Cabala escrita por vallim007


Capítulo 1
1X01 O homem dos mil disfarces




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O caminhar incauto da jovem dama denunciava sua despreocupação em andar por aquelas bandas. O lugar era perigoso: Uma rua fria e escura que daria de encontro com um beco, mais frio e ainda mais escuro, aonde encontraria o seu contato. Circe era uma maga poderosa, não havia motivos para temer, e do mais, conhecia aquele lugar como a palma de suas mãos. O vestido esmeralda, delineava perfeitamente o seu corpo, enquanto sua barra resvalava na água podre acumulada na calçada; seus olhos de gavião perscrutavam cada ponto do local enquanto estacionava em um canto enegrecido pela noite, aguardando que ele chegasse. E ele não tardou em chegar.

 

Um homem de pele negra, lábios fartos e corpo mirrado virou a esquina furtivamente. Estava agora mais perto de Circe, e o fato de avistá-la o fez apressar os passos. O encontro seria rápido o suficiente para que ele pudesse passar as instruções específicas de seu trabalho. Ao se aproximar da jovem feiticeira, o rapaz exclamou:

 

– Circe! Depois de muito analisar, o ideal é ir para Tartária! Você poderá saquear a cidade sem problemas e ainda fazer aquilo que tanto gosta.

 

A jovem se aproximou, seu lábios passaram rente ao ouvido do mirrado homem, que sentiu uma mistura de êxtase e temor na mesma hora:

 

– Preparou o meu espetáculo? Eu quero o melhor teatro! E a melhor banda! E eles não podem desconfiar que eu... sou eu.

 

O rapaz se afastou. Deu dois passos para trás, adquirindo uma área segura. Sabia que a jovem feiticeira poderia pulveriza-lo com apenas um movimento! Sentia medo de não ser mais útil.

 

– Já está tudo preparado! Você será Circéria! Seu nome estará em todos os jornais da cidade e certamente seu espetáculo lotará! Após isto você poderá saquear o que quiser, Tartária é um inferno na Terra! Nenhum lugar é melhor do que lá para ser um criminoso.

 

Após dizer isto, o rapaz entregou um malote, com o desenho de uma cruz de seis pontas azuis em sua superfície, contendo informações adicionais, e saiu correndo. Circe olhou para os céus, seu sorriso malévolo logo ganhou o espaço enquanto flutuava em pleno ar. Sua voz a passiva e sensual deu lugar a uma estrondosa exclamação que vaticinou uma explosão de gargalhadas! Circe possuía o mesmo exagero teatral que todos os artistas insistiam em possuir:

 

– Tartária me aguarde: TERÁ  O MELHOR SHOW DE TODOS OS TEMPOS! E APÓS ISSO... TAMBÉM TERÁ SUA MAIOR MALDIÇÃO! HAHAHAHAHAHAH!

 

 

 

O céu, abobadado por estrelas brilhantes, prenunciava uma noite fria e seca. Não chovia na cidade fazia semanas, e apenas o vento cortante envolvia os andarilhos e curiosos, que insistiam em arriscar as suas vidas no inferno na terra: Tartária era perigosa, violenta, e por vezes demoníaca. Palco de transações ilegais, estelionatos e guerra entre gangues; peixes pequenos perto da máfia avassaladora que dominava boa parte da cidade. Roubos, greves, congressistas mentirosos e nojentos, eram elementos comuns, e até esperados, nos dias sombrios que permeavam a cidade. Mas isso não o preocupava mais, Vince era destemido, e apesar de lutar pela utópica justiça, era habitual não ter forças suficientes para sufocar a podridão que mutilava os membros já necrosados de Tartária: A cidade sangrava, e nem os heróis podiam fazer muita coisa.

 

O bairro era Saint Paul, nome que poucos conheciam, até que sua alcunha: vômito operário, era mencionado. O bairro industrial, aonde a massa pobre e seqüelada pelas mazelas sociais vivia, era perigoso. Trabalhar em indústria catalisa violência, pelo menos as indústrias de Tartária, aonde as condições de trabalho são pífias e as necessidades só aumentam, gerando índices de criminalidades altíssimos. Isto não importava para Vince. Neste momento ele tinha um encontro, e um encontro era tudo o que faria aquela noite.

 

Desceu de seu carro, batido, jeitosamente. Era um investigador, mas também um herói, e quando estes dois elementos se unem, é de se esperar que haja estilo. Trajava um longo sobretudo preto, que envolvia toda a suas costas até a panturrilha. Sua camisa social, amarelo ovo escurecido, ornava com o cinza escuro de seu pulôver, ajustado imediatamente acima da camisa de maneira primorosa: Pareciam ser uma peça só. Os sapatos negros e o cinto da mesma cor, completavam os acessórios que usava, faltando apenas o chapéu de aba redonda, também negro, e perfeitamente bem encaixado em sua cabeça, dando um ar de detetive noir sem precedentes. Seu rosto não era óbvio aos que o viam. Era encoberto por uma máscara teatral, dividida ao meio entre a comédia, sorridente e sarcástica, e a tragédia, triste e melancólica. O acessório branco, apenas mostrava os olhos, verde escuros e brilhantes, o espelho da alma completamente genial que se escondia por trás de tal equipamento. Era um herói, e como todo bom herói, não mostrava sua identidade.

 

Seu nome era Vince, e sua alcunha: Mil faces. O homem capaz de ser quem quiser ser e ainda meter uma bala em sua testa enquanto faz isso. O chão seco recebia as pisadas profundas do herói, que andava destemidamente pelos becos escuros do vômito operário. Cada movimento na escuridão era percebido pelos seus olhos atentos. Seus ouvidos filtravam o que era importante, e sua máscara prenunciava alarmantemente “Cuidado! Vocês me conhecem! Eu sou Mil faces, e acabo com vocês”.

 

“Maldição, esta mulher está de brincadeira” – Exclamava em voz baixa enquanto procurava aquele beco em especial, aonde sua contraparte o esperava. O cheio de fossa aberta, exalando os produtos putrefatos da ralé tomava o ambiente. Pior que isto era apenas o senso estético do universo destruído pelas casas mal conservadas e pessimamente construídas, que se aglomeravam em cada ruela subdesenvolvida do bairro. Vince não tinha medo, não tinha juízo e não tinha razão! Se meter naquele lugar era quase tão ruim quanto se lançar na boca do inferno, mas ninguém faria isto, a não ser que fosse um mafioso. Vince não era um.

 

Retirou um papel do bolso: “Ruela 15. Apartamento 13. Segundo andar”. O detetive mascarado flagrou as redondezas até avistar uma plaqueta, suja e enferrujada, ostentando: Ruela 15. Ele estava certo. Caminhou mais alguns metros até encontrar tal apartamento. Tudo o que tinha que fazer era subir. E rápido.

 

Os passos vertiginosos do Mil faces ecoaram através do edifício. Ele não estava se importando com quem poderia ver-lhe, ou o que poderiam pensar. Ele só queria ter uma boa conversa, e  um encontro amistoso. E estava decidido a consegui-lo. Alcançou o segundo andar, caminhando sem delongas até o apartamento indicado. Parou em frente a porta, e instigado, fez menção em bater! Mas foi interrompido pelo abrir precipitado e a exclamação feminina que fez trepidar os seus ouvidos: “Eu estava esperando por você”.

 

– Frandumar Leflour! – exclamou com surpresa Vince, enquanto adentrava no recinto com as mãos enfiadas em seu sobretudo – E eu que cheguei a duvidar que tal beleza da sociedade se enfiaria no subúrbio só para me ver.

 

A senhora nada falou, apenas emitiu o leve sorriso debochado, enquanto tragava um de seus cigarros luxuosos.

 

– Faço tudo por você meu bem – afirmou atraentemente dando mais uma baforada em seu cigarro – E faço melhor ainda se tiver algo em troca.

 

– Como eu imaginei.

 

Vince atravessou a antessala que abria espaço para um cômodo mais amplo. Nele, cadeiras estofadas, antigas e empoeiradas, contrastavam com uma cortina, também velha e suja de tinta, que envolvia a grande janela do ambiente. Na lateral, um divã amplo, vermelho, e em melhor estado – ainda que bem acabado – contemplava os visitantes, que logo se aconchegaram.

 

– Com o que estamos tratando aqui? – Indagou o herói com um olhar afiado, única marca de expressão visível através de sua máscara teatral – Não faço acordos com bandidos, e eu espero que seus argumentos sejam realmente bons, para que eu não te prenda agora.

 

Frandumar sorriu, e logo fez uma cara de vítima tão habituada a fazer. Balançou os longos cabelos negros, que esgueiravam-se por seu corpo, acompanhando o caminho de seu Echarpe branco solto sobre seus ombros. Os olhos de rapina e o nariz pontiagudo, contrastados com os longos cílios postiços anexados, emolduravam sua face bela e manipuladora. Mas isto não funcionava com Vince. Ele conhecia bem Frandumar, e sabia que ela era perigosa!

 

A senhora se levantou. O corpo esbelto, inserido em um vestido longo e negro, fendido na altura das coxas, deslizava pelo ambiente enquanto seus lábios carnudos iniciavam um discurso:

 

– Ah! querido Vince. Saber sua identidade já não é o suficiente para que pegue leve comigo? Eu posso acabar falando para alguém! – exclamou sinicamente.

 

– E eu posso meter uma bala em seu peito agora mesmo – retrucou Vince imediatamente, mostrando um raciocínio rápido e uma bela percepção do óbvio – Assim acabaríamos com este problema de identidades, não é verdade?

 

Frandumar Leflour nada disse, sabia que mesmo que ele atirasse, nada poderia fazer, não se tratava, somente, de carne e ossos: Havia mágica em seu corpo. E poderosa.

 

– Circe está na cidade!

 

A breve mudança de posição de Mil Faces, lançando uma de suas pernas sobre a outra, foi o suficiente para demonstrar o desembaraço ao ouvir tal notícia. Circe era uma maga, e poderosa. Muito maior que Frandumar poderia ser. E o pior: Uma criminosa.

 

– Interessante. E porque está me contando isto? Sentiu seu pequeno império de mentiras ameaçado pela jovem?

 

– Ela é maligna Vince! – exclamou profusamente a bela senhora, enquanto cortava o raciocínio do investigador – E também... ela ameaçará os meu negócios!

 

Um leve sorriso escapou do rosto de Mil Faces. Nada que alguém no mundo poderia perceber. Frandumar possuía estranhos poderes místicos. Em um ritual Xamanista nas ilhas de Kepler, ela obtivera tais poderes. Podia encantar objetos e criar barreiras místicas, frutos de palavras mágicas bem engendradas e floreios simples com as mãos. Mas não era um dom, era algo adquirido. Circe em contrapartida era uma maga, advinda de uma família de feiticeiras pagãs.

 

Vince levantou-se. Já obtivera toda a informação que precisava. Caminhou até a porta da sala, passando indiferentemente pela senhora, sem se importar, aparentemente, com sua presença. Ajeitou o chapéu noir em sua cabeça e pigarreou, mas por motivos óbvios, engoliu ao invés de cuspir. Sua capa balançou com o movimento, criando um rápido espectro de cores com a luz fraca do ambiente. Teve sua saída interrompida pelo toque leve, e deveras sedutor, de Frandumar, que intentara bloqueá-lo.

 

– Aonde vai? Vai derrotá-la? Diga que sim!

 

– Você tem dois minutos – Replicou Vince – Dois minutos para sair daqui antes que eu acabe com você!

 

A Senhora corou. Levantou uma das mãos e movimentou rapidamente os braços. Bruxuleando os dedos brevemente. “MABRU RACUES” exclamou, enquanto uma cortina de fumaça densa envolveu o seu corpo, e o som de uma pequena explosão invadiu o cômodo. Vince olhou para trás: Estava sozinho.

 

 

 

Era uma manhã calma em downtown, não que estivesse ausente de movimentos, o que era impossível, mas calmamente convencional. Os carros lançando suas fumaças tóxicas no ambiente; as pessoas, ao celular, andando vertiginosamente por entre os paredões de concreto dos prédios e a balburdia de sons e vozes, ecoando pelos corredores sujos e lotados das avenidas. Neste ambiente, Vince andava naturalmente, sem seu disfarce habitual, com a gazeta de Tartária em mãos. Seus olhos perscrutavam cada lance de linhas e blocos de informação, na esperança de adquirir alguma pista relevante sobre Circe. Sabia que a jovem amava o estrelato, que era uma exímia cantora, usando de seus feitiços poderosos para atrair a plateia para si. Algo que Frandumar também fazia com maestria, e que temia perder. Folha cultura, deslocou as paginas rapidamente até encontrar o caderno desejado com as informações culturais da cidade. Show do Off Topic, teatro de rua... Ali, no canto inferior, a notícia que satisfez seu ego de investigador: Show com a grande cantora Circéria, uma noite de aplausos e degustações. Não percam! Achara sua algoz.

 

Enrolou o jornal sob os braço e deslocou-se rapidamente até seu escritório. Movimentar-se nas calçadas mal construídas e cheias de lixo de Tartária era um suplício. Seria até que habitual, com a prática, mas o volume de pessoas caminhando nas mesmas passarelas era perturbador. Este quadro era extremamente favorável para os meliantes, que se aproveitavam da multidão para roubar e não serem pegos. O investigador deslizava com energia por entre as pessoas e carros, atravessando as movimentadas ruas e alcançando as esquinas. Logo observou o seu lugar, seu refúgio em meio a selva de pedras: Seu escritório particular; Era um investigador.

 

A noite prometia, e se tentaria parar Circe, antes mesmo dela iniciar suas ondas de crimes, deveria estar preparado. Vasculhou em sua mesa por uma pequena agenda, aonde após encontrá-la e folheá-la, destacou um pequeno cartão anexado por um clipe e completou uma ligação:

 

– Rufus! É o Vincent! – afirmou categoricamente – Exatamente! Preciso de duas entradas para o show desta noite! Circéria. Isto! – Respondeu a uma possível indagação sobre qual show se referia – Passo pegar as sete. Obrigado!

 

Abriu um armário grande, repleto de papeis e alguns sobretudos; removeu-os, retirando posteriormente um fundo falso em madeira fina que escondia uma pequena sala. Em seu interior, uma série de roupas e mascaras recobriam as paredes. Não denominava-se mil faces a toa. Era um mestre do disfarce. Em uma pequena geladeira, localizada no canto da parede oposta, uma infinidade de frasquinhos brancos, com um mecanismo de aspersão, mantinham-se estocados. Vince escolheu um deles aleatoriamente. Após isto abriu um pequeno armário, fixado na parede. Em seu interior, dispositivos de trabalho, pouco habituais, permaneciam guardados. Bomba de luz... bomba de gás sonífero... Bomba de fumaça! ISSO! Retirou duas pequenas esferas metálicas, com um botão acionador na superfície, e colocou-os no bolso. Fechou o armário e abriu um outro, imediatamente a frente deste, só que maior e mais profundo. Em seu interior, muitas pistolas diferentes jaziam fixadas no fundo de madeira. Pegou a com o desenho em verde. Uma arma com um tubo de vidro circular acoplada sobre o cano. Material viscoso, parecia ser toxico, e definitivamente mortal. Em sua inscrição, uma pequena caveira desenhada corroborava com as suspeitas: certamente era uma arma química. Juntamente a pistola, demoveu mais alguns refis do tal material e guardou-os no bolso. Após isto escolheu seu sobretudo azul predileto, pegou uma de suas muitas máscaras estilizadas, e deixou o recinto.  

 

 


– Está belo hoje Vince. – exclamou com sarcasmo a jovem, de cabelos ruivos, no interior do velho cadilac conduzido pelo herói – Bem melhor do que quando está usando aquela máscara horrorosa.

 

– Ainda me sinto despido sem ela.

 

Vince tinha companhia. Agiam separadamente, mas em momentos críticos, era normal que se aliasse a Soturna. A jovem também era especial. Uma combatente do crime nas ruas prostituídas de Tartária. Seu codinome definia bem o seu perfil: Era uma heroína das noites escuras e dos ventos frios da madrugada. Mas agora, era impossível defini-los como tal: Tanto ele como ela trajavam-se socialmente e indistintamente, o concerto de Circe era um evento social, e exigia roupas a altura.

 

– Voltou a fumar? – exclamou Lucita Lavigne, a jovem acompanhante de Vince – Pensei que ao usar o tempo todo aquela máscara horrorosa, você inevitavelmente perdera o vício.

 

– Qual o problema com minha máscara Lucita?

 

A jovem sorriu. Amava perturbar a Vince. Seu vestido negro, cobrindo todo o corpo e delineando seus seios fatos e curvas sinuosas, davam a ela um aspecto maduro. Algo que não combinava muito bem com sua agilidade e atitude perante as adversidades. Era uma heroína por querer ser! Mesmo que não tivesse poderes, o que não era o caso, ainda sim defenderia a sociedade do mal alastrante de Tartária.

 

– Porque não desce e vai a pé? – Foi convidativo o homem de mil faces – Pelo menos não me irritaria! – Mas logo levantou um sorrisinho sinalizando que estava gostando das perturbações.

 

– Se eu fizesse chegaria mais rápido! Essa lata velha não anda!

 

Soturna era rápida. Realmente rápida. A jovem servira de cobaia em experimentos poucos convencionais na StarLab, um laboratório de pesquisa genética avançada. Há três anos o tal recinto fora desmantelado. Nunca realmente souberam o que aconteceu a eles. O fato é que Lucita recebera um soro que prometia aumentar o metabolismo celular, o que realmente fizera, só que a níveis tão altos que a jovem adquirira super velocidade. Em sua ultima medição, a heroína podia alcançar incríveis quatrocentos quilômetros horários sem cansar. O interessante em tudo isto fora o fato de que a fisiologia peculiar da jovem recebera muito bem o soro, promovendo permanentemente os efeitos deste. Soturna era rápida.

 

O automóvel começou a perder visivelmente a velocidade, estacionando uma esquina antes do Golden Hall, o monstruoso teatro de Tartária. A dupla de heróis descera do veículo e andaram, a passos rápidos, até a entrada do recinto. As luzes dos holofotes, localizados sobre a arquitetura monumental, incendiavam os olhos do incautos, enquanto se deslocavam com velocidade por sobre os transeuntes da calçada a frente. Os letreiros luminosos ressoavam: Show com a grande Circéria! Esta noite! Apresentação única.

 

– Espero que seja a única mesmo – Exclamou Mil faces enquanto entregava seu convite e adentrava o grande teatro.

 

Soturna sorriu, e nada falou. Deram as mãos e se sentaram, na primeira fileira do espetáculo.

 

 

 

Não demorou para que o palco se iluminasse. Cada holofote detalhadamente bem posicionado direcionava seus fachos de luz para o epicentro da apresentação, mas ninguém subira. O silêncio foi quebrado pelos sons das espessas cotinas que se levantavam, revelando uma orquestra completa, separada ao meio: Uma parte em cada extremidade do palco. Em questão de instantes eles começaram a tocar.

 

Os pesados trompetes contrastavam com os delicados violinos, criando um espectro sonoro harmonioso e rítmico. O tempo era marcado pelos instrumentos percussivos, criando uma musicalidade extravagante. E entre este som, introdutório, algo aconteceu.

 

BUM! Fez o sonoro ruído vaticinado por uma cortina de fumaça branca, magicamente produzida, que elevou-se sobre o palco. Da bruma clara, uma mulher surgiu; estonteante, luxuosa, e irradiante: Circe!

 

Seus cabelos acastanhados formavam, nas pontas, um conglomerado de fios, que davam um sensação de volume único. O brilho de seus lábios só perdia em intensidade para o de seus olhos, esverdeados, que fitavam com glamour toda a plateia. O vestido vermelho, sem alças, compactado sobre seu busto e pernas, acompanhava suas curvas com sinuosidade, estacionando sobre a plateia, escondendo seus pés. Sua boca se abriu, mostrando a dentição perfeita e bem esmaltada, prenunciando uma torrente de palavras sonoras e extremamente afinadas:

 

 Pegue seu echarpe e seu colar

E pegue sua carteira e celular

E calce seus sapatos e venha olhar

Circe está no ar....

 

Tire uma cadeira e o paletó

Puxe sua gravata, desate o nó

Ouça atentamente e curta a estrofe

Circe está no ar...

 

O som era abafado pela conversa íntima de Vince e Lucita, que enquanto cochichavam, olhavam esguiamente para o palco:

 

– E não é que a desgraçada canta bem? E ainda tem presença de palco – afirmou o detetive.

 

– Tenho que concordar, apesar da orquestra ajudar muito – respondeu a heroína.

 

Os dois se entreolharam, apesar de sempre atentos à maga que, agora, deslocava-se de uma lado para o outro do palco, encantando cada ouvinte com sua sinfônica voz.

 

– E que horas iniciaremos o nosso show? – questionou impaciente Lucita, enquanto retirava um pequeno objeto cilíndrico, do tamanho de sua empunhadura, de seu busto, fechando-o em sua mão direita.

 

– Em estantes – respondeu mil faces perplexo com a cantoria e também porque esperava a hora exata para atacar.

 

Pegue seu echarpe e seu colar

E pegue sua carteira e celular

E calce seus sapatos e venha olhar

Circe está no ar....

 

– Eu não tenho toda essa paciência – exclamou a jovem enquanto se levantava rapidamente, girando em círculos rápidos e invisíveis ao olho nu. Entretanto, toda a movimentação despertou a atenção da plateia, que observando, em polvorosa, a jovem girar, começou a balburdiar atrapalhando o show.

 

– Mas o que está acontecendo aqui? – exclamou no microfone a maligna feiticeira irritadíssima com a intromissão.

 

Lucita finalmente terminou de rodopiar, e quando estacionou, já não era a luxuosa garota da sociedade que fora até o teatro contemplar a magnífica apresentação. Estava diferente:

 

Em seu rosto, uma máscara roxa envolvia os seus olhos, elevando-se nas extremidades como se fossem duas orelhas de gato. O corpo esguio perdera o brilho do vestido longo que usava: Agora estava trajado de um colam extremamente justo, que apertava seus seios e acompanhava seu abdome e costas, terminando em sua pelve. Um pequeno short escondia suas partes baixas e quase era tocado, por uma grande bota negra, da cor de todo o conjunto, que finalizada o traje sedutor da jovem. Presa em suas costas, uma capa longa também roxa, ornava com sua máscara, dando-lhe mobilidade e estilo. 

 

– Seu showzinho de horrores termina aqui Circe! – exclamou a heroína – Vai se arrepender de voltar a cidade.

 

– Soturna! Sabe que não é párea para mim!

 

De repente, uma pequena explosão aconteceu no recinto. A esta altura as pessoas já corriam em polvorosa, tentando deixar o estabelecimento. A orquestra também fugira, lançando seus preciosos instrumentos pelo palco e tentando esconder-se do confronto entre as super-humanas. Da explosão, uma cortina de fumaça elevou-se, revelando Mil Faces! Agora devidamente trajado, apontando sua pistola tóxica em direção a feiticeira!

– Comigo aqui Circe, certamente Soturna pode acabar com você!

 

A heroína ao ouvir tais palavras apertou o objeto metálico, cilíndrico, em suas mãos, estendendo das extremidades deste, dois longos canos metálicos, que criaram um resistente bastão, do qual Lucita rodopiava no ar enquanto investia sobre a inimiga.

 

O ruído chapado e oco provocado pelo choque da arma sobre o ombro da feiticeira foi vaticinado pelo disparar da pistola ácida de Vince sobre sua algoz, mas quando este foi atingi-la, a maga desapareceu. Reaparecendo longe do local prévio, com sua mão sobre o ombro, enquanto praguejava algo inaudível

 

– Pagarão caro por estragar o meu show! – trovejava a feiticeira enquanto observava os remanescentes da plateia tentando se esconder atrás de cadeiras e pilastras.

 

Circe levantou sua mão e dela uma torrente de raios lançaram-se sobre a dupla de heróis, tostando acentos e derrubando objetos. As luzes, que brilhavam intensamente sobre o palco, foram destruídas, restando apenas a iluminação da plateia, que agora era bem fraca. Mil faces saltou de um lado para outro, evitando ser atingido e ao mesmo tempo tentando, em vão, mirar sua pistola na feiticeira. Soturna, ativando sua incrível velocidade, escapou dos ataques, lançando-se em direção a bruxa, que antes de ser atingida, desapareceu novamente, reaparecendo sobre o palco escuro.

 

– Vai fugir até quando Circe? Não pode com minha super velocidade!

 

Ao proferir tais palavras, Soturna encaixou seus olhos sobre a feiticeira, e com um movimento rápido, lançou seu bastão sobre a inimiga. O som do movimento rotatório do objeto no ar alastrou-se no salão, e quase atingiu Circe se não fosse por um pequeno detalhe:

 

– Isso é o máximo que pode fazer?

 

Floreando seus dedos com maestria, a bruxa converteu, ainda em ar, o bastão da heroína em três pombas brancas, que tomaram o ar rapidamente.

 

– Hahahaha! Que patético! Vai se arrepender por ter me ferido Soturna!

A bruxa bateu seus pés com força sobre o chão, criando uma pequeno terremoto. A dupla começou desequilibrar enquanto uma torrente de rocha e terra, proveniente do solo exatamente sobre os pés da feiticeira, lançou-se sobre ambos. Soturna foi atingida em cheio e jogada sobre as cadeiras, perdendo a consciência temporariamente. Mil faces se esquivou, lançando-se sobre o chão, enquanto arremessava uma de suas bombas de fumaça em Circe.

 

O som da pequena explosão retumbou sobre o palco. Uma cortina de fumaça densa e concentrada envolveu a feiticeira enquanto esta tossia brevemente. De seus dedos, mais um floreio foi produzido, criando uma forte torrente de ar, que propeliu a fumaça para longe. Quando recobrou a visão, não havia mais ninguém.

 

– Hum... então Mil Faces é tão bom em se esconder quanto se passar pelos outros? Apareça para que eu possa esmagá-lo.

 

Os olhos da feiticeira perscrutavam cada canto, e seus ouvidos, ligados, estavam prontos a alertar qualquer barulho. Rondou toda a plateia, e não observou ninguém! Nem Soturna!

 

– Mas que maldição está acontecendo aqui?

 

– Pare de falar e se defenda – bradou a heroína, enquanto saltava de trás de duas grandes caixas de som empilhadas no background do palco. Com um chute alto, atingiu em cheio a cabeça da feiticeira, lançando-a longe. Aproveitou o momento e, à incrível velocidade, correu em direção a inimiga imobilizando-a temporariamente.

 

– Agora Mil Faces!

 

Sem completar direito a frase, uma cadeira desprendeu-se da plateia, seguida de instrumentos musicais derrubados no chão e utensílios diversos de som, invadindo o ar e atingindo Soturna. A magia de Circe teleguiara os objetos até a  heroína. O ataque lançou-a longe, libertando a bruxa para continuar a conjurar.

 

De repente Circe cambaleou. Uma fumaça fina envolveu o seu rosto enquanto um formigamento instantâneo tomou conta de seu corpo. Sentiu que ia desmaiar, e inevitavelmente desmaiou.

 

De trás dela, Mil Faces, inerte, jogava sobre o palco o frasco vazio do gás aspergido sobre a feiticeira.

 

– Éter em gás! Bem concentrado! Muito melhor que em sua forma liquida, além derrubar por várias horas. – Exclamou o detetive. Tinha conseguido mais uma vez. E Circe estava liquidada.

 

 

 

O ruído das sirenes e autofalantes alertavam os moradores de Downtown, próximos ao teatro, de que alguma coisa havia acontecido. Em meio a destruição e os olhares curiosos dos transeuntes, Circe, fortemente vigiada e algemada por um dispositivo leve e intensamente resistente, que não permitia a movimentação das mãos, caminhava pela calçada em direção ao veículo policial de apreensões. Seus olhos semicerrados, típicos de alguém que fora dopado aliado a dificuldade em caminhar, denunciavam os efeitos neurodepressores do Éter gasoso de Mil Faces. Ela estava irritada, frustrada e com desejos de vingança, que certamente demorariam a ser aplicados.

 

No final da rua, ainda trajando seus trajes de batalha, Vince e Lucita conversavam sobre a ação.

 

– Minhas costas ainda doem. Apanhei como uma cachorra esta noite.

 

– É o preço Soturna, por lutar contra o crime. As vezes me pergunto como você se esquece disto tão facilmente.

 

– É difícil não reclamar quando três cadeiras e dois trombones caem na sua cabeça, isso depois de ter sido lançada no ar por pedras vindas do chão. Porque você não se machucou? ... hunf... Você nunca se machuca.

 

– Quem luta com o cérebro evita lesar o corpo minha cara. E do mais, não teria conseguido sem você. Você...digamos... tem energia!

 

Soturna fechou a cara, e com um movimento rápido atingiu o braço de Mil Faces, que rapidamente exclamou:

 

– Au! É exatamente sobre isso que acabei de dizer!

 

O silencio tomou conta dos jovens guerreiros, que andavam timidamente em direção ao automóvel. Este silêncio fora quebrado por Lucita que exclamou com felicidade:

 

– Formamos uma boa dupla lá... não? Quer dizer, juntando nossas habilidades demos um basta em Circe. Não é algo que conseguiríamos tão facilmente se não estivéssemos juntos.

 

O rosto de Vince mudou de estrutura. Não que fosse possível perceber, devido sua máscara teatral obliterante. Mas seus olhos afilaram-se e sua boca deu sinal de um sorriso leve e sarcástico, como se esperasse que ela dissesse aquilo.

 

– Isso porque ela não esperava que recebesse um ataque duplo! – exclamou o detetive com resiliência sendo bastante reticente no final.

 

– Hum?

 

– Claro Soturna! Os vilões desta cidade, sabem que podem transgredir as leis porque não é possível que os heróis, mesmo que vigilantes, estejam em todos os lugares ao mesmo tempo. E também nunca pressupõem que serão atacados por um grupo deles. Agimos individualmente, o que é uma grande desvantagem.

 

– Aonde você quer chegar Vince? – Indagou a garota curiosa

 

– Quero propor que façamos um liga ou melhor, uma sociedade. Assim seremos mais eficientes, e trabalhando em equipe, nossos resultados serão plenos! Poderíamos recrutar os principais combatentes do crime desta cidade, e assim, seríamos invencíveis.

 

– Faz sentido. Mas se eu te conheço, você já pensa nisso a muito tempo!

 

– Claro minha querida – respondeu o astuto detetive enquanto envolvia com seus braços, os ombros de Soturna – Eu penso em CABALA! Este seria o nome de nosso grupo! E como integrantes da cabala seríamos formidáveis! A pergunta é; Vai me ajudar com este projeto?

 

– Não sei. Respondeu secamente a heroína.

 

Vince sorriu. Sabia que ela era dele.

 


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Notas finais do capítulo

Amigos! espero que apreciem!

Esta história será quinzenal! Assim como a Entidades! Agora que a fanfic de cavaleiros está no fim da primeira temporada, darei um tempo para escrever mais estas duas!

Obrigado a todos!
E Reviws, please!



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