As quatro testemunhas escrita por Hunter Pri Rosen


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Olás,

Apresento a todos a coisa mais triste que já escrevi nessa vida. Precisava desabafar e deixar aqui uma crítica social para reflexão.

Boa leitura.



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A PRIMEIRA TESTEMUNHA

Eu estou em quase toda a parte. Quase absoluta e indiscutivelmente essencial para a vida, reino em cerca de 70% do planeta que vocês chamam de Terra. Injustamente, devo dizer.

Se não fosse por mim, você não estaria aqui. Nenhum de vocês, aliás.

Não sou infinita, tampouco imortal. Ainda assim, é dessa forma que costumo ser tratada. Desperdício e poluição são meus piores pesadelos. Inimigos silenciosos que me matam um pouco todos os dias.

Se depois de tudo isso, você ainda não sabe quem eu sou, muito prazer, sou aquela que chamam de Água.

Naturalmente livre, corro por toda a parte. Às vezes, lenta e calma; às vezes, feroz e indomável.

Gosto de ser livre; parece certo. Gosto de proporcionar vida a todos também; é o certo e o meu papel no mundo.

Mas, nesta manhã gelada de inverno, enquanto percorro a tubulação estreita e irrompo pela mangueira que um de vocês segura de um jeito firme, não me sinto tão bem com o meu papel. Dessa vez, não parece certo.

Minha presença lava as calçadas, as vias e uma praça de uma importante cidade. Mas também assusta várias criaturas da sua espécie e seus companheiros quadrúpedes e raquíticos. Criaturas de vários tamanhos e formas, que dormiam um sono perturbado antes da minha fluidez cortante e gélida atingir seus fétidos cobertores. Cobertores agora encharcados.

Eu peço perdão a vocês por tudo isso. Eu não queria agir assim, porém não tive escolha. Virei uma mera ferramenta de limpeza. E isso não me parece certo. Parece bem errado, na verdade.

Resignada e infeliz com o caos que causo, assisto minhas lágrimas se misturarem ao jato impiedoso que desperta esses seres injustiçados para uma cruel realidade e para uma vida que, perdoem-me, não me parece vida.

A SEGUNDA TESTEMUNHA

Eu estou em quase toda parte. Neste exato momento, é muito provável que você esteja pisando em mim ou construindo algo sobre mim. Mesmo que haja algum tipo de camada nos separando, acredite, eu estou lá, sempre estou.

Por todo o mundo, seres selvagens de incontáveis espécies rastejam sobre minha superfície, lutando pela sobrevivência a todo instante, enquanto eu assisto a tudo como uma silenciosa espectadora. É emocionante, devo dizer.

Mas, nesta tarde gelada de inverno, em uma importante cidade, sob camadas de concreto, o que assisto não me parece natural como a lei da selva. É bem cruel, na verdade. Eu choraria, se tivesse lágrimas.

Seres da espécie humana e pequeninos animais se recolhem pelos cantos de uma praça, sob decrépitas árvores que o vento balança impiedosamente. Em silêncio, preparam-se para enfrentar mais uma noite de incertezas, abandono e muito frio.

Com cobertores úmidos e de odor ácido, encolhem-se como podem, sempre buscando um calor que parece cada vez mais raro e inatingível nesse cenário mordaz.

Sei que nada nesse triste quadro é culpa minha. Mesmo assim, só quero que saibam que eu sinto muito. Lamento que estejam passando por isso sobre mim. Lamento ser uma mera e impotente espectadora. Lamento ser apenas a Terra.

A TERCEIRA TESTEMUNHA

Não estou em toda parte, mas não passo despercebido quando estou. Posso ser destruidor ou acolhedor, tudo depende da intensidade e das circunstâncias.

Amo minha principal missão: aquecer.

E é por isso que me sinto profundamente frustrado quando não consigo exercer o meu papel de forma satisfatória. Eu lamento muito quando isso acontece. Como está acontecendo agora, aliás.

Lamento porque, apesar dessas pobres criaturas ao meu redor terem me alimentado com tudo que podiam, a fim de se aquecerem nesta noite gelada de inverno rigoroso, em uma importante cidade, minhas chamas estão se extinguindo fatalmente agora.

Em breve, o calor que proporcionei será uma vaga lembrança em seus corações calejados de sofrimento.

Alheios ao meu fim próximo, vocês dormem, misturados com pequenos animais peludos e companheiros leais. Logo, a atmosfera de abandono impera por toda a parte, deixando-me ainda mais triste e desolado.

Enquanto eu, o Fogo, morro, para renascer em outro lugar e momento, vocês tremem sob uma geada atroz e violenta, que arrasta suas frágeis humanidades pela sarjeta imunda e dura do desprezo.

A QUARTA TESTEMUNHA

Estou quase em toda a parte. Sou essencial para muitas espécies e dispensável para tantas outras. Posso até ser invisível, mas garanto que estou a sua volta neste exato momento. Você me respira enquanto toco seu rosto sutilmente, sabia?

Geralmente, sou assim, um conforto, um bálsamo, um presente constante. Mas não agora. Não nesta madrugada triste e gelada de inverno descomunal, numa cidade qualquer. Agora, sou uma navalha fria e cruel. Agora, provoco desconforto, angústia, mal-estar.

Manipulado pelo vento forte, apaguei o Fogo há algumas horas. Estou cada vez mais frio e revolto desde então. Sem querer, faço os seres que dormem encolhidos nessa esquecida praça tremerem em meio a um sono perturbado.

Eu sinto muito por lhes causar tamanha dor. Se pudessem me enxergar, garanto que veriam como estou triste agora. Sem esperança e com muita vergonha.

Preocupo-me especialmente com um de vocês pois, de repente, não te sinto mais me puxar para dentro de si. Você tentou enquanto pôde, mas está muito fraco agora.

O frio te cerca e a Morte, por fim, te espreita. Vejo-a passar por mim devagar e com lágrimas nos olhos profundos, pronta para cumprir o seu papel.

Inconformado, agito-me contra o vento gélido e tento adentrar os seus pulmões à força. É inútil. Sinto-me inútil, falhei, esta não é a minha natureza.

Em silêncio, assisto à Morte te carregar nos braços como algo precioso. Ela te aperta sob o manto negro de forma acolhedora e carinhosa. Sorri ternamente para você.

De repente, você não é mais invisível, você importa para alguém. E, também de repente, você não está mais tremendo.

O calor do fim acalenta sua alma, enquanto o frio inclemente envolve apenas o seu corpo material. Inerte e petrificado, ele fica para trás, ao relento; enquanto você, meu querido, segue em frente, voando através de mim, o Ar.


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Notas finais do capítulo

Comentários são bem-vindos.

Bjs.



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