Quando voltaram para a base da UQ Holder, Karin e os outros foram até a sala de Yukihime apenas porque precisavam relatar os acontecimentos da missão. Se pudessem, todos continuariam interrogando Kuroumaru ou, pelo menos, ficariam escutando ele conversando com Touta atrás da porta. Todos ali sabiam que era isso que ia acontecer, inclusive os dois garotos envolvidos. Quando o grupo se separou, Kuroumaru foi direto para o quarto, murmurando algo sobre pegar seus pertences para poder ir logo embora dali, e Touta foi atrás. Ele trancou a porta atrás de si, embora soubesse que aquilo não adiantava de nada. Qualquer um poderia arrombar aquela porta, se quisesse.

— Então, quem era ela? - Touta indagou como quem não quer nada, sentando na cama de cima e balançando as pernas no ar.
— Ela quem? - Kuroumaru juntava suas coisas sem pressa. Parecia estar mais arrumando o armário do que fazendo as malas. Na verdade nem ele sabia o que estava fazendo.
— A mulher que estava com você na praia, é claro.
— De novo essa história? - Kuroumaru ergueu os olhos para encará-lo - Já disse que não sei.
— Vamos lá, os outros não estão mais aqui. E com certeza não estão escutando atrás da porta, eles precisam entregar o relatório da missão para a Yukihime - Touta lembrou - Quem era ela?
— Já falei que não sei quem era ela - o garoto suspirou cansado - A garota não me disse o nome dela. E eu também não disse o meu.
— Sei… então você realmente não a conhecia - Touta tamborilou os dedos no colchão, incomodado - Que entranho você ficar tão preocupado com a vida de uma pessoa que você mal conhece. Geralmente você não se deixa abalar por esse tipo de coisa.
— Acho que qualquer um ficaria pelo menos um pouquinho abalado se provocasse a morte de uma pessoa que acabou de lhe ajudar - Kuroumaru argumentou - Ela disse que cometeu muitos erros no passado e que queria fazer algo de bom antes de morrer… acho que foi por isso que ela me ajudou.
— Então ela só estava te usando! - Touta exclamou indignado - E aquela mulher nem sequer morreu! Quando ela acordar, trate de ir até aquele hospital esfregar isso na cara dela, ouviu? Que não se pode usar as pessoas para se livrar da culpa dos erros que cometeu no passado!
— Por que está tão incomodado com isso, Touta? Por acaso você… está com ciúmes? - Kuroumaru o encarou desconfiado. Devia ser só sua imaginação. Touta não tinha motivo para sentir ciúmes dele. E então, para sua surpresa, Touta gaguejou alguma coisa que ele não entendeu e virou o rosto para o lado, corando levemente. Kuroumaru o encarou incrédulo. Ele largou a pilha de roupas e subiu na cama, sentando-se ao lado de Touta para poder encará-lo melhor - Isso é sério, Touta? Não acredito que está com ciúmes…
— Bem, e se eu estiver? Qual é o problema, hein? - Touta respondeu, se arrependendo imediatamente. Como ele pôde admitir aquilo tão facilmente? Como era idiota! - Q-Quero dizer, você… disse que decidiu ser homem quando virar adulto, certo?
— Você sabe que sim - Kuroumaru respondeu. E então entendeu onde ele queria chegar - E homens… geralmente se apaixonam por mulheres, certo? - ele acrescentou, e Touta confirmou com um aceno de cabeça, resignado. Kuroumaru suspirou - Se alguém aqui deveria sentir ciúmes por causa disso, este alguém sou eu, não acha? Afinal, depois de ter visto você e a Yukihime-san juntos… eu não posso mais ficar aqui - ele fez menção de descer da cama, mas Touta o deteve.
— Espera, Kuroumaru - Touta segurou sua mão e, apesar da mágoa, o garoto corou levemente ao sentir o toque - Você está enganado quanto àquilo. A Yukihime e eu só estávamos conversando quando você entrou.
— Ah, é mesmo? - ele falou descrente - Bem, não era o que parecia para mim…
— Mas é verdade! Droga, por que você não acredita?
— Porque você mesmo me disse uma vez que gostava dela! - Kuroumaru voltou a encará-lo, afastando sua mão da de Touta - Mas eu entendo. É claro que você prefere ela. A Yukihime-san é bonita, confiante, inteligente… e, acima de tudo, uma mulher de verdade. E eu não sou nada disso. Não chego nem aos pés dela. Nem sequer tenho um gênero.
— Kuroumaru, pare com isso. Pare de se torturar assim - Touta pediu - Você não deveria ficar se comparando com a Yukihime…
— E por que não? - Kuroumaru o interrompeu - Você mesmo já me comparou com ela antes, não foi?
— Sim, já comparei - Touta confirmou - E graças a isso percebi que o amor que tenho por ela é maternal. E o que sinto por você pode ser qualquer coisa, menos amor maternal. Então não tem comparação.

Kuroumaru o encarou em silêncio durante alguns segundos, sem saber o que dizer. O que Touta queria dizer com aquilo? Será que estava tentando dizer que também gostava dele? Não, se fosse o caso Touta seria mais claro… bom, talvez não. Touta nunca foi bom em lidar com sentimentos. Mas pelo menos tinha conseguido deixar claro que de fato não estava apaixonado por Yukihime. Aquilo já era um grande avanço.

— Touta… sabe aquilo que eu te disse antes? - Kuroumaru falou, encarando os próprios pés, pendurados para fora da cama - Sobre a possibilidade de eu me tornar uma mulher para poder ficar com você. Isso é realmente possível, mas… como você já deve saber… se possível, eu gostaria de me tornar homem quando virar adulto. Desde criança eu já tinha decidido isso. Não consigo me imaginar usando saia, maquiagem e essas coisas… nunca me passou pela cabeça me tornar uma mulher. E embora também exista a possibilidade do meu corpo adquirir a forma feminina inconscientemente por causa dos meus sentimentos por você, eu… ainda assim, gostaria de ser homem quando me tornar adulto…
— Então seja um - Touta respondeu apenas. Kuroumaru o encarou incrédulo. Não havia raiva, nojo, nem aquele ar zombeteiro que os membros de seu Clã sempre lhe direcionavam no rosto de Touta. Ele estava dizendo aquilo como se fosse algo muito simples de se resolver.
— Mas isso… não é tão simples assim - Kuroumaru falou, pensando que Touta não tinha entendido a seriedade da situação - Quero dizer, eu não tenho gênero agora, mas, se eu conseguir me tornar homem quando atingir a idade adulta, assim como desejo… você provavelmente não ficaria com outro garoto… eu não deveria desejar as duas coisas.
— Quem disse que não? - Touta perguntou, pegando Kuroumaru de surpresa outra vez - Kuroumaru, olhe para mim. Eu sou um clone. Uma cópia mal feita do meu avô. Você não tem gênero agora, mas vai se tornar alguma coisa definida quando virar adulto, mas eu vou continuar com essa maldita aparência de um pirralho de 12 anos para sempre! Eu não tenho pais, e não é porque sou órfão. É porque eles não existem. Nunca existiram! Não faço a menor ideia de como fui gerado! Provavelmente fui criado no laboratório de algum cientista louco que sabia usar magia ou algo assim… está achando pouco? Tem mais. Eu não tenho nenhuma memória da minha infância. Ne-nhu-ma. Imagino que a sua deve ter sido horrível, pelo que você me contou sobre o seu Clã, mas pelo menos você se lembra. Mas eu não me lembro de nada! Talvez eu nem tenha tido uma infância para me lembrar. Talvez tenha sido criado já com essa aparência porque era mais prático, ou algo assim… minha nossa, acabei de pensar nisso, talvez eu nunca tenha sido um bebê! Mas é claro! Se eu não tenho mãe, então não teria ninguém para me amamentar! Aquela garota que disse que era minha irmã estava certa, eu sou apenas uma cópia que não deu certo… ela provavelmente é mais neta do famoso Negi Springfield do que eu. E, mesmo sabendo de tudo isso, você ainda quer ficar com um clone defeituoso como eu?
— Eu me apaixonei por você antes de saber que você era um clone. Saber disso agora não muda nada - Kuroumaru respondeu simplesmente.
— Você é mesmo uma pessoa incrível - Touta comentou admirado - Ao contrário de mim. Eu ainda te devo uma resposta.

Kuroumaru baixou a cabeça de novo e segurou a barra da camisa com força. Nem de longe estava preparado para o que estava por vir. Tinha uma vaga noção de que Touta estava nervoso também, mas não conseguia se preocupar com isso agora. Independente de qual fosse a resposta do garoto, ele não tinha a menor ideia do que faria a seguir.

— Kuroumaru, quando você me disse como se sentia, eu… fiquei bastante surpreso. Quero dizer, eu até percebia que você sempre parecia estar embaraçado com alguma coisa enquanto conversávamos, mas nunca me passou pela cabeça que o motivo era esse… e parece que todo mundo já sabia menos eu, não é? Acho que sou um idiota mesmo - Touta riu sem graça. Aquilo era mau. Kuroumaru não sabia muita coisa sobre declarações de amor, mas o pouco que conhecia lhe dizia que, quando uma pessoa começava a falar assim era porque estava tentando rejeitar a outra da forma mais educada possível - E quando você me contou sobre a condição do seu corpo, a falta de gênero e tudo o mais… não vou mentir, fiquei bastante chocado. Não fazia ideia de que algo assim poderia existir. E então o Santa nos interrompeu… eu acho que você deve ter ficado morrendo de raiva naquela hora, mas isso me deu tempo para pensar. Durante o tempo em que você esteve ausente, eu pude pensar em como eu me sentia em relação a você, sobre a verdadeira condição do seu corpo, e sobre o que eu sou de verdade… um clone mal feito de outra pessoa. E, sabe aquilo que eu te disse antes, sobre eu estar atraído por você, e ter feito aquelas coisas com você durante o treino matinal só para experimentar? Eu acho que me expressei mal. Não estou apenas atraído por você. Eu… eu gosto de você, Kuroumaru. Eu jamais faria uma coisa daquelas com alguém de quem eu não gostasse, só para "saber como é". Acho que só estava com vergonha de falar… não, na verdade eu não tinha percebido. Provavelmente demoraria muito mais tempo para notar se você não tivesse dito nada, mas, bem… é isso.

A essa altura, Kuroumaru já tinha tirado os olhos do chão e encarava Touta boquiaberto. Não conseguia acreditar no que estava ouvindo. Será que ele estava sonhando? Aquilo estava mesmo acontecendo? Será que Touta estava brincando com ele? Não, Touta não era o tipo de pessoa que faria uma brincadeira de mau gosto como aquela. Mas então… isso estava acontecendo mesmo?

— Touta… - Kuroumaru sentiu a garganta seca - Você tem certeza do que está dizendo? Quero dizer, eu não tenho um gênero definido agora, mas daqui a alguns anos, quando me tornar adulto, terei um corpo completamente masculino… você vai me querer mesmo assim?
— Nossa, você já está pensando no futuro? - Touta riu, fazendo o garoto corar - Até hoje de manhã eu pensava que você era um garoto e gostava de você mesmo assim, então isso não muda nada. Ah, e sabe aquela história sobre você poder virar mulher para ficar comigo? Esquece isso, cara. Fiquei chocado quando ouvi aquilo. Não acho que eu valho tanto esforço assim.
— Mas você vale! - Kuroumaru falou sem pensar e segurou a mão de Touta por impulso, como se temesse que o garoto fosse desaparecer - Quero dizer, eu quero me tornar um homem, mas também quero ficar com você… então…
— … então ia sacrificar a si mesmo? - Touta completou a frase, com um olhar mais sério - Não me importa se você vai ser homem ou mulher quando virar adulto, o corpo é seu, quem tem que decidir qual gênero vai assumir quando se tornar adulto é você. Eu não tenho o direito de fazer essa escolha por você. Não me importa se você é homem, mulher, ou uma pessoa sem gênero definido. Para mim você é apenas Kuroumaru.

Kuroumaru encarou por longos segundos o sorriso sincero no rosto do garoto que tanto amava. E que agora sabia que correspondia seus sentimentos. Mesmo ele desejando ser um garoto… Touta respeitava seu desejo e não parecia se importar com a peculiaridade do seu corpo. Então aquela garota tinha razão… é realmente possível manter o gênero escolhido e ainda assim se apaixonar por alguém do mesmo gênero afinal.

— Falando nisso - Touta interrompeu seus pensamentos - Eu estava tão chocado naquela hora que demorei para absorver a informação, então não pude ver direito. Me deixa ver mais uma vez?
— Hein? Ver o que?
— Como assim, "o que"? O seu corpo, é claro! - sem avisar, Touta derrubou Kuroumaru na cama e ficou meio que deitado em cima dele, prendendo-o com as pernas. Touta começou a levantar a camisa do garoto mas, antes que a erguesse completamente, Kuroumaru gritou e puxou o tecido de volta para baixo, cobrindo o tórax.
— O q-que pensa que está fazendo, Touta?! - Kuroumaru exclamou, o rosto terrivelmente corado.
— Eu fiquei curioso - Touta respondeu como se aquele motivo fosse completamente plausível para despir o outro - E por que você está puxando a camisa de volta? A parte de cima do seu corpo é masculina, não é?
— Eu já te disse, é um reflexo… - Kuroumaru desistiu de tentar abaixar a camisa ou acabaria rasgando o tecido e decidiu cobrir o corpo com os braços. Ele provavelmente conseguiria se livrar de Touta se tentasse se esforçar um pouco mais, visto que o garoto estava desarmado, mas estava tão envergonhado que isso nem lhe ocorreu.
— Esses reflexos são muito chatos - Touta comentou enquanto alisava as laterais do corpo dele, passando as mãos do tórax até a cintura, e depois de volta para cima - Uau! Que incrível! A parte do peito é definitivamente masculina, mas a sua cintura é tão fina quanto a de uma garota… nunca tinha visto nada igual.
— Pare de zombar de mim… - Kuroumaru virou o rosto para o lado, cobrindo-o com um dos braços enquanto ainda escondia o tórax com o outro.
— Não estou zombando de você - Touta falou, confuso com aquele comentário, as mãos parando a meio caminho da cintura dele.
— Está sim - Kuroumaru discordou - Você está falando igual ao meu irmão.
— Você tem irmão?
— Tenho. E ele me despreza por eu ser assim. Foi ele que me deu a missão de eliminar a Yukihime-san. Se eu não conseguisse, não poderia voltar para casa. É claro que isso era só um pretexto para ele poder se livrar de alguém com um corpo amaldiçoado como eu - ele contou com a voz abafada, pois o rosto ainda estava escondido sob o braço - Já escutei o suficiente sobre o quanto é "incrível" uma pessoa ter os dois gêneros misturados no mesmo corpo, não preciso que me diga isso de novo, obrigado.
— Parece que você escutou isso por tanto tempo que não consegue mais diferenciar ironia de elogio - Touta comentou, recolhendo as mãos - Eu estava dizendo que estou impressionado. De verdade.

Kuroumaru abaixou o braço e o encarou de soslaio.

— Como você pode ficar impressionado com uma coisa dessas? - ele perguntou em voz baixa.
— Bem, não é todo dia que se vê alguém assim, não é? - Touta respondeu - E, como eu disse antes, naquela hora eu fiquei tão surpreso que não consegui olhar direito, então… será que pode me dizer o que tem aqui? - ele apontou para o que quer que tivesse entre as pernas de Kuroumaru.
— NÃO! - Kuroumaru levantou abruptamente, dando uma cabeçada em Touta, que caiu para trás. Quando ele se levantou, esfregando a testa, viu Kuroumaru sentado em posição fetal, abraçando as pernas e o encarando com um olhar assustador.
— Calma! Eu não pedi para ver! - Touta se apressou a dizer - Só pedi para você me falar. Quero dizer, se você não tem órgãos masculinos e nem femininos, então… o que você tem aí?
— Nada. Não tenho nada - Kuroumaru apoiou o queixo nos joelhos - Se você se refere aos órgãos reprodutores, eles não existem. Nem masculinos, nem femininos. Só existe um "espaço vazio" onde eles deveriam estar, aguardando para ser preenchido pelos devidos órgãos que eu terei quando assumir algum gênero no momento em que atingir a idade adulta. Felizmente, isso não afeta a minha saúde.
— Ah… ainda bem, né? - Touta comentou, sem saber o que dizer. Droga, não deveria ter perguntado aquilo. Admitir que não tinha gênero e que gostava dele no mesmo dia já devia ter sido bastante difícil para Kuroumaru, e Touta o estava enchendo de perguntas… ele precisava parar com esse mau hábito - Quero dizer, foi mal… não devia ter perguntado isso, né?
— Tudo bem - Kuroumaru respondeu, mas era óbvio que ele não estava bem - Eu nunca tinha contado isso para ninguém da UQ Holder, mas imagino que acabariam descobrindo mais cedo ou mais tarde. É só mais um motivo para ser uma aberração…
— Então acho que somos duas aberrações - Touta falou - Você não tem gênero, mas eu nem sequer sou uma pessoa. Sou só uma cópia mal feita de um homem que eu pensava ser meu avô. Não tenho pais, mas tenho uma irmã do mal. E, justamente por ser um clone defeituoso, não consigo usar magia. Apesar de ter a Magia Erebea fluindo dentro de mim. E ainda por cima não tenho memória! Um clone defeituoso sem memória, sem pais, e que nem pode usar magia… uma completa aberração, né?
— Não me importo se você é um clone ou o que for… eu não acho que você seja defeituoso - Kuroumaru respondeu - E, mesmo se fosse, eu… eu g-gosto dos seus defeitos também. Gosto de tudo em você, Touta…
— Acho que nós nos merecemos mesmo - Touta sorriu e segurou a mão dele, que entrelaçou seus dedos com os do garoto, sorrindo de volta.