maior que todos os términos escrita por Caelum


Capítulo 1
Capítulo Único.


Notas iniciais do capítulo

Só mais um dos meus famigerados estudos de personagem. Bastante emoções, fiquem alertados. É mais reflexão, gente, preparem-se para uma feels trip intensa.
Reparem que cada parte começa com uma pergunta e nem foi intencional.



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Hikari sabia que começos doem. 

Não é à toa que lhe custou nascer e foi ainda mais cansativo o esforço que fez para permanecer com os olhos abertos desde então: começos doem porque são pontapés para um meio e um final e qualquer chute que se preze machuca. Hikari nunca soube direito como chutar uma bola e muito menos como machucar. Quem chutava bolas em casa era o irmão. E só ele. Ela sempre foi a que via coisas onde não tinha nada. 

O imperceptível era coisa dela. Apitos e flores também, mas eles ficavam em segundo plano quando os olhos captavam alguma forma dissolvida na paisagem. Na época, ela não entendia de dígitos, luta e luz. De dor, sabia. Pouquinho. O tipo de sofrer que as crianças beijam sem querer quando beijam os rostos dos pais. 

—Hikari, vá comer sua janta. Está esfriando. Não tem nada aí, meu amor. — O aviso da mãe, ela foi perceber anos depois, era um misto de preocupação e carinho. Quando pequena, passava muito tempo distraindo-se olhando pela janela a cidade. Só lá que os bichos apareciam.

A visão dela estremeceu.

A imagem na televisão, também.

—Querida, deixe a menina ter amigos imaginários! É normal nessa idade, faz mal nenhum, não! — Intervinha o pai, levíssimo, com uma ou duas latas de cerveja sobre a mesa e o jornal na mão. 

—Estou preocupada dela estar ficando febril de novo... 

Era mais ou menos nessa hora que Taichi alçava os olhos e os arregalava, lá nos alto dos seus sete anos e no alto do sofá gasto com marcas de tênis. Febre, doença, resfriado, tosse —todos dela. 

"Estou bem," era só pra ele. Dois sopros curtos no apito que ela usava de voz. Taichi suspirava de alívio, mas desconfiava. "Não se preocupe", um sopro longo e dois curtos. Não tinha código para socorro entre eles. Ainda.

O começo, naturalmente, foi um ovo.  

Naquela noite, as engrenagens começaram a se mover e as formas que via no horizonte também. Antes, estáticas e insólitas, não interagiam com nada. Pareciam sobreposições confusas de camadas distintas de existir. Mas o ovo que ela e o irmão chocaram existia que nem eles. Talvez para eles, se ela se permitisse o egoísmo. 

Sabia falar. Tinha pele. Nome. Respiração. Propósito, que nem ela, tinha e não sabia; não sabia sequer como viera, mas, independentemente disso, soube voltar.

—Onii-chan — Hikari sussurrou — Eu acho que um dia vamos ver o Koromon de novo.

Taichi não respondeu. A memória do encontro desaguava.

(...)

Mas e ela? Veria o irmão outra vez?

Hikari lembra-se nitidamente, até hoje, da volta para casa na tarde de primeiro de agosto de 1999. Estivera doente demais para acampar. Saudável demais para a morte. Ficou de repouso, em casa, e recebeu Taichi quando ele todo mudo e pesado entrou pela porta da frente com Koromon nos braços. O cabelo estava mais emaranhado, a pele riscada e áspera; o sorriso, futuro.

Foi a primeira coisa que viu. Entre uma tosse e outra, ele parecia mais velho, nem que por alguns poucos meses. Ela sabia, tinha que saber. Aos oito anos, Taichi era o que ela mais conhecia.

E começou a desconhecer naquele dia mesmo.

Foi um processo um tanto sofrido o de crescer para além do sobrenome Yagami.  Notou naquele momento que ele fazia parte de algo importante, longe de suas tosses e testa quente. Não sabia se teria espaço para que ela o acompanhasse — talvez fosse melhor não ter.

A sensação da mão de Taichi fortemente atada à dela não a deixava em paz; não deixava porque ela não podia mais segurar nada. Tudo escapara. A criatura verde. O tempo arranhado, com interferência. O buraco no céu. O buraco no céu que em um segundo estava sozinho e, no outro, estava com o irmão dela. 

Sentou-se no chão da sala. Miko, a gatinha, tinha bagunçado a mesa. Pensou estar ouvindo um barulho fino, tímido, mas a febre a fez se empoçar no chão. Queria que chovesse e Taichi caísse do céu.

Demorou cinco horas. 

Nessas cinco horas, Hikari chorou só trinta minutos.

Quando ela o escutou na cozinha abraçando a mãe deles aos prantos e foi andando com a respiração presa, ela sabia que, para ele, tinha sido bem mais. Parecia estar noutros tons que nada tinham a ver com agosto. Um pouco mais envelhecido. E com Koromon de novo!

Hikari queria sentir o que era aquilo. Não gostava de querer coisas; batia-lhe uma culpa que só iria saber enfrentar anos depois. Que nem Koromon era para Taichi, a garota queria alguém e gostava de pensar que em algum lugar alguém também a queria. 

"Desculpe por ter ido embora", tinha código de apito para isso? Não tinha. Não criaram. Nem sequer mencionaram o incidente da primeira vez que Taichi voltou à Terra, nunca.

E ele não parava quieto!, Hikari observava com espanto. Foram dias em que ele estava distante e pela primeira vez se preocupando muito com algo diferente. Algo que não era ela. (No final, era. O coração de Hikari pesava com isso. Cuidar dela dava trabalho demais, demais...

Wizardmon que o diga.) 

(...)

—Você acha que vai começar tudo de novo?

Os olhos de Takeru eram muito azuis.

Ele foi o primeiro. O primeiro que ela havia conhecido com olhos da cor do céu e o primeiro amigo que fizera. O primeiro que deu a mão sem ter a certeza se que o mundo poderia separá-los ou não. Crescer também significou enxergá-lo muitas e muitas vezes; sorrindo, chorando, paralisado, com medo, pequeno e grande, amando e desamando. As pessoas amadas mudavam. Ela permanecia.

—Não. Eles não são como nós e muita coisa mudou nesses três anos — foi a resposta dela. — Não sei por que o Mundo Digital precisa do Daisuke e dos seus vizinhos...

—Miyako e Iori — lembrou-a como que também lembrando a si próprio. — Conheci os dois hoje, no caminho pra escola. Não me passaram tanto a ideia de Escolhidos, mas a gente sempre se surpreende. 

—A gente sempre se surpreende — ela concordou, com um riso fraco. Estava com medo e Takeru sabia disso, porque ele também sabia o que acontecia quando alguma coisa que deveria estar dentro do computador vinha para fora.

—Você sabe que vamos dar um jeito, né? Temos os outros pra ajudar. E também não vai ser a primeira vez que nos colocamos em risco assim. Prometo que os — engasgou — danos dessa vez vão ser menores. 

—Danos...

Ela vira o cemitério que Mimi fez na praia, três anos antes. Ela não tinha conhecido nem metade dos mortos. Takeru, sim. Cada um.

"Você sabia", ele contou na época, "que Gotsumon e Pumpkimon eram meus amigos? Eles não queriam servir ao Vamdemon... Não queriam. Eles... eram bons. E me protegeram."  Hikari não iria se esquecer dos olhos azuis cheios de culpa fitando a areia como se eles de fato tivessem sido enterrados lá.

Os olhos diziam, "Eu que os coloquei ali."

—Vamos ficar bem— Hikari teve a impressão que Takeru queria fazer algo para confortá-la, mas não sabia o quê. — E eu tô animado para passar tempo com o Patamon de novo... Mesmo que correndo perigo.

Hikari sorriu. Quando se despedira de Tailmon três anos antes, foi com um até logo. O até logo andou lento, parou na esquina, escondeu-se e pulou em cima dela quando menos esperava. Era assim que o Mundo Digital funcionava, afinal das contas.

—É a parte boa, né. Ver os Digimons de novo...

Takeru sorriu torto: —Não acho que somos feitos para ficar sem eles. Nem eles, sem nós.

(...)

Como podia, então, ficar sem Tailmon?

Morrer se faz só uma vez. Mas aquela luta não foi justa e Hikari sentiu várias mortes diferentes quando entendeu que Tailmon não se lembrava mais dela.

Reboot. Reinicialização. 

Fazia tempo que Takeru não chorava assim.

Ir ao Mundo Digital foi uma decisão que se misturou com o medo da velhice. Ali, então, crescer significava ou se encarar no espelho sendo metade por anos a fio ou buscar Tailmon. Desmemoriada e tudo. Hikari decidiu que crescer sem a parceira era regredir. Mundo continuava mundo, Japão continuava Japão, mas ela não podia ser a mesma sozinha. O caos era opaco, secundário. Só importava que que Tailmon era Tailmon —

Não era. Tailmon era Nyaromon.

Hikari não conhecia Nyaromon ainda. É claro que a reconheceu no instante que se deparou com os olhos arregalados e trêmulos. Vermelhos, não azuis. Em branco. O reconhecimento é luxo de quem está por inteiro. Hikari entendeu que deveria preenchê-los, os corações das duas e os olhos vazios, como haviam feito uma vida atrás.

—Meu nome é Hikari. Hikari Yagami. Prazer em conhecê-la...

O apito, como é que ela tinha o apito?! O cheiro de Hikari estava ali. Sem tirar nem por. Um meio perdido no começo.

Nyaromon sorriu quase como se soubesse que ganhara uma nova chance de se apresentar. 

Quem era aquela na frente de Hikari? Ela conhecera a antiga serva de Vamdemon. Luvas, cicatriz. Wizardmon. Chicotes, trabalho e noites de sombras alongadas. 

Digimons não vinham de útero algum; sem barriga e mãe, eram os sons que ouviam de dentro da casca do ovo que lhe contavam do mundo e dessa vez não era um mundo vazio. Nyaromon tinha amigos. No plural. Não era um começo vivido sob o manto translúcido de quem é esquecido mesmo podendo ser visto por qualquer um.

Tailmon teve que esquecer para poder ser lembrada e Hikari queria justiça.

Ela sabia bem o que era atrair treva e névoa tanto quanto Tailmon. E Nyaromon merecia uma vida sem conhecer esse sentimento antes mesmo sequer de conhecer o amor.

—O que é um... parceiro?

—Somos nós.

Hikari gentilmente pegou o apito enrolado nos pelos laranjas-amarelados da parceira e o apertou contra o peito. Idêntico. Sem marca alguma para denunciar os tempos e mundos que esse apito percorrera. Dois sopros curtos ainda significavam "estou bem", mesmo que Taichi não estivesse ali para ouvir.

Soprou uma vez e estremeceu.

"Eu sinto muito," Hikari se pegou pensando enquanto a acariciava, "que você teve que nascer de novo para podermos ter a chance que nunca deveria ter sido tirada de nós em primeiro lugar. Eu sinto muito que você não saiba quem é Wizardmon, nem se lembre do meu rosto e de quem você é. Sinto muito por não conseguir impedir tudo isso. Sinto muito por eu te conhecer e você não me conhecer e tudo estar uma bagunça. Sinto muito por um final desses pra sua vida antiga..."

—Hikari...? Por que você está chorando?

—Não é nada. Estou feliz que pudemos nos conhecer.

"E que ainda não acabou."


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Notas finais do capítulo

REFERÊNCIAS:
primeira parte: filme de digimon adventure que se passa antes da história principal, vocês sabem, em 1996
segunda parte: em Adventure quando é primeiro de agosto, quando o Taichi volta sozinho depois de derrotar o Etemon e também quando ele volta seguindo as tropas do Vamdemon que queriam a oitava criança
terceira parte: logo após o primeiro ep de Adventure 02
quarta parte: Tri


ESPERO QUE TENHAM GOSTADO!



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