Filhos da Noite escrita por Rick Batista


Capítulo 1
O Despertar da Morte


Notas iniciais do capítulo

Conheça Adam, um vampiro com um passado trágico que desperta em nosso mundo, em uma pequena cidade da Inglaterra. Espero que goste.



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Seus olhos se abriram.

Pela primeira vez em séculos emergindo de seu sono atormentado, das lembranças amargas de um tempo que não pode voltar. E com olhos de um animal noturno, logo passou a enxergar os detalhes da tumba em que dormiu, receptáculo esculpido em ferro para abrigar um corpo sem vida. Seu corpo.

Um movimento dos braços e a tampa foi movida. O túmulo aberto revelando um mundo intocado pelo tempo: com paredes de pedra, altas colunas e arquitetura dignas de alguém como ele. Trajando roupas de um cavalheiro inglês de princípios do século XVIII ele se ergueu; seus longos cabelos brancos escondendo um corpo enfraquecido pelo tempo.

Tempo. Por quanto tempo teria ele dormido? E por que acordou assim, fraco, entorpecido e sem qualquer viva alma para lhe dizer a razão daquelas coisas? Para essas questões não encontrou resposta, apenas uma sensação crescente a tomar conta de seu pensamento: a sede. Uma sede intensa que o feria como uma lâmina na garganta, agonia que só fazia lembrá-lo do que era: um monstro que se alimenta de sangue. Um vampiro.

Monstro que ao abrir caminho por uma passagem secreta, caminhou novamente por sua casa. Se arrastando por corredores escuros, apoiou-se em paredes cheias de teias de aranha e mofo, ouvindo cada vez mais próximo o som de música. Uma melodia alta e estranha, que ele não conseguiu discernir os instrumentos. Sentiu por fim o vento, entrando por uma pequena janela, molhando seu rosto com as gotas de chuva. Uma visão nostálgica, capaz de arrastá-lo até muito tempo atrás.

***

Do alto da sacada de seu quarto, o casal olhou para o céu escuro, como se dele esperasse respostas.

— Uma tempestade está para cair sobre nossas cabeças — disse a jovem para o homem ao seu lado. — É medo o que vejo em teus olhos?

— Crê que eu teria algo a temer, que não fosse perdê-la? — respondeu ele, segurando em suas mãos delicadas. — Mais que qualquer outra coisa, temo não vê-la de novo.

Ele beijou as mãos da amada com ternura, ela apoiando-se no peito dele, como que buscando segurança e paz, diante do caos iminente. Ele a abraçou forte em resposta, seus olhos refletindo amargura.

— Viemos tão longe, comprando essa casa no lugar mais isolado que pudemos encontrar. Poucos empregados, poucos conhecidos, tudo para manter os malditos longe de nós. Tudo para preservar um pouco de paz! — O homem se afastou dela, apoiando-se na grade da sacada. O peso do mundo nos ombros. — Eu sabia que era apenas questão de tempo até nos encontrarem, só pensei em, quem sabe, mais dez ou quinze anos antes que transformassem nosso sonho em cinzas.

Ela abraçou suas costas, ele não querendo que suas lágrimas fossem vistas.

— Meu senhor, meu amado, o Gênesis já nos ensina que o paraíso não foi feito para durar.

Ao longe e por todos os lados, tornavam-se visíveis as dezenas de lamparinas brilhando na escuridão, marchando lenta e inexoravelmente rumo ao casarão no cume de uma colina sombria.

— Eles vêm para consumir nosso paraíso com fogo — disse o vampiro, sua íris vermelha. — Pois eu lhes mostrarei o inferno.

***

Tristeza foi tudo que sentiu. Sua mente ainda sem funcionar com clareza, mas aquela lembrança tornou seu corpo mais fraco e pesado que antes. Cada passo subindo a longa escadaria a sua frente foi difícil, mas pouco a pouco o farrapo humano que restou dele começou a discernir novos sons, dessa vez de vozes, sobrepondo-se ao ritmo agitado do qual se distanciou.

— Cansei de você fazendo doce! — voz de homem. — Já passou da hora de abrir essas pernas, santinha do pau oco.

Risos.

— Não... eu disse que não. Quero ir embora. O que você me deu pra beber, hein? — uma voz doce, parecendo embriagada. — Você me drogou, Barry?

Algo na voz dela encheu de força seu corpo. Movendo-se rápido como um gato ele avançou em direção à voz, como um predador em seu próprio território. O cômodo de cima era largo, possuindo três portas: uma em cada lateral, e outra no fim do corredor. Portas velhas, de madeira apodrecida. No centro de tudo, dois rapazes loiros, aparentando ter seus vinte anos. O menor ia à frente, de jeans e blusa social aberta, carregando uma garrafa de cerveja em uma mão e a lanterna na outra.

— Na tua cervejinha? Nada de mais! — zombou, rindo e bebendo. — Tu não gosta de ser tratada igual princesa? Então, só te dei um boa noite Cinderela.

Logo atrás, o garoto carregava a jovem confusa nos braços tatuados, com nervosismo estampado na face. O dono da lanterna apenas riu, chutando repetidamente a porta no centro do corredor, até ela se abrir.

— Esse vai ser nosso motelzinho. Não é de classe, mas já quebra um galho. Tem até cama de casal!

O maior entrou no cômodo, deixando para trás o jovem a iluminar o corredor. Para o caçador, a oportunidade que esperava. Novamente homens maus invadiam sua casa, homens que vinham para causar sofrimento. Homens que mereciam a morte.

***

O mundo se transformou em fogo e sangue, com dezenas de corpos tombados pelas mãos dele. Suas roupas pintadas com o sangue de muitos, incluindo o próprio. Seu corpo exibindo uma coleção de ferimentos que teriam levado qualquer ser humano a morte. Buracos de tiros, cortes de lâminas variadas, queimaduras... Ele perdeu qualquer noção de tempo, sentindo apenas a chuva sobre si, o abafado cheiro de fumaça e o gosto de sangue, assim como uma dor terrível espalhada por todo corpo. E em meio ao caos da batalha, um som ensurdecedor anunciou o disparo de outra arma, com o vampiro sendo atingido em cheio pelo tiro de mosquete. Ele caiu, a dor o convidando ao sono eterno, a desistir e conformar-se.

Um convite que rejeitou.

Sem forças sequer para pôr-se de pé, decidiu ceder aos instintos obscuros. Fechar os olhos do homem, e abrir os do monstro. Ao se deixar dominar pela sede de sangue, o vampiro se tornou mais predador que humano, e também mais forte. E com a fúria de um animal selvagem ele desviou dos tiros de seus algozes, diminuindo a distância entre eles. O pescoço do primeiro foi rasgado em um piscar de olhos, por presas afiadas e mortais. O segundo mal teve tempo de compreender o que ocorreu, quando viu o próprio braço ser decepado, seu grito de horror apenas complementando o absurdo da cena.

Quanto ao terceiro — um velho e trêmulo homem segurando uma arma de fogo —, o vampiro fez questão de mantê-lo vivo enquanto sugava seu sangue com avidez. O líquido vermelho tornando-o capaz de prosseguir.

Como um anjo da morte ele vagou pelo campo de batalha, ceifando a vida daqueles que encontrou pelo caminho até o casarão, e deixando uma centena de cadáveres para alimentar os corvos. Até que a dor de contemplar seu paraíso transformado em chamas o trouxe de volta a consciência. Já sem a força descontrolada, apoiou-se na espada, assim como na esperança de encontrar sua amada ainda viva. Seus longos cabelos negros encharcados, suas roupas ensanguentadas, sua espada, pronta para ser usada ainda outra vez.

Exausto, ele chegou aos portões da própria casa, antes uma fortaleza segura, agora, um lugar tomado por assassinos.

— Aberração! Demônio! — o grito foi acompanhado de um golpe de machado na altura do peito. O homem que o atacou era maior e mais robusto, seu golpe com força o suficiente para abrir seu tronco.

A lâmina fez um corte no peito do homem, que desviando do pior do ataque, encravou a espada no peito do seu agressor. Depois chutou o corpo sem vida para fora do portão de entrada.

— Saia... da minha... casa — disse ele, caminhando por uma estrutura banhada em chamas e sangue.

***

O vampiro avançou como um animal faminto. O garoto iluminou o chão à frente por puro reflexo, gritando horrorizado ao vislumbrar o monstro! Derrubando tudo e caindo de costas no chão, pôde contemplar a face iluminada do agressor. Contemplar sua morte. No rosto do garoto, surpresa e medo que não causavam compaixão. "Ele merece", o vampiro pensou, encravando os dentes no pescoço da vítima, e a sede não o deixou pensar em mais nada. O sangue quente e saboroso desceu por sua garganta, se espalhou por seu corpo sem vida e tornou o morto-vivo mais forte, humano e atento. Seus cabelos retomaram a cor preta natural, seus olhos, o brilho, e sua pele, um tom saudável.

O garoto que antes carregava a jovem se escorou na porta e sacou a arma, assustado.

— Merda, Barry! Pode parar com a gozação que já perdeu a graça! — gritou, parecendo duvidar do risco.

E após instantes de hesitação, saiu do velho quarto, diante de um vampiro ciente que a escuridão impedia que seu alvo enxergasse o sangue jorrando do pescoço do cadáver do irmão, o mesmo que sujava sua face.

— Que merda é essa?

O vampiro então o encarou com seus olhos que brilhavam no escuro. Um olhar assustador. O jovem descarregou as balas da pistola enquanto gritava irracionalmente. Dos oito disparos, ao menos cinco atingiram o alvo. Um alvo que sequer se moveu. A munição terminou antes do grito, e no fim, apenas se ouviu o som do gatilho sendo apertado de maneira frenética, ainda que inútil. O jovem encarou o estranho que o fitava, que ergueu a face de modo despreocupado em sua direção.

E em um piscar de olhos, o vampiro o lançou com um chute para dentro do quarto já aberto. Depois o ouviu gritar de dor, quando esmagou sua mão de apoio. Por fim o vampiro o ergueu pelo pescoço com uma só mão e, com força sobre-humana, começou a enforcá-lo.

— Para violadores, a morte. — Suas primeiras palavras, uma sentença de morte.

Ele observava a vida se esvaindo de um homem que se debatia inutilmente, diante de seus olhos frios.

— Quem é você? — A voz veio de cima de uma cama que ele conhecia bem. Deitada nela, alguém estranhamente familiar, sua voz hesitante e curiosa, apagando a chama do ódio.

***

Após o que pareceu uma eternidade, ele a encontrou: seu motivo para matar, seu motivo para existir.

— Alice. — Lágrimas de sangue brotaram dos seus olhos negros, a espada caindo das mãos. Ele foi ao encontro da mulher que amava, deitada na cama, com um ferimento letal na altura do ventre.

Os belos cachos loiros conferiam beleza a uma cena fúnebre, os olhos verdes cheios de medo, um sorriso triste de quem se agarrava com dificuldade a esse mundo. No quarto do casal, os cadáveres daqueles que falharam em matar sua esposa, a esposa do vampiro.

— Você chegou, estava cansada de esperar — disse ela, com dificuldade, olhando para o homem que amava.

Encharcado, ferido e com medo, ajoelhou-se ao lado da amada. Segurando delicadamente em suas mãos, acariciou os cabelos da única mulher que já amou, forçando um sorriso carregado de tristeza.

— Peço seu perdão, não quis fazê-la esperar. — Em um momento ele fez surgirem presas afiadas, que rasgaram o pulso de um homem desesperado. — Mas apesar de tudo, cheguei a tempo.

Ele estendeu seu pulso ensanguentado para a jovem moribunda, um raio de esperança surgindo em seus olhos.

— Beba, beba e continue comigo — sussurrou, aproximando o corpo dela de si. — Ainda posso transformá-la, fique comigo pela eternidade.

Ela pareceu sentir dor, cuspiu sangue. Segurou o rosto dele com ambas as mãos e, com um sorriso, respondeu:

— Sou eu quem vai pedir perdão, pois não posso aceitar seu presente. — Um beijo suave nos lábios. — Eu vivi como mortal, e é dessa forma que desejo morrer.

Ele chorou amargamente, sabendo que aquela mulher teimosa não voltaria atrás.

— Você é cruel me dizendo isso — disse ele, desviando o olhar.

— Continue lutando, meu amor, siga lutando até... nos encontrarmos novamente. Seja nessa vida ou na próxima. — Com as faces coladas uma na outra, os dois tentavam tornar aquele breve momento em eterno. — Um dia chamarei por você, Adam, verei seu sorriso, e aí então...

A chuva caiu forte do lado de fora do casarão. Dentro dele, os olhos de Alice se fecharam para sempre.

***

Ele largou o garoto, que caiu no chão, tossindo sem parar. Então contemplou a dona da voz: o corte e comprimento do cabelo eram diferentes. As roupas eram estranhas, mas nada daquilo o impediu de reconhecê-la. Por um momento uma alegria intensa invadiu seu coração, e um sorriso de felicidade genuína se fez presente em seus lábios.

— Sou eu... Adam — afirmou, aproximando-se de uma Alice estranhamente diferente. — Eu despertei por você.

E ao dizer as palavras, se deu conta que só poderia ser aquele o motivo. Ela o chamou, como havia prometido. Mesmo tendo levado uma eternidade, ela o chamou. Ele colocou a mão em seu rosto delicado, como se precisasse de uma prova física de que não sonhava com ela. A pele macia, o calor... Mal podia acreditar que a tinha de novo ao alcance das mãos! Então a abraçou forte, dando vazão ao sentimento que por tanto tempo o tinha atormentado.

A jovem riu incontrolavelmente, como se não entendesse o motivo de tudo aquilo. Então levou a mão à boca, parecendo deter um enjoo, com isso fazendo com que Adam a soltasse. Olhou fascinada para ele e respondeu:

— Eu sou Claire, desculpa, mas te conheço não. — E voltou a rir, ele ficando desconcertado. — Mas... bem que podia conhecer. Você é tão gato!

Ela estava visivelmente alterada, e depois de dizer aquilo, apagou.

Adam observou a jovem cair no sono, como uma criança inocente, como um anjo. Não havia qualquer sinal de ferimento ou cicatriz onde antes havia uma ferida fatal. O nome, o cabelo, as roupas... era tudo diferente. A estranha arma de fogo usada contra si, nada daquilo era familiar a ele. A verdade era que algo de inacreditável ocorreu naquela noite, e ele precisava entender o que. Precisava de respostas, e já sabia onde buscá-las.

O vampiro abaixou–se na direção do jovem que se arrastava. Olhos nos olhos, deu uma ordem que ele não podia ignorar:

— Eu farei perguntas, e você as responderá da melhor forma que puder.

Olhar vazio, compreensão da ordem, obediência.

— Vou responder, e vou ser bem claro — repetiu, mecanicamente.

O vampiro ficou um instante pensativo, sem saber sequer por onde começar. Olhou para o teto, para Claire, para o rapaz, e então decidiu:

— Em primeiro lugar... em que ano estamos?

***

Claire sentiu uma forte dor de cabeça, e abriu os olhos, assustada. Estava deitada em uma cama velha e fedida, a única iluminação vinda de um castiçal de velas acesso ao seu lado. Sua mente estava confusa, um emaranhado de imagens desconexas e conversas estranhas, algo sobre uma festa de universitários, com vizinhos a levando para algum lugar contra sua vontade. E claro, um estranho. Um estranho atraente e sombrio.

A garota se levantou, tentando se recuperar do que classificava agora como uma ressaca épica.

— A senhorita acordou, enfim — disse o homem de que se lembrava, vestido de modo antiquado. — Estava preocupado.

A garota viu o homem na porta do quarto. Com roupas de época, longos cabelos negros e belos olhos da mesma cor — uma figura impressionante. Claire não pôde deixar de pensar que deveria estar desconfiada, assustada até. Mas estranhamente, sentia-se segura.

— Escuta, não rolou nada entre a gente, não é?

— Vi que a senhorita estava mal, e a deixei descansar aqui — respondeu ele. — Garanto que nada além disso.

Ela suspirou, aliviada. Depois deu alguns passos pelo quarto antiquado... algo ali lhe trazendo uma sensação familiar que sequer compreendia. Instintivamente foi até a sacada, de onde tinha uma bela e única visão noturna da sua cidade sem grandes prédios. Sua universidade, a velha igreja Anglicana, as muitas casas de modelo antigo que se espalhavam despretensiosamente por terras cobertas de verde. Ele a seguiu até lá, parando ao seu lado.

— E a quem devo agradecer? — perguntou ela, com cara de sono e um sorriso.

— Me chamo Adam Turner, e sou o dono legítimo desta casa.

Ela sorriu mais ainda com a resposta, sem de fato acreditar nela. Aquele casarão enorme, antigo e mal cuidado não poderia ter um dono como aquele. Não o velho casarão da colina, que remetia a fundação da cidade e as tragédias que nela se sucederam. Único ponto turístico relevante da cidade, mas que sequer funcionava como tal. A casa mal assombrada de que tinha medo na infância e curiosidade na adolescência. O lugar em que pisava pela primeira vez.

— Lady Claire, sua alteza. — brincou, fazendo uma reverência exagerada. — Te disseram que a festa era a fantasia, é?

Ele hesitou por alguns instantes, até responder:

— Sim, uma fantasia. Quem se vestiria assim, não é verdade?

***

Adam sorriu, começando a se sentir novamente vivo, mesmo sem entender em que tipo de mundo sua maldição o fez renascer.

— Adam, me tira uma dúvida: você viu dois irmãos andando por aqui? Lembro de discutir com um deles, mas depois é tudo uma bagunça.

— Não. Gostaria de dizer que duelei com eles em sua defesa, mas a verdade é que quando a encontrei já estava deitada aqui, cansada e com sono. Nos falamos por um momento, mas logo dormiu como um bebê.

Ela levou a mão a cabeça, como se tentasse relembrar.

— É, perdeu sua chance de bancar meu salvador — respondeu, por fim.

— Algumas damas não precisam de salvadores — falou, pegando em suas mãos e lhes dando um beijo suave —, mas podem precisar de companhia, e eu gostaria muito de vê-la novamente, senhorita Claire.

Ela sorriu, com aquele mesmo sorriso que ele tanto amava. O sorriso da Alice.

— Pode me ligar quando quiser — respondeu ela, ao recitar uma sequência de números para alguém que nem mesmo sabia para que eles serviam, mas tinha boa memória. — Mas agora eu preciso ir, tenho uma amiga que deve estar doida me procurando.

— Compreendo. Até breve... — ele hesitou por um momento, ao perceber que a chamaria "Alice" —... Claire.

O homem a observou se afastando, bela como uma deusa vagando entre mortais. Não conseguiu desviar os olhos até o último momento, nem tirar o sutil sorriso dos lábios. Agora ele sabia quem era ela, e aqueles números decorados lhe ajudariam de alguma forma a encontrá-la. Parte dele gostaria de fazê-la ficar, mas Adam sabia que nada valioso como o amor se conseguia a força.

Uma vez sozinho, lembrou-se daquele que o aguardava logo abaixo.

***

Leonard despertou caído, desarmado e sentindo a cabeça doer enquanto seu algoz o puxava pela perna, como a um cão atropelado na estrada.

— Serei sincero com o senhor, não me sinto assim há muito tempo — o homem dizia para sua vítima, enquanto a arrastava. — Não sei se já se apaixonou de verdade, se amou alguém com todas as forças. Se já, sabe o quanto isso mexe com uma pessoa, como esse sentimento nos salva de uma existência sem sentido.

Nessa hora o carregador se virou para trás, contemplando um jovem completamente assustado, que tentou inutilmente se agarrar em algo no corredor, e chutar a mão que o puxava pelo tornozelo com a força de um gorila.

— Como dizia, estou realmente feliz hoje, muito feliz por encontrá-la — minha Alice. Ou como você deve conhecê-la: Claire.

— Cala a merda da boca, filho da... — a frase foi interrompida com violência.

Leonard viu tudo borrado, até seu corpo parar. Sentiu as dores, o gosto de sangue na boca e a raiva se acumulando no peito. Quando se forçou a ficar sobre a perna boa, se deu conta do irmão, logo abaixo. Barry estava caído, com os braços abertos e uma expressão de pavor. Não era o irmão, era o que sobrou dele. Seu corpo estava seco, com olhos esbugalhados e boca aberta. Havia sangue por todo canto, no chão a sua volta, no pescoço destroçado, e nas roupas manchadas. Menos no corpo.

— Só para concluir: hoje a noite eu encontrei algo muito especial, algo que eu estive esperando por anos, décadas, séculos, enquanto era atormentado pelas lembranças de minha tragédia e a dor da minha perda — o monstro dizia, enquanto se aproximava lentamente de um jovem trêmulo e apavorado. — O senhor tentou tirar isso de mim. Não é algo que se possa relevar.

Leonard balbuciou incoerências, sem firmeza na voz ou nos braços, antes fortes.

— Cada predador tem seus truques, hoje eu conheci os seus, e vocês conheceram os meus. Dois estupradores. Dois cães arredios e sempre no cio — disse o monstro, inclinando-se até ficar face a face com ele. — Geralmente eu mato apenas por necessidade, apenas quando a sede é grande demais para ser reprimida. Mas hoje não.

O homem congelou ao vislumbrar os olhos, vermelhos como sangue, e as presas que se revelavam na face do monstro. Contemplou o demônio, antes de ouvir as palavras finais.

— Hoje é pessoal.

***

Na cidade de Manchester, na varanda de um quarto de hotel, uma mulher olhava para o horizonte. Seus cabelos castanhos balançavam ao vento, suas mãos banhadas no sangue do cadáver de um homem caído ao seu lado. Seus olhos abertos em espanto.

— Algo grande despertou essa noite — disse ela, com um sorriso malicioso no rosto. — Espere por mim, queridinho, estou indo até você.


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Notas finais do capítulo

Obrigado por ler, sua opinião é sempre importante pra mim, então sinta-se livre para deixar um comentário dizendo o que gostou ou não nele, que você me fará um autor mais feliz.

Até o próximo.