Cujos quietos lábios me assassinam subitamente escrita por Vaalas


Capítulo 1
único — subitamente luminoso e preciso


Notas iniciais do capítulo

Um beijo para extinta família Tyrell, e para um filme de suspense chamado Emelie que vi nesse domingo.



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cujos quietos lábios me assassinam subitamente

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para sempre caindo neve. 
E então este sonhador chorou: e então 
ela rapidamente sonhou um sonho de primavera 
— onde tu e eu estamos a florescer

 

e.e cummings

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— Não aperte tanto. Não sou um maldito cachorro.

É um dia daqueles, e Emelie está mal humorada como de costume. Olenna já nem consegue se importar com aquelas sobrancelhas franzidas em desgosto, ou as rugas na testa e no canto dos olhos. É tão cotidiano como respirar ou dar de ombros.

Ao invés disso, dá um sorriso.

— E pare de sorrir — Emelie continua, irritada, sacudindo a cabeça — E pare de fumar, sabe que odeio o cheiro.

Olenna não responde. Nunca foi uma garota de muitas palavras. Checou a corrente com um puxão quase delicado, antes de recuar e tirar o cigarro dos lábios, batendo com os dedos para as cinzas caírem.

Ali, sentada no chão do porão com uma estúpida coleira em volta do pescoço, Emelie tenta relaxar. Odeia dias como aquele. Odeia aquele porão empoeirado que ninguém nunca tem coragem de limpar. Odeia o cinismo de Olenna, seus cabelos curtos, seu sorriso irônico. Odeia ela e seus cigarros nojentos.

Dias como aquele são feitos para odiar.

— O que vai querer jantar hoje?

Há tanta tranquilidade na outra que Emelie revira os olhos. Escolhe não responder, por pura teimosia, e se encosta na parede, a encarando com frieza.

Olenna solta uma risada.

— Não vou esquecer você aqui. Prometo.

— Sei que não seria capaz. Ninguém nunca esqueceria de mim — a morena responde, mas não sorri. Uma gota de suor desce por sua testa — Acho melhor você sair logo, já vai começar. Não quero você aqui.

A loira assente, sem grandes sentimentos expressos no rosto. Joga a batuca do cigarro no chão de concreto e pisa em cima. Emelie a odeia um pouco mais pelo ato ― por estar sujando ainda mais aquele porão imundo ―, mas engole o sentimento. Sabe que são apenas aqueles malditos hormônios, aquela inconsistência emocional. A raiva, ódio e selvageria nascendo e se multiplicando dentro dela como milhões de pequenos fragmentos.

Engole tudo com um fechar de olhos. Expulsa aquela confusão para mais dentro de si. Se tornou bem eficiente ao longo dos anos em ignorar a vontade de destroçar carne, osso e cartilagem com os dentes. No lugar disso, pensa em travesseiros, colchões de espuma e lençóis de seda. De algum modo, esses três objetos a lembram de que não é um animal.

Sente os dedos de Olenna em seus cabelos amarrados, e estremece.

— Vou estar lá em cima, você sabe. — ela sussurra, porque nunca foi boa em aumentar o tom. — Vai passar logo.

Emelie bufa com a tamanha delicadeza do toque. Olenna é toda feita de dedos suaves e voz mansa. É um coelho, de curtos cabelos dourados e olhos escuros. Quase uma presa.

— Apenas vai embora. Tire as mãos de mim.

Sente os lábios da loira em sua testa, em um beijo terno, e cerra os dentes com força.

— Amo você, menina da lua.

— Eu odeio você. Cai fora. Já!

Olenna sorri. É só o que sempre faz.

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É possível ouvir as explosões de Emelie até mesmo do andar de cima. Ela nunca grita, mas reclama, rosna e xinga. É assim mesmo nos dias comuns, ou quando está no melhor dos humores. É toda feita de explosões, tons agudos e movimentos rudes.

Olenna costuma aumentar o som do rádio na cozinha nesses dias. O som parece mergulhar o ambiente em um filtro vintage, meio sépia. Ela gosta do sentimento, então acende um segundo cigarro, pega uma cerveja no frizzer e tenta lembrar se há algum trabalho para segunda feira. Geralmente não há, então ela senta no balcão, e enche a cozinha de fumaça até os pulmões e o ar ganharem um novo tom de cinza.

Emelie costuma dizer que ela é uma chaminé ambulante. Olenna sempre a ama um pouco mais depois disso.

No porão, a garota solta um último grunhido. No andar de cima, a outra aumenta o som um pouco mais, até a voz de Elvis Presley impregnar seu humor.

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Conheceu Emelie numa quinta feira de chuva. Ela sempre teve olhos de cachorro perdido, castanhos como uma avelã e carentes sob uma camada de ira. A pele era da mesma cor dos olhos ― um tom mais escuro, talvez ―, e o cabelo uma confusão de cachos naturais e rebeldes. Ela sempre fora uma selvagem. Apareceu chutando poças de lama, molhada até os ossos, e se encostou ao seu lado na parada de ônibus.

Apenas as duas à beira da estrada, e a chuva se tornando tempestade.

Olenna ofereceu um cigarro. Era agradável fumar em dias frios, e a garota ao lado parecia precisar de um agrado. Sua expressão estava dura e tensa, como se andasse em um território inimigo e precisasse se manter alerta ― mais tarde a loira entenderia que aquela era sua expressão usual, e que a menina da lua era bem mais solitária e triste do que dava a entender.

O olhar que Emelie lhe lançou ao ver o cigarro estendido era capaz de congelar a mais quente das almas. O bom era que Olenna não tinha alma. Nem coração. Olenna não tinha nada havia muito tempo.

— Você é uma idiota. Há modos mais fáceis de se matar — ela disse, ignorando o cigarro oferecido e voltando a olhar para o asfalto molhado.

A loira só deu de ombros. Quase divertida.

— É um modo agradável de morrer — disse com um raro humor — e uma pena.

Emelie não olhou em sua direção de novo. Era irritadiça até o último cacho do cabelo, e já a odiava sem sequer conhecê-la de verdade.

Olenna acredita que naquele momento a amou, de forma bem sutil. Talvez não fosse amor, mas pela primeira vez em bastante tempo não sentiu o ar entrando tedioso nos pulmões.

Olenna olhou para Emelie, e não conseguiu desviar o olhar

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Picou o frango em pequenos cubos e os dourou com azeite, antes de ferver ao molho de tomate, do jeito que ela gostava quando suas crises de estresse a atingiam. Não eram raras as vezes.

Fazia duas horas que ela estava lá embaixo, em silêncio, então parecia um bom momento para descer e levar o jantar. Bateu o cheiro de fumaça e cinzas da roupa o melhor que pôde e pegou o prato de comida.

Olenna abriu a porta e trancou-a atrás de si, descendo cada degrau com muito cuidado para não cair. O porão estava fracamente iluminado pela lâmpada acesa, mas o suficiente para ela encontrar Emelie, enrolada em si mesma no canto onde fora deixada.

— Ei, garota. Você já está melhor?

Dois olhos lupinos se ergueram levemente para observá-la. Eram amarelos e não castanhos. Pareciam mais tristes do que irritados.

— Não me olhe assim, nem demorei tanto. — Olenna às vezes achava que falava mais quando Emelie estava daquele jeito, do que quando não estava. Parecia que as palavras eram tudo o que conectava ela, a humana, com aquilo que a morena se transformava em dias difíceis como aquele. Sendo lua cheia ou não. Humana ou não. Emelie sempre era inconstante.

O lobo ergueu o tronco, o pescoço preso à coleira, e mostrou-lhe os dentes pontiagudos.

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— Você não devia se apegar tanto à mim.

Era verão, sem chuvas nem cigarros, e Emelie já era sua. Olenna até hoje não se lembra como a convenceu ― nunca lhe pediu nada, nem jogou indiretas ou cantadas. De algum modo ela sempre soube, e as coisas apenas aconteciam ― Nunca a chamou para sair, para amá-la ou ficar ao seu lado, mas ali estava ela, a testa colada na sua, os dedos entrelaçados no seus, com aquele nariz levemente empinado e franzido. As sobrancelhas sempre irritadas.

— Por que diz isso?

— Porque sou destrutiva, e você é burra. — disse séria — Vai se quebrar muito mais rápido.

— Eu já estou quebrada, Emelie. Você não conseguiria fazer um trabalho muito bom.

Na época Olenna não entendia o que ela queria dizer, mas não estava errada. Quebrá-la em pedaços menores era tão difícil quanto reconstrui-la.

— Você não sabe de nada — sussurrou.

— Por que não explica então?

A morena deu de ombros, afastando-se.

— Não dá para explicar, você tem que ver.

— Então me mostre.

— Só se você prometer não fugir.

Olenna não fugiu.

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A pele lisa e azeitonada se transmutava em pelos cinzentos e cheios, enquanto o rosto bonito se alongava em uma face mais estreita, com um focinho negro na ponta.

Emelie sorria mais sob a forma de lobo — ou era isso que a loira gostava de pensar. Seus dentes sempre estavam à mostra, afiados como a navalha que a morte usava para se barbear.

— Não rosne para mim — brigou com ela — Seja uma boa garota.

Compará-la a um cachorro sempre a irritava, então Olenna insistia em provocar, apenas para garantir que ainda estava lá. Que ainda era ela.

Serviu o prato com a comida para o lobo e sentou-se ali, com as pernas cruzadas, esperando a comida sumir. Não trazia nenhum cigarro, nem se arriscava a fumar um. O lobo era mais calmo que a menina, mas também mais destrutivo. E a menina odiava cigarros.

Após a refeição terminada, Olenna se aproximou com um sorriso calmo.

— Vou soltar você, mas não quero ser arranhada de novo, então se comporte.

No começo, havia sido difícil.

Emelie mordia e arranhava, empurrava-a com força contra o chão e parede. Um corcel indomável sob forma canina. Não era fácil esconder os machucados. Eram mordidas profundas, cortes longos e hematomas coloridos como um estojo de criança. A maquiagem nunca cobria tudo, e os curativos de casa nem sempre adiantavam. Com o tempo lidar com seu temperamento tornou-se mais fácil, e só as cicatrizes na pele pálida eram provas de que algo aconteceu.

Olenna se aproximou do lobo enorme, da cor das cinzas dos seus cigarros e encaixou a chave no cadeado da coleira.

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— Me desculpe, Olenna. Me desculpe mesmo. — Emelie chorava, do outro lado do quarto, soluçando como uma criança — Sinto tanto! Eu não queria, eu tentei…

Era a manhã após a primeira transformação. A loira sorriu e se aproximou, ambos os braços enfaixados com curativos. Uma ferida sangrava em seu rosto e hematomas manchavam seus ombros expostos. Tentou tocá-la, mas Emelie se afastou, fugindo para o outro canto do quarto como um animal acuado, o rosto molhado por lágrimas.

— Eu não tenho medo de você, menina loba. ― Garantiu.

— Pare de me chamar assim, droga!

Olenna se aproximou novamente.

— Como prefere que eu a chame?

— Não me chame de nada. Apenas vá embora. Vá fumar seus cigarros e morrer lentamente, com os pulmões negros.

— Não vou fugir de você.

— Então vai morrer aqui, com os pulmões abertos.

Olenna se ajoelhou à sua frente.

— Não tenho medo, Emelie. Eu amo você.

Emelie também a amava, apesar de tudo.

Por isso sentia medo.

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— Vamos, está tarde. Em quatro horas vai amanhecer, e não queremos ficar aqui embaixo o resto da noite.

O lobo a seguiu. Subiu os degraus com uma calma que não parecia lhe pertencer. A humana estava acostumada. Trancou o porão, desligou as luzes da cozinha, e deixou que o animal a seguisse até o quarto.

— Não destrua as coisas dessa vez. Cansei de gastar dinheiro com travesseiros novos.

O lobo pareceu entender, porque apenas se deitou na cama e a encarou, manso como um cão doméstico.

Olenna sorriu e apagou as luzes.

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— Você ou é louca, ou é burra o suficiente.

Olenna abriu os olhos e encarou os globos castanhos de Emelie. Não os amarelos e solitários que encarou ao dormir, tristes, mas completos como nenhum outro no mundo, e sim os castanhos e brilhantes e cheios de fúria, que ela amava como alguém ama a si mesmo. Emelie era uma confusão de coisas, de ódio, de raiva, de arrependimento e solidão, mas em manhãs como aquela, em que tudo dava certo, ela sorria.

Então Olenna sorriu e a abraçou. As coisas eram certas assim.

— Você fede a cachorro molhado. — comentou.

— Você também.

Era como se as peças quebradas fossem reconstruídas com uma supercola potente.

As coisas se refazem no caos.

Elas também.

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Certos dias Emelie se apoia no balcão da cozinha e a observa mexer em panelas velhas e espátulas vermelhas de plástico. Há um cigarro queimando no cinzeiro logo ao lado, e uma garrafa de cerveja barata apoiada na pia. Olenna cozinha e dança e se move pelo ambiente como se o mundo terminasse ali, naquelas quatro paredes ― como se ela fosse o sol e as estrelas e o universo inteiro. Emelie acha que ela é. Fica ali, observando tudo como uma telespectadora silenciosa ― apenas o barulho da água fervendo em alguma panela, o vento batendo nas janelas fechadas e a voz de Elvis Presley agitando o ambiente como se tudo o que não é um sonho morasse ali, naquela casa afastada da cidade, com feias cortinas de flores ― porque não seria capaz de arruinar um momento como aquele, onde tudo se encaixa perfeitamente. Seu humor está longe de ser ruim.

Tudo parece certo ― até mesmo as rachaduras na parede.


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Notas finais do capítulo

Nunca pensei que escrevia algo relacionado a lobisomens, juro. Sempre achei tão cringe, mas o sentimento é pura obra de um preconceito. Reconheço e tentarei abandoná-lo.
Espero que tenham gostado do meu primeiro yuri. Foi escrito num tapa e pelo celular, porque meu computador anda meio bugado mesmo depois do conserto.
De todo modo, me digam o que acharam. Preciso muito desse feedback.
Até ♥



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