Sempiternum — A Maiêutica das Estrelas escrita por Cervello


Capítulo 5
Chamas


Notas iniciais do capítulo

Ok, ok, foi um intervalo longo. Mas não, não dropei a fic e nem pretendo. Só não posso prometer que as postagens agora sejam tão regulares, mas vou fazer o possível.
Enfim, boa leitura!



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I

Fogo é o nome dado ao efeito de oxidação de um combustível, de forma que libere calor e luz. Sem isso, ele não seria visível, sequer sensível... tampouco perigoso.

Ele não é um elemento em si. É uma consequência. Essa máxima é importante, pois, veja: um raio cai numa árvore e a incendeia. Uma tribo primitiva que reside em sua proximidade se depara com o incêndio e vê ali um exemplo do ímpeto divino da natureza. Porém, um integrante dessa mesma tribo produz uma faísca através do atrito, e incendeia um galho (composto, por sua vez, de madeira, um material suscetível a oxidação, ou melhor, inflamável), e produzindo o fogo, se vê com o poder da natureza em suas mãos. Contudo, o valor social nada muda a causa e a consequência. Esse pressuposto é importante para defini-lo, para muito além de um símbolo de poder universal, como um belíssimo efeito da natureza visível, e nada mais que isso.

Todavia, caro amigo, esses pressupostos não são o bastante para explicar a mecânica invisível de toda a natureza aparente. As engrenagens que movem os processos exotérmicos, endotérmicos, a gravidade, as chuvas... elas estão além de nossa compreensão, por trás do véu espesso das aparências e da lógica mundana.

Essas engrenagens compõem o que chamaremos aqui de subplano, e só poderia ser sub tomando como referência a realidade como vemos. Através de uma energia misteriosa, obtusa, que reside no âmago de todos os seres, por baixo do simulacro daquilo que chamaremos aqui de alma, podemos manter um contato, por mais que mínimo, com este subplano. Este contato a princípio recebe o nome vulgar de magia.

Para manipular as engrenagens da realidade, é necessário um rigoroso treino e disciplina, como qualquer outra arte marcial, no entanto que essa desgasta o corpo não para ampliar suas capacidades, mas para alterar as propriedades de tudo a sua volta.

A magia, tal como o fogo, é uma consequência. O que você precisa é aprender a provocar-lhe: criar uma causa. Eu lhe ensinaria os detalhes disto, meu caro confidente, com todo o prazer que reside em mim... porém, um detalhe obstrui o nosso caminho: eu não me lembro.

O que me lembro é, que naquele momento, eu estava diante de uma criatura horrenda, com ambas as minhas mãos envoltas em chamas.

II

O lobo investiu contra mim desajeitadamente. Sua pata ferida fez com que a amplitude do seu salto fosse menor que o planejado; não fosse assim, poderia cravar os dentes em meu ombro, fazendo que despejasse sobre a raiz da árvore um tapete de sangue, e, no entanto, apenas pude sentir o hálito quente e quase que putrefato da criatura; contudo, suas presas estiveram longe de me alcançar. Ele estava quase que... relutante.

E como é triste enxergar essa relutância numa criatura e selvagem, eu pensei, no que você deve certamente considerar: como eu conheço a natureza selvagem de uma criatura tão enfraquecida? Por consequência, eu não devia julgá-la dócil, amedrontada?

Essa linha de raciocínio é a mesma que nos separava: eu e o lobo à minha frente; o instinto latente, o preconceito que aos poucos se justifica, a ameaça eminente... eis ai, meu caro, a fórmula que fez as chamas em minhas mãos se acenderem. Talvez eu fosse, naquele momento, mais selvagem que o canino, por sentir medo. Ou talvez... ódio — mas falaremos mais deste depois.

Não pensei; como qualquer outra pessoa faria, tentei me livrar das chamas assim que recuperei a razão. Pensei que talvez elas pudessem me queimar, o que a princípio não estava acontecendo, mas tão logo considerei a hipótese, senti a minha carne aquecida como se estivesse dando as mãos ao próprio Satã. No movimento abrupto de se livrar das chamas, elas simplesmente se soltaram da minha mão, rasgando o ar como se possuíssem forma sólida, e se dissipando ao colidir com a superfície da árvore. Porém, a segunda chama, essa passou de raspão no lobo, que ganiu.

Você deve se lembrar dos três que estavam assistindo tudo. De fato, é o que eles faziam. Talvez eu me lembre, por parte deles, de um semblante preocupado, de Luana mordendo os lábios, cerrando os pulsos, de Jeong se esforçando para ver a cena... a questão é: queriam eles que eu estivesse lá, fazendo aquilo que estava fazendo? Colocaram-me para morrer para o lobo, ou para que o lobo fosse morto? Possuo resposta para todas essas questões, mas as prorrogarei um pouquinho mais, se não se importa.

O canino, ainda mais ameaçado, saltou novamente contra mim, no que acertou, e pela primeira vez, eu estava abaixo dele, com suas garras cravadas em meu peito.

Mesmo com o desespero que me tomava gradativamente, eu vi os outros três se aproximarem de relance, Luana na frente, os outros dois surpreendentemente lentos. Ela berrava objeções a Manibus; Jeong exigia tranquilidade; professor silenciava, e eu tinha um lobo em cima de mim.

Senti novamente aquela ardência interior. Era como produzir qualquer seiva de nosso corpo... se eu me via capaz de suar, chorar, excretar, ejacular, me via capaz, por um estranho conseguinte, de igualmente produzir fogo. Assim o fiz; minhas mãos começavam a fumegar, e dessa vez não tardaram em disparar as chamas, agora em formato cilíndrico, no peito da criatura.

Me vi com o manto rasgado no peito e ombros. Os cortes, na pele, sangravam. A criatura me atingiu várias vezes e a adrenalina fez com que eu sentisse a dor tarde demais. Ela estava jogada diante de mim, ainda respirando. Os outros três se afastaram, não sei se assustados ou aliviados. Manibus era uma estátua — não havia nenhuma credulidade em seu olhar.

— Olhe o que você fez! — Luana lhe dirigia a palavra, com lágrimas nos olhos.

— Não. — Era difícil acreditar em Manibus naquele momento; sua voz estava trêmula, apesar do semblante rígido — estamos juntos nessa. Não se esqueça disso. Vince. Vamos, levante-se — e apesar do imperativo brusco, ele veio em minha direção. Eu recuei.

Sim, amigo, eu recuei! Como se Bernardo Manibus me fosse uma ameaça maior que o canino; e como se meu próprio olhar possuísse algum quê de selvageria, ele também paralisou.

— Vince, você acaba de descobrir o poder que tem — ele disse — mas não é hora disso. Eu sei que você consegue se contro...

— Onde ele foi? Para onde o lobo foi?

De fato, para onde foi? Ah, sim, a criatura foi arremessada floresta adentro.

— Depois nós resolvemos isso. Agora, vamos...

Talvez eu realmente quisesse saber o que ele tinha a dizer, mas aquela nuance selvagem e ígnea que consumia o restante do meu ser me induziu a adentrar a mata.

Eu estava convicto de que iria matar aquele lobo.

III

Tal como o fogo é alegoria de fúria, creio que os lobos também possuam alguma alegoria própria. Podem representar poder, sapiência, coragem. Em contrapartida, significam fúria desenfreada, ameaça latente; também podem metaforizar a sociabilidade e a capacidade do homem de combater os próprios medos. Mas isso não é importante. Voltando ao fogo: para Camões, poeta fictício, o amor é uma espécie de fogo que arde sem se ver. Ah, isso é ainda menos importante.

Perdão, estou divagando. Vamos voltar ao que realmente interessa.

IV

O lobo não pôde ir muito longe, apesar de termos adentrado a floresta e dado curvas o suficiente para despistar qualquer um dos três que haviam ficado para trás. Eu sentia o cheiro do animal. Uma mistura de putrefação, sangue e queimado. Mais queimado que tudo. Ele, há pouco tentava fugir, mas como estava machucado, voltou-se a mim em um sinal de autodefesa cega (ou ao menos pensei que o fosse). Estávamos basicamente nos esfregando nas árvores, aquelas árvores coloridas que já descrevi.

Eu estava pronto para arremessar mais uma labareda em sua direção, quando a criatura surpreendentemente levantou-se.

O gesto seria quase que cômico, não fosse tão abjeto. Era um quadrúpede se levantando, você talvez consiga imaginar a cena — mas o pior, era coxo, com uma parte do seu corpo caída para o lado. Aquela máscara que entregava o formato de sua face era, agora, quase humana. Não, melhor, estava se metamorfoseando em algo próximo a um humano.

Era uma licantropia reversa.

Eu estava exausto, apesar da fúria cega que me acometera. As chamas em minhas mãos, há pouco expressivas, grandiosas, brilhantes, agora não eram maiores que a de um isqueiro. E eu estava assustado, claro, perdendo toda aquela energia, diante da cena à minha frente: o lobo estava ficando cada vez mais reto, seus músculos cada vez mais rígidos e notórios, e conquanto seus membros superiores juntamente com sua caixa torácica se expandiam, suas patas traseiras cresciam para trás, conferindo-lhe mais equilíbrio. Sua face se alargava, e apesar de ainda parecer um canino, estava mais.... quase que identificável, humana, o que a tornava ainda mais assombrosa. E tudo isso acontecia conforme gania obscuramente.

        O... o... o... o...

O ganido pouco a pouco tornava-se uma espécie de jubilo, de uivar, até que formasse uma expressiva vogal, que tinha forma e essência — ele queria dizer alguma coisa. Eu recuava, pouco a pouco. Aquilo era demais. Ah, veja como essa frase está ficando enfadonha...

O... Ol...

— Não! — E a palavra se projetou mais como um gemido do que como um imperativo. Tentei atingir-lhe com o que eu sentia que seria minha última chama frágil, dolorosa e fina, mas ainda assim, poderia ser fatal, visto o estado do lobo. Ou melhor... o aparente estado do lobo, devo dizer.

Eu não fiquei muito surpreso, devido à fadiga (eis a primeira armadilha do destino: a magia é estupidamente cansativa), quando o lobo, já não menos ereto que eu, desviou com o braço a labareda tênue. O que saiu pelos furos de sua máscara primeiro me pareceu um tossir, mas logo vi que era uma risada.

— Ond... onde estão... seus modos, Vince? Eu... huff... eu bem queria conversar um pouco antes que pudéss... pudéssemos terminar isso de uma vez. Mas... mas vejo que vo... você está com pressa. Então, en garde!

Eu não pude reagir quando o lobo... ou seria o lobisomem? Quando aquilo me acertou com um soco.... ou um cravar de garras? Enfim, quando aquilo me acertou no estômago... não sei bem....

Afinal de contas, eu aos poucos perdia minha consciência novamente.


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Notas finais do capítulo

E ai, o que acharam? Bom retorno? Temos ai um antagonista em potencial?
Comentem suas impressões =]

Arrivederci!



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