — concluiu, aproximando-se o suficiente para tomar a garrafa quase vazia de suas mãos. — Por gentileza, deixe-me acompanhá-la até suas instalações para que possa descansar. As memórias de nossos últimos clientes podem ter sido demais para...

— Não são as memórias, mas o julgamento!

Interrompeu-o com uma expressão distinta, seus olhos lhe diziam algo. Todo o seu corpo lhe dizia algo, mas Decim não compreendia. Havia fúria e frustração, sentimentos complexos que o barman não era capaz de distinguir, mas conseguia sentir as suas nuances a partir dos sinais no tom da fala e na forma que o corpo feminino inclinava sobre si mesmo.

Com um breve pedido formal de desculpas, ele a pegou no colo, fazendo com que Chiyuki se contorcesse um pouco, mas não o impedisse de nada. Agradecido mentalmente, acompanhou-a até o leito, onde a depositou calmamente na cama para duas pessoas caberem.

Não havia voz, quase luz ou expressão que o fizesse ficar lá. Contudo, Decim olhava para Chiyuki enquanto ela o encarava de um jeito que o pobre boneco não entendia. Alguns instantes depois, sabendo ser incapaz de decifrá-la, resolveu partir.

No entanto, sua mão foi envolvida pelas mãos de sua assistente que, com lágrimas presas nos olhos, fez um mísero pedido:

— Você pode ficar aqui? — questionou-o com profunda tristeza na voz. — Até que eu durma, até que isso passe. Só um pouco.

  Algo alertava Decim. Ele não sabia o que era, mas algo em seu peito dizia alguma coisa, como uma voz que sussurra ao longe e prende sua atenção. Chiyuki continuava com suas vestes de trabalho, embora os botões do seu curto blazer estivessem abertos e seus seios estivessem quase visíveis na fina roupa que os cobria. A saia estava amarrotada e mais acima do que de costume, no entanto, não era o quanto o corpo dela aparecia que chamava a atenção do barman, mas o quanto as expressões dela mostravam suas inseguranças, seus anseios e suas tentações.

O rosto corado, a respiração acelerada, os olhos expressivos e úmidos, na pouca luminosidade, a boca entreaberta. Decim não percebeu, mas sua curiosidade, naquele instante, havia se tornado fascínio.

Ele estava fascinado e curioso com o pedido.

Mas, como de costume, não demonstrou.

— Se assim deseja, Chiyuki-san.

Sentou-se. Reto. Inexpressivo. Na beirada da cama, mas próximo o suficiente para que ela ainda segurasse sua mão, como não deixou de fazê-lo. Decim continuava a encarando, como Chiyuki fazia, tal qual estivesse esperando algo, qualquer coisa. E, antes que percebesse, ela já havia o puxado, insatisfeita com a distância.

Sem prever aquela decisão, o barman deixou-se levar e quase se desequilibrou. Sua mão direita ainda estava entrelaçada com a mão esquerda de sua assistente, a outra se apoiava ao lado da cintura dela.

A moça, com o tronco levantado e o rosto próximo o suficiente de Decim, tinha as bochechas coradas e um sorriso que ele nunca havia visto antes. Um sorriso que não sabia definir o que era. Os olhos do anfitrião do Quindecim arregalaram e, antes que pudesse prever, os lábios de Chiyuki estavam colados aos seus.

Aquilo era beijo.  

Aquilo era uma expressão sentimental humana que dizia sobre sentimentos; amor e desejo. Recordando as memórias de um dos seus últimos clientes, o detetive, com sua amada esposa e seu casamento, soube como beijar alguém. Beijar Chiyuki.

Fez, de maneira desajeitada, mas enlaçando a cintura dela com a mão livre enquanto a moça enroscava a mão direita em seus cabelos platinados. Decim sentiu uma pequena pontada, mas era quente, aconchegante e se sentia confortável em senti-la. Queria um pouco mais, até.

Fechou os olhos, sem perceber, sem sentir.

Mas notou, por alguma política desconhecida das memórias que carregava do menino assassino, que aquilo era errado. Parou. Abriu os olhos ao ouvir um pequeno barulho, que definiu como insatisfação por ser parecido aos suspiros dela de quando perdia um jogo. Chiyuki, no entanto, sorria, suas vistas ainda estavam cerradas, divagando.

Antes que notasse, Chiyuki adormeceu em seus braços, sem lembrar de nada no dia seguinte. Por esse motivo, o barman decidiu fingir que aquilo nunca aconteceu, que aquelas memórias não lhe pertenciam e sumiriam como as outras, pois nem ela – ainda que pudesse – recordava-se disso.


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