Helena escrita por Ananda Ayira


Capítulo 1
Helena (So long & goodnight)


Notas iniciais do capítulo

Hello, sweethearts...
Espero que não tenham vindo aqui sob intenções de ler uma história sem chorar...
Ah, os links durante a história são extras, abram se quiserem...
E espero muito, de todo meu coração que gostem dessa história.
Sem mais delongas, boa leitura!
Nos vemos nas notas finais...



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Estacionei o carro da funerária na lateral do jardim. Tudo estava quieto. Não apenas porque era sábado, mas também porque o jardim ficava bem do lado do cemitério. Já me acostumara a sujar meus tênis com a terra escura dali.

Quando não havia nenhum funeral para atender, minha mãe deixava que eu usasse o carro da empresa de serviços funerários para sair. Contanto que eu deixasse meu celular ligado e no volume máximo e, caso houvesse alguma emergência, eu deveria levar o carro de volta imediatamente.

As mensagens de Helena falavam pelas metades e apenas diziam para que eu a encontrasse perto dos arbustos de rosas, no limiar entre o jardim e o cemitério, o “nosso lugar”.

E lá ela estava. Sentada de costas e em cima do casaco. Os cabelos pretos se mexendo com o vento de outono, as pernas com coturnos dobradas para trás com a saia vermelha e um suéter preto para disfarçar que não tirara o collant.

— Hey. – Falei sentando-me na grama ao seu lado.

— Hey. – Ela me olhou.

— O que tem aí? – Perguntei, apontando a garrafa térmica em seu colo.

— Café. – Ela respondeu rindo.

— Interessante... – Eu disse, simplesmente pegando a garrafa e pondo um pouco para mim, na tampa.

Helena riu, mas retirou o sorriso do rosto muito rápido.

— O que houve? –Questionei-a, enquanto dava um gole na tampa.

— Nada. – Suspirou ela.

Arqueei as sobrancelhas para ela. Sabendo que era mentira.

— Com o ano quase acabando, cada vez mais meus pais me cobram que eu largue tudo para fazer o que eles querem. – Confessou olhando para frente.

— Tudo?...

— A dança, meus trabalhos na escola de Artes, até as pinturas... – Ela falou.

— Eles apenas têm medo de...

— De que eu não consiga? – Interrompeu ela. – De que eu envergonhe eles? Que eu acabe falindo a família inteira, por não querer trabalhar num maldito escritório!?

Ela me olhou com os olhos cheios de lágrimas.

— Ei, calma. – Disse pondo a mão em seu ombro. – Eu ia dizer que eles têm medo de não estarem mais tão perto de você, quando for estudar Arte.

Ela apenas abaixou a cabeça e mexeu no cabelo. Já faziam alguns meses que essa conversa se repetia. Helena queria estudar Artes, e não contava com o apoio de ninguém para isso. Eu a apoiava, mas não era esse apoio que ela buscava. Ela queria que os pais a apoiassem.

Depois de horas de outros assuntos, de filmes, bandas que apresentei a ela, a como ela ia nas aulas, de dança e de desenho, e piadas da Internet. Depois, ficamos em silêncio vendo o que restava da tarde passar e esvaziando a garrafa de café. Eu bebendo na tampa e ela no gargalo. Ela encostou no meu ombro e eu beijei o alto de sua cabeça.

E, como tudo que é perfeito, aquilo não podia durar muito. O celular de Helena tocou ao seu lado. Ela revirou os olhos e se endireitou, ao ver a identificação da chamada na tela.

— Oi. – Disse sem a menor animação. – Você sabe onde eu estou.

Eu não conseguia entender corretamente o que a pessoa do outro lado falava, mas deixou Helena perturbada.

— Sim, eu estou com Adrian. – Ela falou. – Não, eu não me importo com o que você me disse sobre ele. Porque é mentira.

Meu coração apertou. Os pais de Helena, na verdade os pais de ninguém, não achavam que eu era uma boa companhia. Embora, não tenha me metido em brigas ou coisa do tipo e não tenho problemas com notas na escola desde que me mudei para cá, pelo menos.

Depois de um longo sermão, durante qual Helena tirou o telefone da orelha, rindo, e fingiu desentupir os ouvidos, pelo menos, três vezes. Ela desligou dizendo:

— Está bem, estou indo.

Fitamo-nos por alguns instantes em meio sorrisos.

— Então, acho que você já vai? - Perguntei retoricamente, me levantando também.

Ela riu e sacudiu os ombros. Peguei seu casaco do chão e sacudi as folhas.

— Obrigada. – Agradeceu rindo.

— De nada. – Respondi. – Precisa de uma carona? - Perguntei, me aproximando dela e o coloquei sobre seus ombros.

— O que meus pais diriam ao me ver no carro funerário? – Ela falou ironicamente.

Arqueei as sobrancelhas e ergui as mãos, em “fazer o que?”.

 – Vamos. – Ela gargalhou e pegou minha mão.

Fomos rindo disso até o carro. Helena sentou-se no banco do passageiro e eu liguei o rádio, quando entramos.

—Now, I know that I can’t make you stay… – Cantou Gerard Way. “Famous Last Words”, era uma das minhas favoritas.

À essa altura, eu era mais que responsável por ter viciado Helena em My Chemical Romance e em outras bandas que eu gostava. E, por mais que ela ainda amasse The Beatles, gritava comigo no refrão:

— I am not afraid to keep on living I am not afraid to walk this world alone!

— Honey, if you stay, I'll be forgiven Nothing you can say could stop me going home! – Ela cantou balançando a cabeça.

Três músicas e meia depois, estacionei de frente à sua casa e abaixei o volume.

— Eu tenho que ir. – Ela falou, ameaçando abrir a porta. Mas eu a impedi.

— Pode se atrasar um pouco...

Puxei seu rosto para mim, prendendo-a nos meus lábios e nos meus braços antes que fosse embora.

— Preciso mesmo. – Helena sussurrou. Ainda de encontro ao meu rosto.

Eu lhe dei outro beijo. Enquanto ela sorria. Ela cedeu e se enroscou no meu pescoço, ficamos nos beijando mais alguns instantes. O ar nunca significava tão pouco. E o mundo, menos ainda, como quando estávamos juntos. Relutamos até o último momento em nos separar.

Até mais.— Ela me empurrou e riu, brincando com o nariz no meu. – E boa noite.

— Até mais. – Repeti. Beijando-a novamente. – E boa noite, Helena.

Fiz um esforço enorme para soltá-la e vê-la sair apressada, vestindo o casaco e procurando a chave do portão em seus bolsos.

Ri e aumentei de novo o volume. Batucando “Teenagers” no volante enquanto dirigia até o que aprendi a chamar de casa. Que ficava bem ao lado da funerária, por sinal.  

Mas acho que meus vizinhos ficaram decepcionados quando nos mudamos, e viram que, não éramos cosplayers de “A Família Addams”. Okay. Talvez eu fosse um pouco, por não trocar as camisetas pretas, ou com estampas de bandas de rock, por outras mais alegres ou coloridas. Mas minha mãe não era nem um pouco Mortícia, ao contrário, ria fácil de qualquer coisa e adorava usar roupas azuis e seus cabelos loiros semi-presos com presilhas.

— Oi mãe. – Falei, ao vê-la sair de trás da mesa e apanhar a bolsa.

— Ah. Olá, querido! Nós já vamos. Só preciso desligar isso aqui. – Ela disse tirando tudo que encontrava ligado em tomadas.

A placa de neon do lado de dentro que dizia “Desculpe, estamos mortos”, ao invés de dizer “Desculpe, estamos fechados” tinha sido ideia dela. Com a finalidade de deixar o lugar menos sério (para não dizer, mórbido). Óbvio, ninguém gostava de estar lá e ver aquela placa. Mas ela não a tirava dali.

— Vamos. Estou morta de fome. – Resmungou ela enquanto atravessávamos a porta que separava a varanda de casa dos fundos funerária.

 Assim que entrei, deixei o celular em cima da mesa, enquanto minha mãe pedia uma pizza e eu ia tomar banho.

Quando a pizza chegou, minha mãe e eu sentamos envolta da mesa de centro e ficamos assistindo um filme. Às vezes, trabalhar na funerária deixava minha mãe tão exausta que ela mal abria a boca.

Aquela história de que, para quem trabalha com mortes, o infortúnio alheio é brisa do campo. É uma pura mentira. Seis meses, vivendo dos lucros de velórios, caixões e placas de túmulos, provaram isso.

Depois de uma pizza inteira e mais três quartos. Chequei meu celular, não haviam mais mensagens de Helena. Achei estranho, mas talvez ela tivesse que estudar. A escola não era agradável com nenhum de nós dois.

Helena não era exatamente a nerd. Esforçava-se, de verdade, apenas em Artes e História. O resto, ela fazia o suficiente para passar de ano.

Quando se chega de paraquedas numa escola, ninguém é receptivo com novatos. Helena era apenas indiferente. Não estava a fim de me crucificar pelo meu jeito, e nem de me conhecer a princípio. Depois, de eu tê-la apanhado me encarando na aula de geometria algumas (várias), vezes que me fizeram ter coragem de quebrar o gelo e falar com ela.

Em alguns meses, o “nada contra, nem a favor”, tornou-se nossa paixonite. Vivida a cada dia, depois da aula, no jardim do lado do cemitério. Ela não gostava muito dali, e do cemitério, mas gostava dos arbustos de rosas vermelhas que dividiam o jardim onde nos encontrávamos dos túmulos.

Eu estava no meio de um filme e minha mãe apagada no sofá, quando ouvimos o telefone tocar dentro do escritório da funerária. Quando parou, depois de uns cinco minutos, foi a vez do telefone de casa.

Minha mãe, se levantou e atendeu na cozinha. Abaixei o volume da TV, mas minha mãe também abaixou a voz. O que me fez ficar apreensivo.

— O que houve? – Perguntei quando ela voltou.

— Nada. – Ela desconversou. – Temos que buscar um corpo, logo de manhã, okay? No hospital, na ala do necrotério. O funeral é amanhã mesmo. – Ela falou, sem rodopios.

— Okay. – Respondi.

Não era tão incomum receber pedidos de enterros de madrugada. A maioria das mortes eram de noite, e bem tarde. Pelo menos, as mortes que tinham histórias. Assaltos, acidentes e outros.

— Ahn... Eu... vou dormir. Você limpa aí, para mim? – Ela parecia nervosa. Como se estivesse querendo escapar de mim.

— Claro. – Disse, me levantando e juntando os copos para pôr na pia.

— Eu te amo. E sempre, sempre, vou estar aqui para você. – Ela pôs a mão no meu rosto e depois me abraçou, forte. Como há muito tempo não me abraçava.

Definitivamente. Havia alguma coisa errada. Não apenas pelo abraço da minha mãe, ela podia simplesmente estar carente. Mas, tão de repente, depois daquela ligação.

Havia algo errado. Eu senti. Eu soube.

No dia seguinte, quando acordei, minha mãe já estava na funerária. E, quando fui para lá, uma família chorosa tinha acabado de sair. Olhei pela janela e vi um carro conhecido.

— Era o carro dos pais da Helena? – Perguntei, sem pensar duas vezes.

— Não! Não. –Ela respondeu de imediato, fechando o catálogo dos modelos de caixões que acabara de oferecer.

— Eram a família da pessoa que vamos buscar no hospital? – Indaguei.

— Sim. Vieram escolher o caixão e deixar algumas coisas para quando eu fosse arrumar o defunto. – Ela disse.

— Hum. Qual eles escolheram? – Perguntei. Ia sobrar para mim colocá-lo dentro do carro, de qualquer maneira. Saber qual era, logo de cara, facilitava as coisas.

— O preto. – Respondeu. – Retangular com as alças grossas prateadas. Coloque no carro.

Depois que prendi o caixão, vazio, na parte de trás e fui para o banco do motorista. Minha mãe saiu da funerária com uma sacola de papel, um buquê de rosas vermelhas e a bolsa no ombro, trancando a porta em seguida.

Quando ela sentou no banco do passageiro, não liguei o rádio. Ela estava mais quieta, mas não menos pensativa e inquieta que na noite anterior. Eu queria perguntar o que estava acontecendo, mas alguma coisa me segurava para não o fazer.

O dia estava completamente nublado, cinzento e escuro. Com toda a certeza, choveria à tarde. O que Helena chamaria de “dia perfeito”, em que ela dormiria a tarde e ficaria assistindo filmes o resto do dia. E me contando sobre eles por mensagens, já que não poderíamos estar juntos.

A família de Helena não gostava de pensar nela como alguém que arrumava namorado. Na verdade, eles não gostavam que eu fosse o namorado dela. Mas falar que ela não podia namorar era um jeito de afastá-la de mim e tentar trazê-la entrar para o negócio de contabilidade da família, que não a deixaria ter tempo para isso, de uma vez.

Estacionei na saída da ala do necrotério, nos fundos do hospital. Silenciosamente, minha mãe foi saindo do carro. Quando a sacola de papel escorregou de seu colo. E, de dentro dela, caiu um embrulho preto e vermelho sob um plástico transparente. Junto com um par de sapatilhas pretas, com cadarços longos.

Eu reconheci as sapatilhas. Helena me contara sobre elas! E sobre como ela cortara fora o elástico que ficava em cima de seu pé e furara-se costurando cadarços para poder amarrá-la nos tornozelos como as sapatilhas de ponta.

De repente, minha respiração acelerou.

— Mãe, – Chamei-a e ela virou-se lentamente. – quem morreu?

— Helena Adler.

— C-como? Quando? – Balbuciei, apertando os dedos.

— Ela brigou com os pais, saiu de carro na madrugada, ... – Ela fez uma pausa, engolindo em seco. – o carro derrapou numa curva, saiu da pista e acertou um poste. Trouxeram-na para cá, para tentar reanima-la, mas...

Minha visão escureceu, minha respiração falhou e eu me inclinei sobre o volante, como se eu tivesse levado um soco. Helena estava morta.

— Ela morreu na hora.

Morta. E eu seria obrigado a dar seu último passeio no carro funerário.

— Por que você não me contou quando o necrotério ligou ontem à noite? – Perguntei, virando-me com raiva.

— Porque você precisava dormir. Eu precisava que estivesse em condições de dirigir. Eu não gosto de dirigir o carro da funerária! – Exclamou ela.

— E em que condições você acha que estou agora?! – Questionei ironicamente.

— Adrian...

Ela estava sem reação e sem saber o que fazer. Ela olhou pela porta de vidro.

— Eu preciso ir. Mas preciso que você tente se acalmar, okay? Se for esmurrar alguma coisa, pelo menos, espere os enfermeiros virem ajudar a tirar o caixão.

Minha mãe entrou no necrotério, atrasada, para arrumar o corpo de Helena. Eu bati no volante, rangendo os dentes. Eu gritei e xinguei alto. Quando eu ouvi as portas corrediças abrirem tentei segurar minhas emoções.

Levantei para abrir as portas de trás e lá estava o caixão. Onde logo estaria também Helena. Era difícil tentar imaginá-la dentro dele, imóvel para sempre. Mas desamarrei o caixão e ajudei os enfermeiros a leva-lo até onde ficavam as macas com cadáveres a serem despachados para os sepultamentos.

Quando entrei, vi minha mãe prender um véu de tela preto no cabelo de Helena e estica-lo até cobrir-lhe os olhos. Cerrados para sempre debaixo da sombra vermelha. E a pele, mais pálida que o normal dela, envolta no vestido preto, exceto por uma faixa no quadril e a parte de dentro da saia irregular, vermelha, que mostrava seus pés com as sapatilhas pretas.

Os enfermeiros, ajudaram a erguer o corpo e colocá-lo dentro do caixão. Minha mãe explicou que como deitá-la e como fechar o caixão, para que ela não batesse contra as paredes dentro dele. Mas, antes que fechassem, eu corri mais para perto.

— Esperem! – Falei, impedindo que descessem a tampa sobre ela.

— Querido, - minha mãe começou e pôs a mão no meu ombro. Porém, eu a afastei. – ela se foi.

— Acha que não percebi?! – Indaguei com ironia.

Ela colocou o buquê de rosas vermelhas perto da mão de Helena. Já que, por minha causa, não alcançava as mãos dela. Então, eu mesmo o coloquei entre seus dedos.

Droga, ela estava linda. Por que estava linda, se estava morta? Ela não ia me ouvir se eu dissesse isso à ela agora. Passei a mão sobre seus cabelos e acariciei seu rosto. Ela não ouvira nada do que eu nunca disse a ela...

Encostei meu rosto no dela, completamente gelado como se um vento forte de inverno tivesse soprado sobre ela.

Eu chorei alto. Até o ponto em que minhas lágrimas caíram no ombro de Helena e eu agarrei seus braços. Mas estavam duros como pedra, bem diferente de quando ela costumava coloca-los ao meu redor, cheios de calor quando me abraçava.

— Querido. – Minha mãe me chamou uma vez.

Mas eu deitei minha cabeça sobre seu corpo frio. Haviam tantas coisas que guardei para contar a ela quando o assunto surgisse em nossas longas conversas. Mas haviam, principalmente, coisas que eu sentia sobre ela que, agora, eu jamais diria...

— Adrian. – Ela me chamou uma segunda vez. E, dessa vez, começou a me puxar. – Adrian!

Eu não queria deixa-la. Na verdade. Eu não queria que Helena me deixasse.

Minha mãe me puxou, com força e de uma só vez do braço frio de Helena. E apressou-se em puxar a tampa preta do caixão sobre ela, antes que eu voltasse.

— Adrian, – Ela me abraçou. – tem que deixa-la ir agora.

Mas eu não estava ouvindo uma palavra. Eu só ouvia meu choro e minha mente ordenar que minha boca gritasse para Helena voltar, sem que nada saísse dos meus lábios, a não ser soluços entre as lágrimas. Enquanto eu via levarem o caixão para fora da sala.

Minha mãe me levou pela mão até o carro. E foi dirigindo, enquanto eu tremia tentando não acreditar em como Helena permaneceu fria, e duramente, morta quando a toquei.

Por um instante eu pensei que, como nas histórias que, apesar de macabras, nós dois gostávamos, um toque, um beijo, uma lágrima, ás vezes uma palavra, do amante à amada morta, eu poderia trazê-la de volta. Embora, eu estava acostumado a ver a realidade frustrar minha imaginação. Ver Helena ser tirada de mim não passava de mais um golpe cruel.

— Eu vou te deixar em casa. Tente se acalmar, de verdade, enquanto eu a deixo na igreja para o velório. – Ela me disse.

Eu respirei pesadamente. Minhas lágrimas haviam secado do meu rosto, mas ainda doía saber que Helena estava morta, e dentro de um caixão, na parte de trás do carro.

Quando cheguei em casa, levei um tempo, apenas sentado no sofá tentando criar alguma explicação para a rapidez com que Helena se fora. Mas quanto mais eu pensava sobre isso, mais eu via sentido nenhum no que acontecera.

Até eu me lembrar do que minha mãe dissera: “Ela brigou com os pais e saiu de carro na madrugada...”. Eu deixara meu celular em cima do balcão desde que cheguei ontem à noite. Levantei-me e fui até a cozinha. Ainda estava lá. E, com certeza, estava com baixa bateria. Desbloqueei a tela. Meu coração saltou à boca.

Haviam cinco notificações de mensagem. Todas sob o contato de Helena.

As quatro primeiras, somente, eram, de fato, de Helena. Ela me chamou e eu não respondi. Os pais estavam brigando com ela, e ela queria que eu estivesse ali para ela. Depois ela falava que ia sair de casa e que estava indo para o nosso lugar. E que, ironicamente, não ia voltar para casa. 

A última mensagem, era pouco depois que o necrotério ligou. Algum dos pais de Helena havia pego seu celular e dizia:

“VOCÊ MATOU A MINHA FILHA!!!”

Minhas lágrimas recomeçaram. Ela estava contando em me encontrar quando derrapou numa curva e um poste quebrou o carro, e seu pescoço. Mas teria sido diferente, se eu tivesse respondido às mensagens dela?

Em questão de minutos, eu perdi o rumo. E minha mente se encheu de perguntas. E todas eram uma variação da mesma: Como ela pôde me deixar assim?

Ser rechaçado na escola não era exatamente minha meta de vida, mas Helena tornava mais fácil suportar o dia. Sabendo que depois da aula, tínhamos um lugar para nós. Sem julgamentos e sem idiotices, a não ser as que nós mesmos fazíamos e dávamos risada.

Helena tinha sido a única coisa boa desde que mudei para essa cidade, no começo do ano, após a morte do meu avô que fez minha mãe herdar a funerária.

Com certeza, os pais de Helena estavam fazendo minha caveira, junto da Helena. Uma péssima influência que se aproximou de sua filha e, agora, causara sua morte. Eu iria ao velório de Helena. Mesmo depois daquela mensagem!

Eu entrei na igreja pela escada da porta principal. E, de início, não repararam na minha presença. Um pastor falava palavras de conforto à quem estava lá. De verdade, eu não estava ouvindo. Fui me esgueirando pela lateral.

Mordi a bochecha para me impedir de rir quando me peguei imaginando o que Helena diria sobre ver seus parentes, congelados na cena da cerimônia fúnebre, todos sérios, alguns mais e outros menos emocionados, por sua morte.

Helena sabia dizer quais eram as emoções de uma pessoa pelos seus movimentos. Com certeza, ela iria imaginar seus pais e tios dançando, num sentimento de tristeza dolorosa que os fizesse fazer solos de caras e bocas contorcidos de dor sobre chão. Tão comuns aos solos dramáticos que Helena assistia.

E seus primos, irritados com ela por criar uma situação como aquela, enquanto gostariam de estar aos beijos com os namorados e namoradas. Dançariam algo mais romântico, rodando as garotas nos braços e deitando-as no chão de azulejos, talvez?

Eu não tinha a mesma imaginação de Helena. Ela me mostrara alguns vídeos de seus solos favoritos. Um ballet sobre uma garota morta e um rapaz apaixonado que enfrentava a rainha das mortas por ela.

Helena analisava cada coreografia. E eu analisava o sorriso dela, enquanto ela sonhava conseguir fazer cada um daqueles passos. Sonhava. Apertei os olhos para espantar as lágrimas que ameaçaram retornar. E me concentrei em ver quem estava na igreja.

A maioria dos presentes usavam roupas pretas. Eu não era exceção. De camiseta preta, a gravata vermelha foi uma decisão irônica. Para combinar com as roupas de Helena dentro do caixão. Era um costume brega, os casais combinarem as roupas. Mas era algo que teríamos feito se fossemos ao baile de formatura juntos no fim do ano. E achei a ironia reconfortante, uma vez que sentia-me tão morto por dentro quanto Helena pelos dois lados.

Eu me encostei na coluna. E, quando o pastor deixou o púlpito, havia uma fila, formada em massa pelos parentes dela, que passava em frente ao caixão. Alguns tocavam suas mãos, outros faziam o sinal da cruz e ainda tocavam sua testa.

Quando terminaram de passar em frente ao caixão. Alguns dos presentes se dispersaram. O que foi a oportunidade perfeita para que eu me aproximasse.

Uma garota de cabelos loiros claros e tingidos, levantou-se e interveio na minha direção, erguendo o véu de tela preta, como o que minha mãe prendera em Helena.

— Ah, olhe só o que o carro funerário trouxe. – Ela me cumprimentou ironicamente. – Você deve ser o namoradinho da Helena que meus tios falaram.

Ela me olhava com um misto de repulsa e ódio.

— Eu sinto muito. – Eu disse, antes que pudesse pensar.

— Se sentisse alguma coisa por Helena. Teria impedido ela de queimar a própria vida desse jeito imprudente. Mas não! – Ela estaria gritando, se não estivesse fazendo força para falar baixo.

— Você deu o fósforo aceso na mão dela... - Ela esbarrou, propositalmente, o ombro em mim.

Eu continuei a chegar perto de Helena. Ela continuava ali, como minha mãe a havia deixado no necrotério do hospital.

Uma raiva. Por tudo que aconteceu naquelas menos de 24 horas. Acometeu-me. E me abraçou, tão forte ao redor do meu peito quanto o abraço de Helena.

Helena gostaria que eu ficasse com ela até o fim, em que seus restos descansassem. Mas, pelo visto, aquela era uma opinião impopular. E as coisas não seriam melhores se eu ficasse...

Mas, o que eles esperavam que eu fizesse? Qual a pior coisa que eu podia eu dizer?

Eu não estava pensando direito. Mas eu subi no púlpito de madeira e quando vi eu estava falando:

— Meu nome é Adrian Greyves. Eu conheci Helena há seis meses atrás. Vínhamos namorando às escondidas há três e vocês tentaram proibi-la de me ver mês passado. Eu sei que vocês acham que eu não deveria estar aqui. Mas eu amava Helena tanto quanto vocês. Na verdade, ao meu ver, mais do que qualquer um de vocês. Então, não vou me importar com o que disserem, eu vou falar agora! – Exclamei. Alto. Do fundo da igreja me escutaram.

— Helena me contou muito sobre vocês. São uma família grande. Mas ficava até difícil saber sobre quem ela estava falando, às vezes pareciam a mesma pessoa. Porque ela falava sempre as mesmas coisas! Como vocês achavam divertido desencorajá-la com suas piadinhas, reclamavam da escolha dela em tentar ir estudar Artes e, mais ainda, de ter que pagar as aulas dela. Tentando convencê-la de isso “não era para vida dela”.

Por fim, as pessoas começaram a prestar atenção em mim. E me ouviam, baixando a cabeça.

— Bom, adivinhem... Ela não tem mais vida nenhuma para ser dela! Nem a que ela gostaria de ter, nem a que vocês gostariam que ela tivesse. Então, de quê adiantou tudo aquilo? A determinação de vocês em tornar a vida dela numa vida conformada, como a de vocês, a fazia sentir-se mal por querer mais do que algo tão ordinário.

Minha voz já estava alguns decibéis acima do normal para ser falado dentro das paredes de uma igreja. Mas, repito, eu não estava pensando direito.

— Helena era uma garota incrível. Vocês não deviam exigir que ela se contentasse com menos do que isso!

Minhas lágrimas voltaram a cruzar meu rosto. Doeu perceber que falava de Helena no passado. Logo ela, com quem fazia sentido ter um presente e, ao seu lado, imaginar o futuro.

Helena... você consegue me ouvir? Ah, tem tanta coisa que eu não te disse, que não dissemos um ao outro. – Eu falei olhando para baixo. Para nada. – Por exemplo, eu não cheguei a te dizer o quanto eu te amo e queria passar minha vida inteira com você.

Desejei, com todas as minhas forças que ela pudesse me escutar dizer isso, deitada no caixão e despertasse. Mas, de novo, a realidade me sufocou.

— Você está perto de mim? Helena, não fizemos quase nada do que queríamos. Eu nunca fui te assistir dançar. Nós não dançamos juntos aquela música de O Fantasma da Ópera que você gostava e disse que te fazia pensar na gente. – Ri me lembrando de nós dois, no jardim perto do cemitério. – Muito menos o nosso plano de fingirmos fugir de casa por um dia inteiro, só para nos encontrarmos de novo.

Helena olhou para mim do corredor central. Eu pisquei com força que meus olhos doeram. Olhei para baixo do púlpito. O corpo continuava imóvel no caixão.

Entretanto, Helena soltou o buquê de sua mão e começou a caminhar. Levou as mãos ao peito, como se sentisse que nada mais batia dentro dele. Eu vi, em seus olhos, uma dor de distância ao mesmo tempo que ela estendeu os braços, livre como sempre quis ser. Rodopiando no meio das pessoas, ameaçava tocá-las. E ria. Porém, não emitia som algum. E voltava a girar sobre as meias-pontas.

Não falei mais nada, com ninguém. E, muito menos, alguém me dirigiu a palavra. Pelo jeito, apenas eu vira Helena dançar pela igreja.

Quando alguém que amamos morre, dizem que, é bom acreditar que essa pessoa esteja em um lugar melhor que você. Mas minha pouca fé me impedia de imaginar Helena tão longe.

Supus que meu cansaço emocional me causara alucinar com Helena. Pois quando desci correndo do púlpito e virei-me novamente para o corredor. Ela se fora, novamente. De maneira tão cruel.

Aquilo fez meu coração sangrar. Como se ela tivesse aberto uma ferida, com seu nome, dentro do meu peito. Tão profunda que demoraria para cicatrizar.

Meus pensamentos dolorosos foram interrompidos, quando uma mão no meu ombro veio me pedir para ajudar a carregar o caixão.

Eu me levantei. E, junto de outros rapazes não tão mais velhos que eu mesmo, me aproximei do caixão. Entoaram as últimas orações e abaixaram a tampa. Eu nunca mais a veria novamente. Outra pontada de dor atingia a ferida de Helena em meu coração.

A mãe de Helena gritou no ombro do marido.

O peso do caixão não era exorbitante, muito menos o de Helena dentro dele. E estava chovendo quando saímos da igreja pela porta da frente. As gotas de chuvas, não demoraram se juntar com as minhas lágrimas sobre o meu rosto.

E os cantos e orações disfarçavam o barulho dos meus soluços enquanto descíamos os degraus da escada e passávamos da igreja para o cemitério. Justamente pelo jardim, o ligar que eu e Helena tomamos por nosso. Em direção à casa de cremação.

À esquerda os túmulos e mausoléus de quem preferia ficar debaixo da terra. Com suas imagens de anjos e santos católicos. Na direita, chegávamos cada vez mais perto da casa de paredes de concreto grossas, pintadas de verde pistache há alguns anos antes e que começava a descascar.

Contudo, só é permitido entrar na primeira sala da casa. Deixar o caixão lá e sair antes que o levem para ser incinerado. As orações cessaram assim que entramos. O lugar era escuro, sem janelas. E a única porta, sem ser pela qual entramos era uma preta, que se parecia com a porta de uma geladeira. Porém, quadrangular e grande o suficiente para caixões maiores.

Ao colocarmos o caixão da gaveta na parede, os choros recomeçaram. O corpo de Helena estava para ser queimado, reduzido à menos de um quilo de pó de osso. Queimando, como um fosforo que riscara nas vidas de todos que conhecia. Tomando algo de cada coração que partiu.

Eu não era o único que Helena ferira duramente no coração. A mãe dela gritou novamente quando fechamos a porta da parede. E todos foram se afastando e saindo aos poucos. E fui deixado sozinho.

Encostei meu rosto na superfície fria.

Até mais e boa noite. Helena.


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Notas finais do capítulo

Hello again, friend of a friend...
Deixem comentários para que eu saiba o que acharam dessa história!!
Um grande beijo à todos!! ♥ :*
E até os comentários pra quem for maravilhoso e comentar!! ♥



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