Goteira. escrita por Mestre do Universo dos Vermes


Capítulo 1
Gota por gota.


Notas iniciais do capítulo

O que fazer quando seu humor está muito mais para baixo que o normal e você se sente um poço de negatividade?

Resposta: escreva um conto sombrio e canalize essa negatividade em algo positivo.

Pelo menos é minha ideia, você é livre para fazer o que quiser com seus momentos negativos...

Aproveite.



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Eles estavam felizes. Tão felizes.

Recém-casados. O primeiro dia do resto de suas vidas. O momento que duas almas se tornam uma. A grande escolha de compartilhar uma vida.

E que modo melhor de começar que morar junto com sua pessoa amada?

Por isso os dois entraram sorridentes na nova casa. O homem carregando sua bela esposa nos braços e os dois sorrindo como idiotas apaixonados.

Que clichê.

Mas o amor é clichê, não?

A primeira casa... Que grande momento. Não é das melhores, mas estava conservada e com um preço ótimo, então por que não escolhê-la?

O único defeito era uma pequena goteira que pingava incessantemente.

Mas os dois apaixonados, no caminho para a lua de mel no quarto, nem repararam esse detalhe frívolo.

Os dois se amaram.

A goteira pingava.

...

Ping.

...

Ping.

...

Ping

...

O homem conseguiu uma promoção no trabalho.

Grande momento.

Sua esposa ficou tão feliz por ele.

Os dois tem grandes planos. Sim, tantos e tantos planos para o futuro...

Está tudo tão perfeito.

Ela pede pizza para comemorar e os dois conversam animadamente na mesa enquanto a devoram alegremente.

A conversa é encerrada por um beijo e um olhar de cumplicidade.

Ao fundo, um som ritmado, quase imperceptível.

...

Ping.

...

Ping.

...

Ping.

...

Não foi um acidente. Não... Foi apenas a vontade de Deus.

E se Deus decidiu que era hora de terem um filho, então por que não?

Mesmo não planejada, a gravidez foi muito bem recebida.

A mulher estava radiante e seu marido já planejava o enxoval e pensava nomes para o futuro bebê.

Eles seriam uma família. Uma família completa.

A criança seria recebida com muito amor.

Antes de dormir, porém, a doce grávida chamou atenção para o detalhe da goteira. Era melhor consertar o quanto antes. Já estava começando a incomodar.

Por hora, tudo bem. Tantos planos. Tanta felicidade.

E o gotejar permanecia por hora, mas estava com os dias contados.

...

Ping.

...

Ping.

...

...

A criança nasceu.

Tão logo abriu seus olhos, encontrou o olhar afetuoso dos pais.

Uma família tão perfeita.

O bebê cresceria rodeado de amor.

Tantos sorrisos, festas, presentes, brinquedos.

Um dia, de repente, o pai perdeu o emprego.

Tudo bem. Acontece. Ele logo se recupera, não?

A goteira voltou a pingar.

...

Ping.

...

Ping.

...

Ping.

...

Arrumar emprego é tão difícil hoje em dia, não?

Um ano se passou, o pai não se restabeleceu.

Sobrevivia de um ou outro trabalho temporário. Sua esposa também começou a trabalhar.

O bebê realmente não ligava muito. Não entendia o que estava acontecendo.

Sua mãe foi trabalhar. Seu pai ficou em casa.

O homem se sentia tão inútil... Incapaz de sustentar a própria família.

Ele devia olhar o bebê. Ele estava olhando o bebê.

Inútil. Bebê. Incapaz. Bebê. Fraco. Bebê. Patético. Bebê.

Por que era tão difícil se concentrar numa tarefa tão simples quanto vigiar o próprio filho?

O rosto do homem estava tão triste.

O bebê não se importava. Não entendia.

Ele estava tão desamparado.

O bebê não se importava. Não entendia.

Sua cabeça girava.

O bebê não se importava. Não entendia.

Ele só queria se esquecer.

O bebê não se importava. Não entendia.

Uma garrafa de uísque tocou seus lábios.

O bebê não se importava. Não entendia.

O mundo dele voltou a ficar em paz.

A goteira pingava.

...

Ping.

...

Ping.

...

Ping.

...

Sua esposa estava tão brava.

O chamava de tantos nomes feios.

Vagabundo. Imprestável. Bêbado. Inútil.

Tudo o que você faz é ficar nesse sofá e beber até desmaiar.

Ela está certa, não está?

Ele se envergonhava.

Ele queria esquecer essa vergonha.

Então ele bebia.

Ela não aguentou aquilo por muito mais tempo.

Gritou com ele.

Ele não pensava direito.

Os dois brigaram.

O filho deles ficou bem quieto no quarto, esperando os sons horríveis passarem.

Isso sempre acontecia quando sua mãe chegava em casa e seu pai cheirava a álcool.

Briga.

Discussão.

Gritos.

Carne contra carne.

Carne contra a parede.

Silêncio.

Sua mãe usou mangas compridas no dia seguinte. Estava calor.

Seu pai não estava muito melhor.

O calmo gotejar era a única constante.

...

Ping.

...

Ping.

...

Ping.

...

O garoto já tinha oito anos.

Grande o bastante para entender pelo menos um pouco do problema.

Grande o bastante para passar o máximo de tempo possível na escola.

Grande o bastante para não querer voltar para casa.

Seu pai conseguiu arrumar outros empregos, mas foi demitido de todos por "problemas com alcoolismo".

Sua mãe estava farta.

Ela queria o divórcio.

Ela queria ir para bem longe.

Ela queria levar seu filho e apenas partir.

Isso não aconteceu.

A goteira pingava.

...

Ping.

...

Ping.

...

Ping.

...

Uma discussão mais acalorada.

Uma criança de dez anos escondida debaixo da cama.

Gritos.

Raiva.

Silêncio.

...

...

...

Choro.

Lamentos.

Palavras desajeitadas de desculpas. Palavras bêbadas, tropeçantes e arrependidas.

Uma mulher morta na sala de estar.

Olhos sem vida.

Um hematoma feio na cabeça lhe corrompia o belo rosto. Sangue escorria de seus lábios frios entreabertos e caía no chão.

...

Ping.

...

Ping.

...

Ping.

...

O homem não podia aguentar isso.

Não assim. Não agora.

O corpo permanecia estendido do chão.

O que ele fez?

Sua mente lutava para formar pensamentos racionais em meio ao torpor do álcool.

O que ele fez?

Ele não podia viver com isso.

Não. Não podia.

Havia uma criança apavorada no andar de cima.

O entorpecimento não permitiu que ele se lembrasse dela. Não permitiu que ele pensasse nela.

Não permitiu que ele pensasse.

O que ele fez?

O que ele fez?

Ele não podia viver com isso.

Não.

Uma arma.

Ele tinha uma arma.

Onde estava a arma?

Ah sim...

Passos ecoando pelo corredor.

Passos cambaleantes e irregulares.

Uma criança ainda apavorada se escondeu debaixo da cama o máximo que pôde.

Medo.

Passos.

Passos.

Passos.

Silêncio.

Tiro.

Silêncio.

Mais sangue gotejava no chão.

...

Ping.

...

Ping.

...

Ping.

...

Sirenes.

Polícia.

Perguntas.

Funerais.

Psicólogos.

Psiquiatras.

O garoto não disse uma palavra.

Internação.

Sua mente já não estava realmente ali.

Ele se cortou.

Camisa de força.

Ele se jogou contra a parede.

Quarto branco.

Paredes macias.

Uma única lembrança.

Riso insano.

Um único som em sua memória.

Ele batia a cabeça ritmadamente contra a parede macia. A parede fazia um som abafado.

Não importava, em sua mente, era sempre o mesmo som.

...

Ping.

...

Ping.

...

Ping.

...

Um jovem casal se uniu em sagrado matrimônio.

Um dia tão feliz. Tanta festa. Tanta cumplicidade. Tanto amor.

Compraram uma casa, a primeira. Não é das melhores, mas está em bom estado e o preço estava ótimo.

Só tem um pequeno defeito.

Uma goteira incessante.

...

Ping.

...

Ping.

...

Ping.

...

 

 

 

 

 


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Notas finais do capítulo

Moral da história: economize água! Conserte os vazamentos!

E com essa eu acabei de estragar completamente todo o clima da história...

Mas, quer saber, não importa, me sinto bem melhor!

E isso acabou bem mais longo do que eu achei que ficaria...

Enfim, espero que tenha gostado!

Bye.