Sapatinho de Cristal escrita por Folhas de Outono


Capítulo 3
Capítulo 3




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            O som do piar dos pássaros preenchia a clareira. Desde o dia em que nos mudamos para a Escócia, quando descobri a clareira com seu lago cristalino, não consegui deixar de visita-lo por mais de dois dias seguidos. Tornou-se o meu recanto. Meu refúgio. O lugar onde eu me conectava com a natureza, com a minha música, comigo mesmo. Onde pude extravasar a tristeza de minhas humilhações diárias e do não que recebi da Academia.

            Ainda me lembro daquele dia. Passei horas tocando para acalentar minha tristeza e depois mais algumas horas para extravasar o desespero que me tomou ao analisar minhas perspectivas de futuro. A academia representa a minha oportunidade de ver o mundo, de sair de perto do que sou obrigada a chamar de família. No entanto, eu ainda tinha esperanças de passar na seleção que haveria dali a alguns meses, em alguns anos me tornar membro da orquestra e então sair daqui.

Alice, a recepcionista, acabou por ser a chefe da loja de roupas onde eu trabalhava, a Fary Land. Nome apropriado já que a garota realmente parecia uma fadinha com sua animação infindável. Além disso, descobri tempos depois que ela além de fazer vestidos sob encomenda, também tinha o sonho de fazer a sua marca virar um sucesso e por isso sempre fazia um desfile por ano, sempre badalado. A garota tinha talento e o fato de ser meio materna, apesar de jovem, fez com que nos tornássemos amigas na primeira hora que passei na loja com ela.

Nesses cinco meses, aprendi a amar a cidade. Descobri fotos da minha mãe no quarto em que dormia durante uma das noites em que não preguei os olhos. Meu pai já havia falado dela. Era uma mulher da vida que se apaixonou por um dos homens com quem se deitara e teve uma menina. O rapaz, também apaixonado, assumiu a garota e manteve um caso com a mulher até que a mesma morresse. No caso a filha sou eu, claro.

Durante esse tempo, também consegui estabelecer uma rotina.

Acordava o mais cedo possível, afim de evitar o encontro com qualquer outra pessoa da casa, deixava tudo limpo e a mesa do café da manhã posta. Depois, ia de bicicleta para a loja de Alice, onde arrumava as araras, revisava a agenda e esperava que ela chegasse. Atendíamos até o meio dia, quando a loja fechava. Minha chefe ia para sua aula de piano e o ensaio da orquestra. Eu voltava para casa, aproveitando que nesse momento ela estava vazia, fazia a lista de tarefas designadas a mim que sempre é afixada a porta da geladeira.

Depois, agarrava o livro do momento, minha bicicleta e voltava a Fary Land de onde resgatava o meu violino que escondia no segundo andar, longe dos olhos de qualquer visitante, em especial Lady T. e suas filhas que ás vezes passavam pelo local para me vigiar. Depois, dirigia me infiltrando na floresta até a clareira, o meu paraíso particular.

Agora, no fim da primavera, as flores silvestres locais já haviam se aberto e colorido a margem do rio pintando o cenário de roxo. Li até o início do crepúsculo, parando, como sempre para apreciar a paisagem. Aquele momento era sempre único, hipnotizante.

Apanhei o violino, assim que a névoa começou a cobrir o lago, cobrindo o reflexo do pôr do sol como uma baforada a embaçar um espelho. Permiti que o arco tocasse as cordas e mergulhei na melodia, me perdendo completamente. Era simplesmente delicioso, a melhor sensação que desfrutava todos os dias. Era como sentir a floresta se conectar a mim através dos meus pés encostados na rocha sobre a qual eu me sustentava. Como se tudo parasse para me ouvir.

Pela primeira vez, no entanto, fui interrompida por um guinchado surdo rente a minha orelha, destruindo a harmonia da canção e sendo seguido por um silencio pétreo. Senti-me ficar tensa, ereta.  Olhei ao redor em busca do que me interrompera, achanco próximo a mim, presa ao chão, uma flecha de caça. Som de patas de cavalo a colidir com o solo puderam ser ouvidos pouco depois. Nervosa, tentei procurar de onde vinha. Ou melhor, vinham.

“A julgar pelo ritmo das batidas ao chão, certamente são ao menos três animais”, pensei. Rapidamente, guardei todos os meus pertencer e me pus a pedalar tão rápido quanto minhas pernas aguentavam em direção à loja de Alice.

“O que está acontecendo? ” peguei-me pensando. Seriam pessoas perigosas? Mercenários, talvez? Ou viajantes? Não havia ouvido falar em caçadas pela cidade, portanto duvidava que era esse o caso.

—Ei! Você! Volte aqui! –Ouvi alguém gritar.

Ao olhar para trás vi apenas um jovem rapaz sobre um cavalo marrom. Cabelos negros, boca rosada. Muito bonito, realmente. Não me permiti olhá-lo por mais que alguns poucos segundos e voltei a pedalar.

Dormir aquela noite foi complicado, mas acordar foi um verdadeiro desafio. A manhã se revelou fresca, minhas pernas reclamavam do esforço feito na noite anterior e a angústia de não entender o que havia acontecido naquele dia e principalmente a dúvida se poderia voltar ou não a clareira, era desanimadora.

“Alice conta comigo na loja” mentalizei, tentando convencer a mim mesma de que tinha que levantar.

Os movimentos foram automáticos. Comi um fruto qualquer, coloquei o café, torradas e geleias na mesa, e pedalei. Só me desliguei dos meus pensamentos e de fato acordei para o dia, quando me encontrava na porta da loja com uma Alice espevitada agitando uma de suas mãos na frente de meu rosto enquanto eu encarava as chaves nas minhas mãos sem, de fato, fazer nada.

“Quanto tempo passei aqui? ” Pensei, agitando a cabeça para desanuviar os pensamentos.

—O que foi? -Perguntou ela após arrancar de minhas mãos as chaves e destrancar a loja. –Obviamente estava com a cabeça na lua. Foi a sua madrasta de novo? O que a megera aprontou desta vez?

Depois de nos tornarmos amigas e trabalharmos tanto tempo juntas, acabei contando a Alice minha história de vida. No início ela não acreditou, depois ficou horrorizada com a forma que vivia. Mas fazer o que? Não se escolhe a família que se tem. De qualquer forma, depois disso ficamos ainda mais unidas e ela já sabia simplesmente tudo ao meu respeito, assim como eu sabia tudo sobre ela. Ela havia se tornado minha única amiga, além do velho e simpático senhor que trabalhava de manhã na padaria que eu frequentava.

—Não. – Respondi –Ainda bem que ainda nem a vi hoje. E a minha ausência em casa ou não é notada, o que duvido, ou é bem-vinda. Mas dessa vez não é nada relacionado a minha madrasta.

—Então, o que é? -A curiosidade mal pode ser disfarçada pelo seu tom de voz.

Suspirei.

Esse é um habito que acabei adquirindo desde que me mudei: suspirar.

—Quando estava tocando na clareira ontem à noite, quase tive a minha orelha sendo atravessada por uma flecha. Fiquei apavorada, não entendi bem o que estava acontecendo. Acabei pegando minhas cosas e pedalei o mais rápido que pude com medo de ser seguida por algum mercenário, ladrão ou qualquer coisa assim. Eram pelo menos três homens. – Disse encarando meus pés.

—Não se preocupe, devem ser caçadores. Essa é a melhor época para se caçar veados e cervos. – Disse tranquila. – Para caçar na floresta é preciso de uma autorização da corte, e é difícil conseguir uma. Normalmente só as dão para pessoas confiáveis, e os que acabam cometendo crimes de caça são duramente punidos, jamais tocariam em você. Seria considerado traição a coroa, ou seja, forca.

—Forca? Sério? Em pleno século XXI? Está brincando, não é mesmo? -Descrente, é assim que estava. E acho que deixei transparecer isso em minha fala pois logo vi o resto de minha amiga ficar pesaroso.

—Claro que é sério, não brincaria com isso. Esse é um costume que não foi deixado de lado ainda. Tentaram uma vez, mas logo os estupros, roubos e a caça exacerbada se tornaram um problema insustentável. Então, voltamos a forma antiga.

—Mas a forca não é uma medida exagerada? - Retruco.

—Pode ser, mas é necessária e funciona. Além disso, como disse, crime de caça é traição a coroa. Todo crime desse gênero recebe essa mesma sentença.- Dá de ombros.- Mas vamos mudar de assunto. Tenho muitos vestidos em minha cabeça, só esperando para tomarem forma e saírem desfilando pela cidade! Ainda mais com o anúncio do Rei Henry dessa manhã.

—Que anúncio? -Perguntei.

—Oras, Ella. Você realmente estava distraída essa manhã! Saiu em todos os jornais matinais! –Disse empolgada.

Franzi o cenho, me sentindo realmente perdida. Ela percebeu.

—O Rei anunciou um Baile de máscaras para comemorar o vigésimo aniversário do filho. Irá durar três noites, acredita? Todas as garotas jovens e solteiras foram convidadas, como manda a tradição. Inclusive nós. Você logo deve receber seu convite, eu já estou com o meu. Recebi pouco antes de sair de casa. –Bateu palminhas.

—Porque é a tradição de convidar todas as moças jovens e solteiras?

—Às vezes me esqueço que é nova aqui. – Riu consigo mesma.- Antigamente era no aniversário de vigésimo ano do príncipe que ele escolhia sua noiva. Então, todas as moças virgens eram convidadas. Hoje, ninguém fala, mas todos sabem que é tudo armado. Ele certamente já está noivo de alguém. Afinal de contas, eles preferem não correr o risco de uma plebeia ou uma garota que já tenha se deitado com outro homem acabe se casando com o príncipe. Enfim, na última noite é anunciada a escolhida. De qualquer forma, é sempre emocionante.

—Com certeza. – Disse sem realmente pensar assim.- Os vestidos também devem voar de suas araras.

—Certamente. – Sorri, e posso ver seus olhos brilharem em excitação. –De qualquer forma, é sempre um grande evento por aqui, mesmo sendo tudo já arranjado. Além disso, a orquestra da Academia irá tocar nas duas primeiras noites, como de costume.

Sorrimos uma para a outra e nos pomos a trabalhar.

“Ouvir a orquestra ao vivo por uma noite inteira...” pensei. “Seria um sonho! ”

Tempos depois o sino da loja tilinta ressoando pelo ambiente, anunciando a chegada de um cliente. Alice sai animada para atender o visitante. Bom, ela está sempre animada, na verdade. Mantenho-me quieta, separando as etiquetas dos novos desenhos de Alice para o desfile deste ano.

Logo ela vem em minha direção e me cutuca.

—Sua madrasta está aqui. Me desculpe, mas ela exige ser atendida por você. – As palavras de Alice saem pesarosas e lentas de sua boca.

Bufo. Provavelmente ela queria apenas me atrapalhar. Experimentar vários vestidos para não comprar nenhum e então ir embora. Indignada, ergo-me e me forço a ir até onde Lady T. estava, junto a Anastácia e Drizella. O nariz da mais velha parecia ainda maior e mais pontudo do que me lembrava. Realmente fazia tempo que não a via. Já as gêmeas, estavam ambas de calça social, blusa branca e terninho por cima da mesma cor da calça. Anastácia usava as roupas da cor verde abacate e Drizella, uma versão em laranja abóbora. Quase soltei uma risada ao vê-las, mas me contive.

—Eu serei a sua Fada Madrinha hoje, em que posso ajudar? - Disse a famosa frase da Fary Land. Sim, sempre a dizíamos antes de atender qualquer um. Era como uma marca.

—Bom, viemos escolher os vestidos do baile do Príncipe Eduard, é claro. –Diz Lady T.

—Como?

—É querida, viemos escolher os vestidos do baile do Príncipe Eduard. Três. –Diz Anastácia claramente fazendo pouco de minha pessoa. Apesar disso, não me ofendi e segurei o sorriso, aparentemente simpático, que mantinha no rosto desde que as recebi. –Acho melhor nos atender muito bem, hein.... Talvez eu seja a nova rainha deste lugar.

—Recebemos os convites? -Digo animada, ignorando a inocência de Anastácia ao pronunciar a última frase. –Onde está o meu?

—Você não foi convidada, Ella. –Diz Drizella sorrindo.


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