Contos de Aurora escrita por Wi Fi


Capítulo 11
Conto Onze: O Equinócio


Notas iniciais do capítulo

Como eu avisei, um capítulo triste. Explica mais sobre a família e a infância estranha do Orion. Não briguem comigo porque eu gosto de fazer meus personagens sofrerem.



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Era o equinócio de primavera. A chegada das flores e a volta do calor era celebrada em várias regiões de Aurora como o dia em que devia ser dedicado às mães; assim como a primavera trazia as flores, as mães traziam a vida ao mundo.

Orion havia repetido seu ritual anual: ele viajava sozinho para Kayin, terra natal de sua mãe. Havia se despedido de Nanna e Eli na manhã anterior – não sem antes garantir a Eli que sim, ele tinha roupas o suficiente e que iria se cuidar ao passar por lugares perigosos, mesmo que estivesse dentro de um trem – e agora ele estava em Kayin.

Mais especificamente, ele estava no cemitério de Kayin.

Uma lápide simples estava à sua frente. Cinza, gasta, com poucas letras porque a família não tinha dinheiro o suficiente para pagar um epitáfio longo.

Eudora Ayomide Teleola Golias.

Uma rosa nascida no inverno, mas que fez grande proveito de todas suas primaveras.

E uma porção de números – suas datas de nascimento e morte. Tudo escrito no dialeto da cidade, Olgalabi, a língua de Eudora.

Orion se ajoelhou em cima do túmulo de sua mãe, em silêncio absoluto, e suspirou. Ele deixou a coroa de hibiscos que havia comprado em cima da terra, onde acreditava que deveria estar o coração de Eudora. Hibisco sempre foi sua flor preferida. Os do buquê que Orion trouxera eram coloridos, alegres. Assim como Eudora era.

Orion uniu as mãos e respirou fundo. Ele não era religioso, nunca tinha sido, mas acreditava que o espírito de sua mãe gostaria de ouvi-lo, e sua aura ainda estava sendo irradiada por ali.

— Oi, mãe. Feliz equinócio. Eu trouxe as suas flores preferidas porque encontrei uma feira no meio do caminho para cá. Eu sinto sua falta. Nanna, sua neta, vai fazer quatorze anos logo. Ela está se tornando uma menina bonita, e muito corajosa – Orion murmurou - Tenho muito orgulho dela. Narciso está bem, continua no mar, trabalhando à serviço de Yltaris, a feiticeira. Parece estar feliz com sua missão de ajudar as pessoas. Eu recebi uma carta do tio Akintoye. Os filhos dele estão adultos também, mas não o vejo faz muitos anos.

Uma brisa fresca fez com que algumas folhas caíssem no cabelo de Orion. Ele pensou que talvez a brisa fosse uma manifestação de sua mãe, mas era uma esperança infantil.

— Bom, não tenho muito o que te contar. Gostaria que estivesse aqui, gostaria que conhecesse Nanna, e Eli. Você os amaria tanto quanto eu, aposto. Não posso dizer que espero te encontrar logo, porque ainda tenho muito o que viver, mas mal posso esperar para vê-la, seja lá em que mundo espiritual você esteja.

Orion curvou-se sobre o túmulo, suas mãos e braços ficando sujos com terra, e ele beijou a lápide.

***

Kayin era terrivelmente quente. Narciso nunca entendeu como Orion podia gostar tanto daquela cidade. Podia até ter sua beleza natural, com o grande mar esverdeado no horizonte e as lagoas verdes cercadas por uma mata densa, mas o clima era longe de ser agradável.

Em tempos, antes dos dois nascerem, havia sido uma cidade rica – eram os melhores agricultores das Terras Baixas e a população vivia muito bem. Entretanto, quando a mãe de Orion era uma jovem adulta, uma seca terrível e uma série de incêndios e inundações destruiu a maior parte das plantações de Kayin. Alguns diziam ser uma maldição dos deuses. Outros diziam que era bruxaria. Não importava, a realidade era que agora as lindas casas e lindas roupas que os habitantes tinham não eram mais um luxo sustentável, e tiveram que ser vendidas para comprar pão.

Atlas Golias, pai dos meninos, trabalhava lá como carregador de sacos de café, quando as plantações começaram a se recuperar. Levava o produto da área rural da cidade até o porto. O terreno em Kayin era íngreme e irregular, de forma que o trabalho bruto era feito por homens e cavalos.

Foi lá que Atlas conheceu Eudora. Um ano depois, lá nasceu Orion, e a família se mudou para outro reino, carregando ainda o filho mais velho de Atlas, o pequeno Narciso. Agora haviam mais bocas para serem alimentadas, e de certo haveriam cidades com empregos melhores. Só voltaram para Kayin quando Orion tinha sete anos.

A família de Eudora não gostou nada. Tinham sido uma das famílias mais ricas, antes dos desastres, e a família Golias tinha uma péssima fama nas Terras Baixas. O pai de Atlas era um druida particularmente rebelde, e seu mau temperamento desagradava muitas pessoas influentes da região. Dessa forma, mesmo depois de Atlas ter se distanciado do pai, a fama de sua família o acompanhava, e era apenas questão de tempo até que a população de uma cidade se cansasse dele e ele tivesse que se mudar.

Em Kayin, chovia todos os dias, praticamente no mesmo horário. O sol era cruel durante o dia todo, e a chuva era um alívio rápido para as temperaturas altas. O mar era um alívio temporário para os banhistas, quando não estava infestado de navios cargueiros que se dirigiam ao porto.

As ruas que subiam e desciam em ângulos vertiginosos possuíam casas grandes e bonitas, mas agora muitas eram abandonadas ou ocupadas por muitas famílias, que se preocupavam mais em garantir sua sobrevivência do que em manter a estética do local.

Um ponto positivo de Kayin? A escola pública funcionava. Era um prédio velho e grande, mas todas as crianças eram permitidas lá, independentemente de seu povo humano original, se eram mestiços entre raças mágicas ou se seguiam algum ramo religioso diferente. As crianças tinham que aprender, e era para isso que servia a escola.

Eudora havia recebido uma boa educação antes dos desastres, e em tempos teria sido uma curandeira de sucesso, trabalhando para a elite à qual uma vez pertencera. Mas agora Kayin tinha muitos doentes e pouco dinheiro para pagar os médicos, e Eudora sentia esse sofrimento. Dessa forma, se contentava com o pequeno salário, e por vezes trabalhava como empregada doméstica ou babá para aqueles que ainda tinham fundos para isso.

Ela chegava cansada em casa, e muitas vezes seu marido trabalhava até altas horas da noite, mas isso nunca a impediu de dedicar todas as energias que lhe restavam a cuidas dois filhos – Orion, que era seu por sangue, e Narciso, que era seu por acaso, mas nem de longe menos importante.

***

Mesmo adulto, Orion ainda se lembrava de tudo que a mãe dizia. Certo dia, quando Nanna ainda era criancinha, ele se pegou repetindo uma das falas mais comuns de Eudora, enquanto penteava os cabelos da filha:

— Você tem que deixar seu cabelo muito bem cuidado, penteado, desembaraçado, ou preso, se não os piolhos vão comer tudo e você vai ficar careca.

Orion nunca gostou de pessoas mexendo no seu cabelo. Ele era crespo e crescia para todas as direções, desafiando a gravidade, ao contrário do cabelo de seu irmão, que era mais fácil de cuidar. Eudora era a única pessoa que conseguia pentear o cabelo de Orion sem machucá-lo, e assim o garoto acabou se acostumando a tê-lo traçado ou amarrado de maneira cuidadosa, porque para Eudora nada era pior do que um filho com cabelo bagunçado.

***

Orion saiu do cemitério e começou a andar pelas ruas de Kayin. Ia passar uma noite na cidade, tentar encontrar algum conhecido, ou até mesmo um dos irmãos de sua mãe que talvez ainda morasse lá.

A cidade não mudou muito desde que ele era criança. As ruas ainda eram estreitas, confusas e os bairros pareciam labirintos. As casas continuavam parcialmente descuidadas e cheias de pessoas, embora agora começassem a retomar um pouco de sua glória anterior.

Orion não pôde evitar um sorriso ao ver um grupo de irmãos pulando em círculos, meninos e meninas rindo e brincando. Ele sentiu uma pontada de saudades daquela época em que morou em Kayin. Ao prestar um pouco mais de atenção, Orion reparou que a ciranda que estavam cantando era a mesma que ele tinha cantado várias vezes antes com seu irmão.

Ele não entendia como Narciso podia não gostar de Kayin. Mesmo tendo vivido em mais de dez cidades durante os seus primeiros dezesseis anos de vida, Orion sempre tinha Kayin como um lugar especial. Eudora parecia mais feliz quando estava lá, junto de sua cultura e suas pessoas.

Enquanto andava pela rua, Orion ouviu um som familiar. Tambores e trompetes, pandeiros e outros instrumentos fazendo barulho, e uma voz de mulher cantando. Ele olhou ao redor, tentando encontrar a fonte, mas não havia ninguém na rua. Ele passou a seguir o som, subindo a rua onde estava e depois virou à esquerda, até chegar em uma pequena praça, onde uma banda tocava. Eram quatro homens e duas mulheres, já de certa idade, que se sentavam no chão e cantavam à plenos pulmões músicas populares de Kayin.

***

Para sermos justos, a ideia foi de Narciso.

Era uma tarde qualquer em um dia de escola. Narciso tinha dez anos, e Orion tinha oito. Durante o intervalo entre as aulas do período da tarde, o garoto mais velho disse ao seu irmão que tinha uma ideia de onde passar o resto do dia, até que a mãe fosse buscá-los para o jantar. Narciso tinha visto uma banda tocando na rua, perto das docas, e um homem vendia docinhos e brinquedos ao lado deles.

É claro que Orion topou ir junto. Afinal, o que era uma aula perto da oportunidade de se divertir um pouco?

Quando a professora não estava olhando, os dois irmãos se esgueiraram pelo portão do fundo e fugiram da escola.

Os meninos chegaram ao porto da cidade, lá encontraram músicos, como esperavam. Um menino, um pouco mais velho que eles, estava dançando junto de uma garota muito bonita. Narciso prestou bastante atenção nela, e rapidamente se juntou à dança.

Orion se interessou mais na música do que nos dançarinos. Dois homens velhos e uma mulher jovem estavam sentados no chão. A mulher cantava, um dos homens batia as mãos em um tambor e o outro cantava junto da mulher, tocando um estranho instrumento de corda.

Cada batida do tambor repercutia em seu corpo todo, tanto que ele achou até que ficaria surdo. Sentou-se timidamente ao lado dos adultos, e com os olhos grandes e interessados, observou seus movimentos e ouviu suas palavras animadas. Cantavam em Olgalabi sobre as aves de Kayin, sobre as auras de seus ancestrais que viviam dentro das árvores fortes e altas, e sobre como tinham gratidão por viverem em um lugar tão mágico. Orion se lembrava de ter aprendido sobre as místicas aves de Kayin, mas nunca levara suas lendas muito à sério.

Não demorou muito para que Narciso puxasse seu irmão para dançar junto come ele, e os dois garotos pulavam e rodavam junto dos adolescentes, sorrindo e já aprendendo a letra da música.

Orion se lembrava daquela tarde como um dos dias mais divertidos de sua infância. Em casa, Atlas adorava cantar – mas cantava músicas das Terras Altas, seu lugar de origem. Ele falava Olgalabi graças a Eudora, mas a cultura das Terras Altas era muito diferente, não tinha a vivacidade de Kayin. Ele cantava muito bem, e as vezes Eudora ensinava a ele e aos filhos as músicas de Kayin que sua mãe lhe ensinara quando era pequena.

“Ayomide!” ela dizia em voz rouca, imitando a mãe “Cante aquela canção bonita dos pássaros!”

Enquanto era criança, Orion nunca entendeu porque as pessoas de Kayin chamavam sua mãe de Ayomide, enquanto seu pai a chamava de Eudora. Só quando cresceu foi entender que, ao casar com um homem de um reino mais rico, a jovem Ayomide Telola mudou seu nome para Eudora, um nome das Terras Altas, e adotou o sobrenome do marido, para que quando mudassem de Kayin para poderem trabalhar, ela fosse vista como uma mulher refinada de uma terra importante, e não uma vítima da desolação de uma cidade amaldiçoada.

***

A diversão dos meninos foi encurtada quando Eudora os encontrou. Ela estava voltando de uma visita a um doente e viu os dois filhos, fora da escola, dançando descalços.

Eudora não ficou nenhum pouco feliz.

Os puxou pelas orelhas e os levou até a casa, não parando de lhes dar broncas durante todo o trajeto. Orion chorou, Narciso escondeu o rosto, envergonhado. Ficaram de castigo e ouviram sermão do pai, quando este chegou em casa.

No dia seguinte, pela manhã, após Orion ter culpado seu irmão pelo plano de matar aula, e ter chorado mais um pouquinho ao pedir perdão à mãe, Eudora foi acordar os garotos com um beijo na testa.

— Vocês precisam aprender tudo o que puderem, meus filhos. A escola é o lugar mais importante do mundo para as crianças, porque mostra para elas que elas podem ser alguém, e além do mais, garante o nosso futuro – ela explicou, calmamente, acariciando os cabelos dos dois com as mãos – Se eu não tivesse me tornado curandeira, estaríamos passando fome agora. Se seu pai não tivesse aprendido sobre agricultura, não seríamos mais do que pedintes. Vocês têm que aprender o máximo que puderem, meninos, ou então não terão como escapar de uma vida difícil. Mais difícil do que a que temos agora. Me entendem?

— Sim, mamãe – Orion murmurou, envergonhado.

— Sim, dona Eudora – Narciso respondeu, igualmente tímido.

— Agora venham comer. Podem ter escapado ontem, mas hoje vão para a aula de novo.

Nunca mais Orion e Narciso tiveram coragem de fugir da escola.

Quando Eudora foi buscá-los naquele mesmo dia, ela desviou o caminho habitual e foram novamente para as docas da cidade. A mesma banda estava lá, e dessa vez, os três dançaram, mãe e meninos, rindo e cantando juntos.

***

Quando Orion ouviu a banda tocando, mais de trinta anos depois, ele se lembrou de sua mãe dançando com ele e Narciso, e sentiu vontade de sentar e chorar como uma criança.

Se aproximou devagar dos músicos, sorrindo vagamente e tentando entender as palavras cantadas. Orion ainda sabia falar Olgalabi, mas sua escuta estava enferrujada devido à falta de treino. As vozes dos homens e mulheres se misturavam e se entrelaçavam numa harmonia familiar e agradável.

Uma das mulheres, que usava um colar de conchas coloridas, se levantou ao vê-lo chegar, e começou a dizer no idioma neutro de Aurora, com certa dificuldade e sotaque forte:

— Estrangeiro! Uma doação para os mais simples?

— Eu não sou estrangeiro – Orion respondeu em Olgalabi, não podendo evitar um sorriso – Sou de Kayin como vocês. Gosto muito da música.

— Ah, o senhor é muito bonito para ser daqui! – respondeu a mulher, rindo alto – Muito bem vestido! O senhor só ouve a música ou dança também?

— Eu temo que não saiba mais dançar tão bem quanto antigamente.

— Não se preocupe; um filho de Kayin que volta para casa aprende rápido os costumes antigos.

A mulher do colar colorido puxou-o pelos braços e chacoalhou Orion enquanto a música tocava. Um dos rapazes se juntou a eles e fez Orion repetir seus movimentos, ensinando-lhe a dança que acompanhava a melodia.

Quando a música acabou, Orion pegou uma moeda de ouro de seu bolso e colocou no chapéu do homem que o ensinara a dançar.

— Acho que o senhor deu a moeda errada, senhor - disse ele, antes que Orion fosse embora - Isso é de ouro. É muito.

— Não, não errei. Gosto muito de minha cidade. Pode ficar com o dinheiro.

O homem mais velho tirou a moeda das mãos dele e a olhou, frente e verso. Ergueu seus óculos de sol e encarou Orion por alguns segundos, antes de lhe dar um abraço apertado.

Os outros músicos o agradeceram várias vezes e apertaram sua mão. Enquanto se afastava, Orion ainda ouvia a dançarina comentando o quão bondoso e bem vestido ele era.

***

Mais tarde naquele mesmo dia, Orion estava sentado em frente à escola pública de Kayin, observando as crianças entrando e saindo com seus pais. Por conta do equinócio, algumas traziam flores ou caixinhas de madeira enfeitadas e entregavam para as mães. Orion sorriu, se lembrando de todas as vezes que ele e o irmão faziam a mesma coisa – só que Narciso fazia dois presentes, um para Eudora e um para Nerissa, a sereia.

O calor estava suportável naquela época do ano, mas o sol ainda se erguia alegremente no céu azul claro. As árvores logo ganhariam suas cores e suas flores com a chegada das estações mais quentes. Orion estava ainda divagando quando alguém chamou seu nome. Ele se virou para trás e encontrou um homem alto, de pele escura e cabelo crespo como ele, junto de uma menina de uns dez anos.

— Orion, é você mesmo? – repetiu o homem – Me reconhece?

— Mas é claro que sim, tio Dayo! – exclamou Orion, ficando de pé. O homem abriu os braços e os dois se abraçaram – Fico feliz de encontrar alguém da família aqui.

— E eu fico ainda mais feliz de encontrar meu sobrinho querido! – Dayo disse, e deu uma risada sonora – Esta aqui é minha filha mais nova, Yejide, vim buscá-la na escola.

— É um prazer em conhecê-la.

Orion apertou a mão de menina, que o encarava com certa admiração e timidez. Ela era igualzinha ao pai, e também lembrava seus irmãos mais velhos, que Orion já conhecia.

— Você tem algum compromisso agora? Gostaria de ir em casa, jantar com a gente? – perguntou Dayo, com um grande sorriso, apertando o braço do sobrinho.

— Eu adoraria, tio.

***

A casa de tio Dayo era provavelmente uma das menores na cidade. Tinha três quartos – um ocupado por ele e sua esposa e os outros dois ocupados por seus filhos e filhas.

Por impulso, Orion decidiu não comer muito. Tio Dayo e tia Oni tinham cinco filhos para alimentar, embora nem todos estivessem ali. Ele não deveria ter aceitado o convite para jantar e gastar ainda mais a comida que eles tinham.

— O que te traz de volta para casa, Orion? – perguntou Oni – Não está morando aqui, está?

— Não, não, eu moro em Ethea, nas Terras Médias. Vim aqui por causa do dia das mães – explicou ele – Faço isso todo ano. Mas eu não sabia que vocês estavam morando aqui de novo.

— Voltamos para Kayin ano passado. Nossos dois mais velhos já estão estudando para arranjarem emprego – contou Dayo - Moram sozinhos agora, então decidimos voltar para cá, onde conhecemos mais pessoas e sabemos como as coisas funcionam. A cidade grande não serve para nós.

— Entendo perfeitamente. Cidades grandes são um caos.

— É uma confusão – tia Oni concordou, assentindo - Com todas essas mudanças de cidade acabamos perdendo o contato com você e outras pessoas da família.

— Pois é, infelizmente aconteceu comigo também. Eu ainda escrevo para o tio Akintoye, ele mora no Oeste agora, com os filhos já adultos – Orion disse – E falo com a família do meu pai também, mas é um pouco mais difícil falar com vocês daqui de Kayin, todos acabamos nos separando.

— Especialmente depois que sua mãe morreu...você, seu irmão e seu pai foram os primeiros a sair da cidade.

Orion assentiu e sentiu certa tensão na conversa. Todos da família de Eudora se ressentiam do pai de Orion por ter dado uma vida agitada a ela e aos filhos, além de ter ficado louco depois de sua morte. Quando os meninos ficaram órfãos, já eram homens fortes, jovens e saudáveis, mas ninguém da família de Eudora poderia acolhê-los. Suas casas não eram muito grandes, e os filhos que tinham já davam trabalho o suficiente. Não seria fácil colocar mais dois sobrinhos embaixo de seus tetos.

Além do mais, alguns irmãos de Eudora deixaram de falar com ela após seu casamento, pois não gostavam de Atlas, e outros ainda não queriam cuidar de Narciso – o filho de outra mulher. A única salvação deles foi o general Golias, irmão de Atlas, levá-los para o Refúgio de Yltaris, onde teriam estudo e casa. Tio Dayo foi um dos que havia se oferecido para cuidar dos sobrinhos, mas seus filhos mais velhos eram bebês na época, e nem Narciso nem Orion queriam complicar mais a sua vida.

— Você mora sozinho em Ethea, Orion? – perguntou tia Oni, notando o desconforto de todos com o assunto delicado.

— Não, eu me casei, faz quase dezessete anos – ele respondeu, contente por mudar de assunto para um mais alegre – Nos conhecemos no Refúgio.

— Ah, que fantástico! – exclamou Dayo – Como ela se chama?

Orion desviou o olhar, um pouco constrangido, e deu uma risada sem graça. Lá vinha uma boa conversa.

— O nome dele é Eli.

Seus tios ficaram em silêncio por alguns segundos, processando a informação. Os primos mais velhos, que haviam ouvido a conversa, deram risadinhas.

— Nunca imaginei que você gostava de homens – tio Dayo respondeu, simplesmente – Mas o importante é que você está feliz, não é mesmo? E pelo menos não tem que se preocupar com filhos.

— Na verdade, nós temos uma filha – Orion respondeu, desejando que alguém novamente mudasse o assunto.

— Ah, claro, ela é adotada...

— Mas que beleza! Como ela se chama? – interrompeu tia Oni.

— Nanna. Ela tem quase quatorze anos.

— Uma adolescente. Idade complicada – ela lançou um olhar divertido para os filhos – Por que não traz ela da próxima vez que vier para Kayin? Adoraríamos conhecê-la. E seu marido também.

Orion sorriu e concordou, grato por tia Oni ser sempre tão sensata. Sabia que seu tio não queria ser desrespeitoso, ele apenas não tinha muito conhecimento sobre como funcionavam relacionamentos entre pessoas como Orion e Eli. Não valia a pena se incomodar com alguns comentários mal informados.

Depois de todos terem comido e conversado bastante, Orion agradeceu pelo convite, e voltou para o hotel.

***

Uma festa entretinha os habitantes de Ethea. Maya Legger, habitante da cidade e ruiva notória, estava abrindo seu próprio restaurante. Senhorita Legger era conhecida em Ethea por ser a melhor cozinheira das Terras Médias – título extraoficial, mas que ela aceitava com alegria.

Para celebrar seu restaurante, ela havia organizado um jantar público, na tentativa de atrair clientes e demonstrar suas habilidades culinárias. Havia música e espaço para dançar e muitas mesas distribuídas pelo salão para sentar-se e comer. O pai de Maya era prefeito de Ethea, então a clientela interesseira era grande.

Orion chegou no jantar com certo atraso. Ele havia tirado uma soneca mais longa que o esperado depois de chegar de sua viagem a Kayin, mas não podia deixar de comparecer, por mais cansado – física e emocionalmente – que estivesse. Maya e Eli eram amigos de infância, inseparáveis, e ele não queria decepcioná-la.

O salão estava cheio, um ótimo sinal. Não foi difícil encontrar Maya, com seu vestido elegante e os cabelos cacheados formando uma nuvem vermelha ao seu redor. A cozinheira cumprimentou Orion com um grande abraço e um sorriso.

— Ah, como é que vocês homens ficam tão charmosos de terno? – Maya brincou, entregando um copo de vinho para o amigo – Deveria fazer mais jantares só para que nós pudéssemos nos vestir bem.

— Acho uma ideia maravilhosa. Mas eu não bebo, Maya.

— Sempre esqueço, desculpe – a cozinheira pegou de volta o copo e bebeu todo o líquido em um só gole – Ei, não vai acreditar nisso, mas Eli está dançando.

— Como é que é? – perguntou Orion, honestamente incrédulo – Eli? Dançando? O meu Eli?

— O nosso Eli. Ele está ensinando a Nanna. Foi ela quem o convenceu.

— Pelos deuses, eu tenho que ver isso.

Maya indicou onde havia visto Eli pela última vez e Orion seguiu nessa direção. Músicos élficos tocavam suas melodias agitadas e agudas, e perto de uma mesa, em meio a ma pequena multidão, estavam Nanna e Eli. Os dois riam demais e mal conseguiam acompanhar a música, mas Eli estava girando a filha, que saltitava ao seu redor. Foi Nanna quem primeiro notou a presença de Orion.

— Dada! Você já voltou! – ela exclamou, soltando-se de Eli e correndo para dar um abraço em seu outro pai – Eu fiz Papa dançar.

— Eu estou vendo! Que tipo de magia você aprendeu para fazer isso?

— Ela só me pediu com jeitinho – Eli respondeu, também se aproximando – Lembrei de quando Yltaris ensinou Maya e eu a dançar música élfica, e que Nanna nunca tinha aprendido. Ela me convenceu.

— Conseguiu em uma noite o que eu tento há anos – Orion provocou, dando uma piscadinha para a filha – Parabéns, querida.

Nanna deu risada e depois se misturou à multidão, alegando que iria procurar tia Maya para dançar. Orion sentou-se na cadeira mais próxima, e Eli logo ocupou o lugar ao seu lado.

— Fez boa viagem? – perguntou.

— Sim, fiz. Sabe que durmo em qualquer lugar, o trem até que era confortável.

Orion tentou fazer graça para demonstrar que estava bem, mas seu suspiro de cansaço o incriminou. Ele observava as pessoas ao seu redor, mas sem realmente prestar atenção. Seus pensamentos estavam nublados por sentimentos de tristeza e saudades da mãe.

— Você não parece estar bem, Ori – Eli disse, subitamente assumindo um ar sério – Está com aquele olhar.

— Que olhar?

— O olhar de quem está desesperado, mas tem vergonha de pedir ajuda.

— Eu tenho esse olhar com frequência? – perguntou Orion, erguendo uma sobrancelha.

— Com frequência o suficiente para que eu note. Aconteceu alguma coisa em Kayin?

— Não. Bom, sim, aconteceu, mas não era para ser algo ruim.

— Me conte, então – Eli pediu. Ele segurou o rosto de Orion para que pudessem se ver olho no olho – O que foi?

— Não quero contar agora. Estamos em uma festa, vai se divertir, Eli.

Eli suspirou e ficou de pé, e então estendeu as mãos para seu marido. Orion as segurou e Eli disse:

— Dance comigo, então. Afinal, essa é uma oportunidade tão rara...

Orion deu um leve sorriso e se levantou, indo junto do marido até o centro do salão. Uma melodia um pouco mais lenta tocava. Eli pôde ver Nanna e uma garota de sua idade dançando de mãos dadas. Ele apoiou as mãos nos ombros de Orion e os dois balançaram e giraram suavemente.

— Acho que eu vou acabar dormindo de pé – Eli murmurou entre um bocejo e outro, encostando sua cabeça no peito de Orion – Essa música está me dando sono.

— Eu também. Tudo o que eu quero agora é uma cama macia.

— Por que não ficou em casa?

— Porque é a Maya. Ela está tão orgulhosa de tudo isso, ela trabalhou tão duro. E eu queria ver vocês logo – Orion respondeu, simplesmente – Já disse o quão bonito você fica com roupa formal? Maya disse que ficamos lindos de terno.

— Não mude de assunto. Você deveria ter ficado em casa e descansado. Volte agora, eu explico para a Maya. Durma, e quando eu e Nanna chegarmos, nós conversamos melhor.

Eli terminou a fala acariciando o rosto de Orion. Este bufou, um tanto contrariado, mas acabou parando de dançar e deu um beijo no rosto de Eli, antes de ir se despedir de Maya e Nanna e então voltar para casa.

***

Orion estava deitado no sofá, dormindo com um livro ainda cobrindo seu rosto. Eli e Nanna chegaram da festa algumas horas depois de Orion ter ido embora, e a menina estava igualmente cansada, de modo que foi para seu quarto com os olhos quase totalmente fechados – e consequentemente tropeçou no primeiro degrau da escada.

Eli tirou o livro do rosto de Orion, e ele acordou. Piscou algumas vezes e se sentou no sofá, dando espaço para que o outro se sentasse também.

— Como foi a festa? – perguntou Orion.

— Foi ótimo. Maya está muito contente e nós comemos um monte.

— Então todo mundo saiu vencendo.

— Com certeza – Eli riu um pouco, e depois voltou a ficar sério – Quer me dizer agora o que te chateou?

Orion suspirou e resmungou, não muito empolgado com a ideia. Ele se encostou no sofá e respirou fundo mais uma vez.

— Visitei o túmulo da minha mãe, como sempre. Falei com ela, ou com o vento, não sei se ela estava me ouvindo ou não. E então encontrei um de meus tios e fui jantar com ele. Não o via havia anos, contei sobre o que fiz nos últimos tempos, sobre ter mudado para Ethea, me casado, e tudo mais.

— Foi alguma coisa que ele disse?– questionou Eli.

— Não exatamente. Nós conversamos e eu fiquei pensando na minha mãe o tempo todo, foi estranho. Eu geralmente saio de lá com saudades dela, mas não... tão deprimido – respondeu Orion, gesticulando para expressar sua confusão – Acho que é uma coisa que eu percebi olhando o túmulo. Minha mãe tinha quarenta anos quando morreu. Eli, eu vou fazer quarenta anos. E eu tinha pouco mais que a idade que a Nanna tem agora...

A voz dele falhou e Orion virou o rosto. Eli se aproximou com cuidado e apenas segurou a mão dele.

— Eu não sei porque estou tão abalado com isso. Não é o primeiro equinócio que passo sem ela, já estou acostumado a não ter uma mãe. Só que é tão injusto eu ter tido tão pouco tempo com ela – Orion resmungou, e parou subitamente de falar. Ele olhou para Eli e continuou, com uma pontada de culpa – Desculpe, não devia falar desse assunto com você. Estou te aborrecendo, estou sendo ingrato.

— Não está me aborrecendo.

Os dois ficaram em silêncio, cada um olhando distraidamente para alguma coisa e pensando. Orion sentia-se muito mal quando falava com Eli sobre como seu pai tinha mau temperamento, ou sobre como queria que ele e sua mãe ainda estivessem vivos.

Eli nunca teve pais, ele havia ficado sozinho até Yltaris surgir. Quando Eli contava sobre seus tempos de criança de rua, Orion sentia-se muito grato por pelo menos ter conhecido seus pais, e ter tido uma casa para morar, por mais simples que ela fosse.

— Ori, você não pode mudar o passado – Eli disse em voz baixa – E o luto não é uma coisa fixa. Às vezes é fácil de lidar, às vezes não. Especialmente quando é uma pessoa tão importante para você.

— Eu tinha quatorze anos. Me achava tão maduro, tão adulto, mas agora eu vejo a Nanna e percebo que eu era uma criança ainda.

A voz de Orion falhou de novo e algumas lágrimas começaram a escorrer. Ele tentou sem sucesso disfarçar, mas assim que Eli o abraçou, Orion começou a soluçar e o apertou com força.

Ficaram alguns minutos em silêncio, até que Orion conseguiu se acalmar. Ele se afastou do marido e enxugou o rosto com as costas da mão.

— Obrigado.

— Não foi nada. Você precisa seriamente de um descanso – Eli respondeu – Eu vou fazer chá, e enquanto isso você coloque pijama e vá para a cama. Precisa dormir.

— Passei a noite inteira dormindo, eu não preciso...

— Não foi uma sugestão, Ori. Faça o que eu mandei. Quero cuidar de você. Eu te amo.

Orion finalmente se rendeu. Obedeceu ao seu marido e subiu as escadas, indo em direção ao quarto. No caminho, fez uma pequena pausa e olhou para Nanna, adormecida.

Não pôde deixar de pensar em si mesmo, com quase a mesma idade, recebendo a notícia da morte de Eudora. Orion suspirou com pesar e voltou a caminhar até seu quarto.

Era equinócio de primavera.

Mais um ano, Orion Golias sentia falta de sua mãe.


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Notas finais do capítulo

Então? O que acharam?
Não sei se vou chegar a especificar isso mais para a frente mas só para que saibam: a mãe do Orion morreu após ter contraído uma doença de um de seus pacientes.
Gostariam de mais capítulos sobre o passado do Orion e do Eli? Ou mais aventuras sobre a Nanna? E que tal um capítulo narrado pelo Dot?



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