Cicatrizes de Aço escrita por Izabell Hiddlesworth


Capítulo 1
Da capo


Notas iniciais do capítulo

Olá!

"Da capo" é um termo musical que, nas partituras, marca um ponto a partir do qual se deve repetir as frases musicais desde o início.

Boa leitura!



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 Hélio estava no meio da música que vinha compondo – numa frase particularmente difícil – quando batidas na porta fizeram a melodia se calar no arco do violoncelo. Ele suspirou levemente aborrecido e pediu que a pessoa entrasse, aproveitando o meio tempo da abertura da porta para ajeitar os cabelos. As articulações de seus dedos ardiam pelo esforço repetitivo, mas não estavam nem perto de descansar.

— Professor, pode vir aqui um instante? — Magda, a secretária do Conservatório, colocou a cabeça para dentro da sala com um sorriso animado. — Seu novo aluno acabou de chegar.

 Cuidadosamente, Hélio apoiou o violoncelo e o arco no suporte e caminhou para o saguão. Sua mente trabalhou rápido para se lembrar de todas as informações que a secretária havia lhe passado acerca do garoto.

— Samuel, esse é o professor Hélio — Magda o apresentou assim que pôs os pés para fora da sala. — Ele vai ser seu instrutor de violoncelo.

 Encolhido num moletom azul-marinho, seu novo aluno mal ergueu os olhos para ele enquanto se aproximava. Band-aids coloridos do Star Wars se destacavam contra sua pele escura, e a mão direita estava envolta em uma luva ortopédica. Era alto e exalava um ar de maturidade precoce para os seus treze anos – se Hélio se lembrava bem da ficha que Magda lhe mostrara.

— Professor, esses são Samuel, seu novo aluno, e os pais dele, Lígia e Raul.

 Os pais, estrategicamente posicionados atrás de Samuel, colocaram mãos encorajadoras sobre seus ombros. Um casal de meia-idade, com ar sofisticado e um tom de pele que diferia ligeiramente do do filho.

— Olá. — Raul abriu um sorrio amistoso, caminhando para um aperto de mão.

 Hélio o cumprimentou com sua pose profissional, sentindo-se ser discretamente estudado. Os pais de Samuel provavelmente não esperavam que o professor fosse ser tão novo – seguindo os padrões de ensino de música clássica.

— Diga oi, Samuel — a mãe afagou o ombro do garoto delicadamente e deu um sorriso gentil para Hélio. — Desculpa, professor, ele ainda está meio inseguro quanto às aulas.

 Samuel baixou os olhos e enfiou as mãos dentro do bolso do moletom. Não parecia feliz de estar ali, como tantas outras crianças que eram arrastadas pelos pais para aprender música clássica à força.

— Oi, Samuel. — Hélio inclinou-se para ele, tentando um sorriso simpático.

 Os lábios dele estavam rachados e havia hematomas rodeando os band-aids. Por um momento horrível, Hélio viu a si mesmo quase naquela idade, quando era difícil passar uma semana inteira sem machucados e curativos. Essa época ficara para trás há muito tempo, mas suas marcas – fantasmas invisíveis – ainda latejavam às vezes.

— Quer ir lá dentro e dar uma olhada nos celos? — Ele indicou sua sala com um meneio de cabeça. — Pode experimentar o piano ou um dos violinos também.

 O garoto anuiu timidamente, escorregando das mãos da mãe num movimento hesitante. Hélio percebeu uma falha na parte de trás de seu cabelo crespo e distinguiu um curativo. Um gosto amargo invadiu sua boca, pensando em como crianças podiam ser realmente cruéis.

— O professor já vai conversar com você, querido. — Magda fechou a porta atrás de Samuel com cuidado e então se voltou para os pais. — Eu preciso voltar para a secretaria, mas vocês podem falar com o professor Hélio à vontade.

 A mãe de Samuel esperou que o som dos saltos de Magda sumisse na curva da escada para deixar que os ombros relaxassem. O pai afastou-se discretamente para espiar o filho pela janela na porta da sala.

— Bom, recapitulando, eu sou a Lígia e aquele é o Raul, meu marido. — O pai virou-se para um aceno de mão rápido.

— Eu sou o professor Hélio. — Repetiu a apresentação com um sorriso, gesticulando para as cadeiras do outro lado do saguão.

 Lígia o acompanhou ansiosa, sentando-se rapidamente.

— Um mês atrás, a psicóloga do Samuel nos disse que ele precisava de uma atividade relaxante, mas que exigisse um pouco de empenho. Ela sugeriu música, ele escolheu o violoncelo, e, bem, aqui estamos. — Ela abriu os braços minimamente. — O Samuel é um menino muito especial, sabe? Mas se tornou complexado depois de tudo o que passou. Sofreu por ser adotado, por ser um negro com pais brancos... — fez uma pausa, esperando qualquer reação de Hélio.

— Posso imaginar que sim — ele respondeu com tranquilidade. — O bullying infantil consegue ser bem pesado. Passei por isso por volta dessa idade também. Um garoto com olhos meio puxados e cabelo comprido não era exatamente o primeiro a ser escolhido para um time na educação física. — Deu de ombros, como se houvesse nada a ser feito.

 Lígia sorriu com compaixão, erguendo as bochechas manchadas pelo tempo. Hélio suspeitou ali que Samuel tivera muita sorte de ser adotado por aquele casal.

— Bom, eu estou dizendo tudo isso para pedir que você não toque em assuntos que possam chegar aos pontos fracos. Mudamos ele de escola depois de um episódio particularmente violento, você viu a coleção de curativos, para garantir que tivesse espaço para se recuperar, mas tudo ainda está muito fresco.

 Hélio levantou-se e ofereceu uma mão a ela.

— Lígia, não vou falar sobre nada que o Samuel não queira. Estamos aqui para tocar e apenas para isso. Mas se ele precisar que eu o ouça, pode ter certeza que eu oferecerei um ombro amigo.

 Caminharam de volta para frente da sala, onde Raul abandonou a vigia para se juntar aos dois. Hélio pensou que os olhos do casal praticamente imploravam para que ele ajudasse seu filho.

 Quando eles foram embora, já havia se passado quase metade da aula, mas o professor não se importou. Com cautela, abriu a porta e encontrou Samuel tentando encaixar um violino entre a lateral do rosto e o ombro. Estava voltado para as grandes janelas que davam para a avenida lá fora. O som que saía das arranhadas do arco nas cordas era penoso, provocando uma careta em Hélio. Mas com as limitações da luva ortopédica, não havia muito que fazer.

 O professor assumiu sua cadeira novamente e posicionou o violoncelo entre as pernas. Ponderou se esperava o garoto terminar de brincar e perceber sua presença, ou se o interrompia de uma vez.

— Samuel — chamou por fim, fazendo o aluno se sobressaltar. — Por que não senta aqui — indicou a cadeira vazia à sua frente com o arco do violoncelo — e me fala um pouco sobre suas músicas favoritas?

 O aluno girou nos calcanhares para encará-lo, exibindo uma expressão completamente indiferente.

 Hélio insistiu para que ele se acomodasse na cadeira, anotando mentalmente que lidar com crianças mimadas, adolescentes cheios de fantasia e adultos frustrados era uma coisa; outra bem diferente era lidar com alguém que fora marcado de modo tão ruim.

 Aquele era um caminho completamente novo e ele estava inseguro sobre como segui-lo. Mas teria de encontrar um jeito com Samuel.


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