Sempiternum — A Maiêutica das Estrelas escrita por Cervello


Capítulo 3
Vertigem II


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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I

Então, estávamos no refeitório. Luana tem uma sorte maldita! Você deve ter imaginado o quanto ela conseguiu fisgar minha curiosidade com apenas uma cartada. Não só isso, mas não havia sinal dos inspetores. A garota, parecendo ler meus pensamentos, disse:

— Os inspetores a essa hora preferem ficar lá fora. Pelo clima, coisa e tal, fora que é menos melancólico que aqui dentro.

— E como você sabe disso?

— Você descobriu pra gente.

— Pra... gente?

— Sim. Ah, é. Pra mim e pro Jeong.

É verdade. O Jeong de alguma forma está envolvido nisso. Se ela não exprimir nada, vou pressioná-lo ao máximo para obter alguma informação.

Eu pensei em realmente fazê-lo, caro amigo, sem ter conhecimento de que minhas intenções seriam posteriormente frustradas. Mas lá estava eu, desconfortável, em uma das largas e vastas mesas do refeitório, com Luana ao meu lado, e a agenda de couro remendada sobre a mesa.

Ao vê-la tentando abrir a agenda, detenho-a, puxando o objeto para mais perto de mim. Ora, não deixaria uma estranha como ela tocar em objeto tão valioso.

— Então, vá em frente. Abra numa folha em branco.

Assim o fiz. As suas instruções eram as seguintes:

— Imagine como um atestado médico deve parecer. Todos os detalhes que você acredita que são relevantes. O motivo está em seu encargo... Pode ser, sei lá, essa tontura que você mencionou. Boa desculpa, aliás.

Foi uma desculpa, mas agora eu realmente estou ficando estonteado.

— E no que isso vai ajudar?

— Bem, a ideia dessa agenda é que ela seja uma entidade com um contato telepático entre vocês. Ah, não me olhe assim. O que mais explica o lobo ter aparecido em sua agenda?

— Aposto que foi Jeong quem desenhou. Ele te falou do lobo, não é?

Ela suspirou, impaciente.

— Sim, sim, que seja, ele me falou do lobo. Era pra você coordenar quais pensamentos devem e não devem estar na agenda, mas, aparentemente, você perdeu o controle sobre isso. Então, seus pensamentos mais frequentes ou intensos vão aparecer em alguma das folhas. O lobo te intrigou, não foi? O desenho surgiu só por isso.

O que mais eu poderia fazer, ainda que envolto em ceticismo? Cerrei os olhos e imaginei. Pensei na maneira como as palavras estariam dispostas, na assinatura do suposto médico, nos dados que estariam contidos... segundo Luana, um pensamento banal poderia ser suficiente. A agenda cuidaria do resto.

Em verdade, o fato dela ser inteligente e possuir propriedades telepáticas explicaria muita coisa, mas uma explicação fantasiosa como essa não me fisgou de pronto. E nada mais me fisgou, principalmente quando nada apareceu nas páginas da agenda.

Nos alarmamos quando vimos passar pelas amplas portas do refeitório uma silhueta que trajava um manto branco com listras pretas no abdômen, além de um broche mais expressivo em dourado. O uniforme dos inspetores. Não tardou que ele nos visse, ali, sozinhos no refeitório vazio, e veio em nossa direção, com um olhar quase predatório.

Vince — ela me agarrou firmemente pelo manto na parte do ombro — é agora ou nunca. Se concentre. Não deixe mais nada interferir nisso.

— C...certo — e, por alguma razão, eu investi naquela loucura. Fechei os olhos novamente, e visualizei tudo, inclusive a visita médica. O médico, que era quase um manequim de loja, carimbava um documento e assinava por cima de um papel carbono. Entregou-me, sorrindo, e com ele em mãos, eu pude ver tudo: meu nome, número de identificação, diagnóstico, assinatura, tudo... Paralelamente a isso, ouvi um som de uma folha se rasgando, e acordei do meu transe.

O inspetor, um homem alto de olhos grandes e face rígida, estava logo ao nosso lado.

Luana estendia um papel idêntico ao que eu havia imaginado no sonho. Inclusive, era difícil crer que aquilo havia partido de minha agenda, visto o tamanho da folha, mas lá estava, e os olhos não mentem, como bem sabe.

Desconfiado, o inspetor, cujo crachá (localizado ao lado do broche) revelava o nome Alexandre, pegou o papel. Depois de lê-lo, ou melhor, passar os olhos sobre, disse:

— Ahn... Ele não pode ficar aqui na escola, Luana, você sabe. Se ele está doente, deve ficar em repouso em seus aposentos fora da escola. E você deve voltar para a sala.

— Eu estou encarregada de levá-lo a sua casa, na verdade, Alex. Está tudo ai no documento.

Ao ouvir isso, encarou-a perplexo, mas ao ler de novo o atestado, confirmou com a cabeça.

— Está bem. Então, se apressem e vão para a sala pegar o material. Não fiquem vadiando por ai.

II

Eu entendo, amigo, são muitas coisas para processar por ora. Mas, não se preocupe, eu senti o mesmo que você está sentindo neste momento. Haverá tempo para absorver tudo. Desde o fato de a minha agenda ser mágica a eu estar saindo da escola pela primeira vez em meses. Em verdade, estava nervosíssimo. O que Luana queria me mostrar? Seria a resposta para tudo aquilo? Aquela dor de cabeça por fim iria passar, e eu seria presenteado com um banho de compreensão? Bem, apenas se atente ao que será dito aqui.

Passando pela secretaria, cuja funcionária liberou a nossa saída ao se deparar com o atestado, chegamos ao vasto portão, que permitia ver um outro universo que me era alienígena. Uma rua vazia, sem movimento, mas que continha todo o mundo que eu não conhecia. Fiquei paralisado diante da visão, até que o olhar da garota pediu que eu me apressasse, e sentindo como que as pernas e os braços fossem estacas de gelo, prossegui. O clima estava frio, seco, e eu também estava.

Luana tirou de um dos seus bolsos uma chave, indo em direção a um objeto estacionado próximo ao portão, que eu demorei a associar: uma bicicleta.

— Monta aí — convidou, montando logo em seguida.

Eu apenas olhei, torpe.

— É rosa. E lilás.

— Sim, e tem espaço pra mais um. Sobe!

Assim o fiz, meio desajeitadamente, naquele espaço entre o guidão e o assento. Estava muito próximo dela, e seu perfume era entorpecente. Na verdade, acho que nunca estive tão próximo a uma garota, e esse pensamento me atormentou a viagem inteira.

Inclusive, o vento quase rasgava meu rosto; ao menos era essa a sensação! Sentia-me numa espécie de filme, sem compreender muito bem tantas coisas novas ao meu redor. Ao passo que sentia uma espécie de ânsia graças à exposição, uma satisfação crescia dentro de mim, em outra instância.

Em suma, era libertador estar ali. Mas igualmente assombroso.

Passamos pela cidade, que estava particularmente parada, e vimos pouquíssimas pessoas.

— Antes de chegarmos a sala — ela disse, alto, e suas palavras se perdiam com o vento — passei na frente da sala do Jeong. Fiz um sinal avisando que estaríamos aqui.

Mas sequer pensei em meu colega de quarto. Eu só pensava naquilo que estava em minha frente: estávamos nos distanciando da parte mais urbanizada, e chegando numa espécie de viaduto isolado. E foi justamente ali que estacionamos.

— Um... viaduto? — balbuciei.

— Agora... Olha, eu sinto muito, mas eu vou pedir para que fique próximo a parede.

Sei que as coisas estão cada vez mais estranhas, mas àquela altura do campeonato, eu não mais a questionava. Fiz o que me foi pedido. Fiquei de frente para ela, de costas para uma pichação que dizia resistire! em letras garrafais e coloridas.

Ela sorriu para mim. Um sorriso estranho.

O cubículo, pensei. Ela está entrando de novo.

— Vince... — ela se afastou de mim, e conforme o fazia, sua voz ficava cada vez mais branda, quase que complacente — já chegamos até aqui. A última etapa vai ser um pouco... dolorosa. Como eu disse, você vai ter que se lembrar por mal.

Engoli seco. Aquilo não podia estar acontecendo. Luana se abaixava, em direção a uma espécie de bastão. O que fazia ali um bastão, afinal?

— Você precisa passar pelo portal.

— Ah, para com isso, isso tá indo...

— Longe demais? Você acha que isso tá indo longe demais? Então creio que entrará em colapso quando ver o que tem por trás dele. Enfim, como eu ia dizendo... nem todo mundo consegue passar por ele estando consciente. Você conseguiria, mas tenho medo do que poderia acontecer com você, agora que você está... nesse estado...

Nesse momento, meu amigo, eu fiquei realmente nervoso. Nervoso por estar ansioso e também por estar, me perdoe, extremamente puto com que estava acontecendo. Já tínhamos chegado longe demais, de fato. E eu já quase sabia o que ela estava prestes a fazer.

— Nesse estado? O que você quer dizer com isso, afinal? Me explica alguma coisa de forma decente, porra!

O grito a atingiu quase como uma agulhada. Ela estendeu o bastão em minha direção, e se preparou para rebater a bola. Minha cabeça.


— Por favor... Luana... me deixe voltar — por que fugir, meu amigo? Fugir e ir para onde? Eu não fazia ideia de como andar naquela cidade, pela qual eu nunca tinha andado! — Vamos voltar... E esquecer tudo isso...

As lágrimas começaram a rolar pelo meu rosto, e apesar do esforço da garota de querer permanecer firme, eu vi, em seus olhos cinzas, alguma fragilidade em ver a minha situação.

— Sinto muito, Vince. Mas agora, você precisa ir até o fim.

“E antes que eu me esqueça: moedas de chocolate não compram...”

E antes de completar a frase, eu recebi o golpe de bastão em cheio em minha cabeça, e depois, meu amigo, só existia o negro profundo de minhas pálpebras.


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Notas finais do capítulo

Agora sim. Sensação de dever cumprido sentida com sucesso. Em verdade, os últimos dois capítulos eram para ser apenas um. Pelo tamanho, e pela coesão narrativa, achei melhor fragmentá-los.

Agora, em relação a trama...

Estão confusos? Eu realmente espero que estejam (mas no bom sentido, claro)
Mas podem ficar tranquilos em relação ao suspense. No próximo capítulo (Dejavù) as coisas começaram a acontecer de fato. Então, aguardem pelo melhor.

Arrivederci!



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