Filha do Fogo escrita por Marylin C


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Oooooi!

Acho que já disse tudo no disclaimer. Explicação rápida: 'Falalafada', outra one minha, acontece depois dessa história, e 'Ursa Maior, Ursa Menor' acontece em certo ponto nessa história, paralelamente. Quem tiver lido todas vai entender, hehehe.

Espero que gostem!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/734072/chapter/1

As chamas escarlate se alastravam pela floresta, consumindo plantas e verde pela primeira vez naquele mundo recém-criado. As árvores e flores nunca tinham visto um incêndio, o fogo sendo desconhecido para elas até aquele momento. Troncos e raízes ardiam, queimando vagarosa e incessantemente entre o brilho do fogo. Nada além de cinzas restaria daquela parte do ambiente, o elemento destruidor consumindo tudo o que interpelava seu caminho natural.

Mas não é da natureza do fogo apenas queimar e destruir. Assim como mata e sufoca, ele cria. E foi neste primeiro incêndio, na Floresta Primordial, que a criatura abriu os olhos. Do meio do fogo, uma pequena forma começou a se mexer. Encolhida, primeiro ergueu a cabeça e abriu os olhos amarelos como os de um gato, testando o movimento de seu pescoço para um lado e para o outro e curiosamente olhando em volta. Só via o vermelho brilhante do fogo, que estava nela e ao redor dela mas não a queimava. Quis saber onde estava e o que estava acontecendo, e de um susto descobriu seus braços. Olhou a própria pele, escarlate como o ambiente ao seu redor, e estudou aqueles pequenos segmentos no final de seus braços. Mãos, dedos. Feitos para tocar.

Ela estendeu o braço, a mão espalmada enquanto tentava capturar o fogo. Notou um tom de verde vindo de longe e quis encontrá-lo e entendê-lo, dando um impulso para frente e caindo por ainda não saber usar as próprias pernas. Usou as mãos para erguer-se novamente do chão, voltando-se para suas extremidades inferiores e tentando desvendar seu uso. Testou movimentos por tempo imensurável antes de tentar alcançar o verde novamente, dessa vez conseguindo equilibrar-se sobre seus pés recém-descobertos por alguns passos cambaleantes antes de cair novamente. Mas talvez a teimosia já fosse intrínseca de seu ser, pois a criatura ergueu-se mais uma vez, os olhos amarelos fitos em seu objetivo. Respirou fundo e caminhou devagar, passo por passo, os braços institivamente estendidos para ajudar no equilíbrio, até deixar completamente o meio das chamas e ver o verde da Floresta Primordial mexer-se com o vento e ser consumido pelo fogo. Então, sem saber como ou o quê realmente fazia, sorriu.

Voltou as costas para o incêndio de onde tinha saído, olhando fascinada para o mundo em que acabara de ser inserida. Analisou o solo com certa cautela e então recomeçou a caminhar, dessa vez usando os troncos das árvores para apoiar-se. Nem sempre funcionava, já que ainda não havia aprendido a diferenciar um tronco sólido de um leve arbusto, e, por isso, na metade de sua caminhada para lugar qualquer precisou parar para tirar galhos e flores que ficavam presos em seu corpo e cabelo, causando uma dor aguda e certo incômodo. Foi então que sentiu e ouviu o sopro do vento mandar-lhe as primeiras informações cruciais sobre si mesma, calmo e tranquilo como uma brisa refrescante de verão:

— Você é Filha do Fogo. A Entidade das Transformações e dos Portais.

— Por... Tais? — foi a primeira palavra saída de seus lábios, uma indagação confusa de quem pouco sabe do mundo. Entendera e associara a maioria das palavras aos seus significados, porque já vira os objetos a que elas se referiam e era desse jeito que sua mente aparentemente funcionava. Mas portais? O que eram?

O vento então soprou mais forte, fazendo as folhas se soltarem das árvores e partículas de terra voarem para formar imagens. Diante dos olhos dela, frações de terra formaram um lago e folhas formaram seres parecidos com ela. Eles pareciam enxergar algo no lago e então seguiam diretamente para dentro dele, desaparecendo. Logo depois surgiam em uma imagem de floresta, composta por galhos e folhas, parecendo olhar em volta com curiosidade.

— É isso... Que eu devo fazer? — ela perguntou, olhando em volta e ainda estranhando o som das palavras saindo de sua boca. O vento soprou tranquilo em sua face, como se beijasse seus lábios e acariciasse seus cabelos dourados. — Mas como?

Subitamente, o ar voltou a ficar parado. Como se a presença do vento a tivesse deixado sozinha mais uma vez. Ela franziu o cenho, sentando-se com as pernas cruzadas no chão da floresta. Como deveria criar portais se não tinha a menor ideia de como fazer? E o vento aparentemente não ajudaria.

Bom, deveria tentar sozinha então.

Olhou para as próprias mãos, pensando que seria mais fácil tentar fazer o tal portal com elas e não com os pés, que serviam para que ela permanecesse em pé. Respirou fundo e concentrou-se, pondo as mãos em concha com os dedos quase se encostando. Os olhos amarelos fixaram-se no espaço vazio entre suas próprias mãos, e quem visse de fora conseguiria enxergar o brilho do fogo onde ela foi criada dentro de seu olhar. Então um brilho alaranjado surgiu entre suas mãos, se expandindo muito depressa e fazendo-a assustar-se. Saiu da posição, apoiando as mãos na terra e respirando profundamente.

Então sentiu o vento soprar novamente em seu rosto.

— Não achei que conseguiria algo tão depressa. — a voz soou zombeteira e orgulhosa, como uma brisa marítima que vem para refrescar. — Venha. Te ensinarei seu ofício.

Surgiu no ar, feita de folhas e terra, uma mão estendida para ela. A Filha do Fogo sorriu, já confiando no vento, e pôs sua própria mão em contato com a imagem. Não deveria ter sentido nada, mas pôs-se de pé segurando em uma mão que parecia tão real quanto a sua própria, quente e pulsando vida. Muito maior que a dela, era verdade. Mas ainda assim, uma mão.

— O que é você? — indagou, soltando a mão. Esta desfez-se no ar, o ventou soprando ao seu redor e formando um pequeno redemoinho em sua frente.

— Eu sou o Vento. Vamos logo, não há tempo a perder. — e uma corrente de ar frio soprou nas costas dela, direcionando-a pela floresta em uma trilha que só o Vento parecia enxergar. Era aqui que sua vida começava.

***

— Será que deu certo? — a entidade indagou, hesitante. A voz atrás dela riu sarcasticamente, folhas sacudindo-se nas árvores durante o processo.

— Só saberás se testar. — Vento sussurrou no ouvido dela, ferino como o sopro de início de um tornado, fazendo-a dar de ombros e assentir. Ela se dirigiu à árvore que tinha acabado de modificar, um espaço aberto no tronco indicar o local onde a mágica da Filha do Fogo atuara. Ela pôs um pé descalço para dentro do vão, e arregalou os olhos ao sentir não o tronco da árvore, mas uma sensação de pisar em falso e a de que seu pé queimava.

— Isso deveria...? — mas não conseguiu completar a frase, desequilibrando-se e caindo como que absorvida pelo portal que criara.

Ela sentiu-se cair na escuridão completa, a sensação insuportável de ter o corpo queimado não a deixando. Gemeu, tentando em vão encontrar algo em que segurar-se ou ao menos ficar em uma posição que a livrasse da dor. Sentiu então uma mão tocar-lhe o ombro, e subitamente a dor tornou-se branda como cócegas. Mas o gemido que ela ouviu denunciou que a queima não se extinguira, apenas mudara de foco.

— Vento? — indagou, recebendo um ‘sim’ estrangulado como resposta. — O que está acontecendo? Por que estamos caindo? E... Essa dor?

— S-seu portal deu errado. E-e-é por isso.

A entidade parou de falar, tocando a mão em seu ombro com preocupação. Sentiu a risada do Vento, com uma nota de dor, como a ventania que indica o início de uma tempestade.

— És jovem. N-não suportaria a dor da v-viagem e viraria cinzas quando e-esta acabasse. — falou ele, em tom de explicação.

— Obrigada. — ela disse, apertando a mão que segurava. E os dois permaneceram em silêncio pelo que pareceu uma pequena eternidade, Vento vez ou outra estremecendo ou soltando um gemido abafado, como se tentasse poupá-la não apenas da dor, mas da enlouquecedora sensação de culpa ao ouvir os gritos torturados de alguém por quem tinha afeto.

Em certo momento, a escuridão começou a desvanecer-se até dar lugar a uma claridade maior que a que a entidade jovem já vira, similar mas diferente ao fogo. Estava deitada sobre o que parecia ser pedra batida, e sentou-se para olhar em volta. Ao seu lado, um homem de cabelos cinzas e emblemáticos olhos  cor de tempestade sentava-se, abotoando uma peça de tecido que ela desconhecia e já registrando o ambiente o seu redor. Ao encontrá-la com o olhar, sorriu.

— Vento? — ela indagou, ao sentir o sopro familiar de quando a entidade antes invisível sorria. O homem assentiu, levantando-se e estendendo uma mão para ela. Ele detinha um aspecto jovem, com poucas rugas em seu rosto parcialmente coberto por uma barba grisalha em diversos pontos, e o sorriso era tão desconcertante quanto bonito. Ela aceitou a ajuda, erguendo-se e então notando-se também vestida com um tecido desconhecido. A pele de sua mão, o que significava também todo o seu corpo, não era mais rubra, mas de um tom quase avermelhado de negro.

— Isto que vestes é chamado de vestido e o pano em sua cabeça é um hijab. — Vento explicou, tirando do que pareceu ser lugar nenhum um objeto de armação preta e colocando-o sobre seus olhos. — Isto é um par de óculos. — disse e em seguida deu de ombros — Eu nunca consegui deixar esta forma totalmente sem falhas, então, para possuir minha visão ilimitada de sempre, detenho esse objeto.

— Por que não tens um corpo visível no outro mundo?

— Honestamente? — ele sorriu de lado — É muito chato. Quando dominares completamente seus poderes, entenderá o que digo. Agora — ele olhou em volta — precisamos voltar para o lugar de onde viemos e acessar os danos de seu fracasso inicial.

— Onde estamos?

Vento aproximou-se de uma espécie de máquina e manipulou um pouco a saída dela para conseguir um amontoado de papéis com imagens em preto e branco e escritos em uma linguagem desconhecida pela entidade mais jovem. Ele leu brevemente o papel, enrubescendo subitamente antes de virar-se para ela novamente:

— Isto se chama jornal. Ele conta acontecimentos importantes do dia a dia desse mundo. Segundo ele, estamos no Mundo de Lá, no ano de 2017, na cidade de... — ele hesitou, então abrindo um sorriso involuntário ao pronunciar as próximas palavras — Argel, na Argélia.

— Isso é bom?

— Talvez seja problemático. É mais difícil detectar sinais de magia neste mundo, especialmente com os avanços tecnológicos deste século. Teria sido mais oportuno aparecermos em algum período anterior a certo personagem histórico deste mundo que agora não me recordo o nome, a magia era muito mais evidente naquela época. Mas... — ele deu de ombro, o sorriso involuntário de empolgação ainda brincando em seus lábios — Neste ano temos uma vantagem.

— Qual é?

— A mulher da minha vida aqui reside.

A entidade jovem arregalou os olhos, curiosa.

— Como a conheceu?

— Antes de tu nasceres, Filha do Fogo, a magia contida nos portais vivia indomável. Ela seguia os rastros negros da tristeza, transformada em uma tinta negra que direcionava os portais. Era comum, em minhas andanças pelo nosso mundo, acabar caindo em um portal por acidente. E bom, foi em um destes acidentes que a conheci.

— Qual o nome dela?

Vento riu um riso largo e agradável como uma brisa de verão.

— Você faz perguntas demais, criança. Vamos logo. — e virou=se para andar pela rua de pedras, a Filha do Fogo em seu encalço olhando curiosa para tudo e absorvendo nomes e imagens que surgiam em sua mente para esclarecer cada objeto daquele mundo recém-descoberto. Aquilo estava ficando extremamente divertido.

***

A jovem mulher de cabelos cobertos por um haik, assim como a metade inferior de seu rosto, tinha um regador amarelo em mãos e afastava folhas e caules para dar água às coloridas plantas da floricultura que lhe pertencia, cantarolando alegremente. Apoiou o regador no banco ao lado para ajeitar os óculos de armação redonda e ergueu o olhar para a rua, notando a figura muito alta que andava na calçada próxima à sua loja. Seu rosto bronzeado marcado por sardas iluminou-se com a alegria que perpassou seu olhar castanho, e ela largou as luvas verdes sobre o regador para correr até o homem e jogar-se em seus braços:

— Bast! — riu enquanto ele a girava em um abraço apertado, rindo com ela. Ele a pôs no chão, acariciando sua bochecha com um polegar enquanto dizia em um sussurro equiparado à brisa que agita as folhas das árvores em flor:

— Eu prometi que iria voltar, não foi, Katarin?

Ela acariciou-lhe a barba, seu sorriso feliz coberto pelo pano rendado que era tradição naquele lugar, antes de puxá-lo para dentro da floricultura. A entidade jovem seguiu-os, interessada, enquanto Katarin conduzia Vento por uma escada que levaria ao primeiro andar do estabelecimento. Ela abriu uma porta de madeira e sem cerimônias puxou o pano que cobria sua cabeça, revelando curtos cabelos ruivos. Depois guiou as mãos do homem até a parte do haik que cobria sua boca e nariz, fazendo-o vagarosamente remover a peça para então sorrir antes de pôs-se na ponta dos pés e puxá-lo para um beijo. Ele riu, correspondendo, antes de ouvir um pigarreio atrás de si.

— Sinto muito pela explícita demonstração de afeto... Táne. — o mais alto virou-se para a moça negra, sorrindo ao vê-la erguer uma sobrancelha.

— Táne e... Bast?

— Ora, você precisa de um nome para poder andar por este mundo. Assim como eu. — ele piscou, passando um braço pelos ombros da moça mais baixa — Meu nome neste mundo é Sebastian, mas minha bela Katarin resolveu me chamar de Bast. Aliás, esta é Táne, a nova entidade do meu mundo. — apresentou com gesto, fazendo Katarin assentir com um sorriso. — Criança, esta é Katarin. A dona do meu coração.

A ruiva enrubesceu, sorrindo mais.

— É um prazer conhecê-la, Táne.

— Como e por que ela sabe do nosso mundo, Vento? — Táne indagou, ao que Vento deu de ombros.

— Ela é a dona do meu coração. Não possuo segredos com ela. — a entidade mais jovem reprimiu um revirar de olhos, fazendo o mais velho rir levemente. — Mas bom, vamos ao que interessa. — ele voltou-se para a pequena moça ruiva — Minha bela, preciso que nos ajude a retornar ao nosso mundo.

— Você ainda vai voltar para mim, não vai? — ela perguntou, a tristeza cruzando seu olhar castanho esverdeado como uma sombra. Sebastian hesitou, olhando de esguelha para a Filha do Fogo antes de suspirar.

— Prometo que sim. Mas primeiro preciso tornar Táne a mestra em sua própria mágica, para que eu possa voltar sem problemas.

— Qual sua mágica, Táne? — Katarin indagou, curiosa.

— Portais entre mundos. — a mulher negra respondeu, antes de voltar-se para Vento — Como eu estou falando e entendendo o idioma dela?

— Você é uma entidade de portais. Foi feita para entender todos os idiomas presentes no universo. — ele respondeu simplesmente — Katarin, onde está seu computador?

— Na mesa. — a moça respondeu, fechando a porta de seu apartamento. Sebastian encontrou o objeto que queria, abrindo o notebook e esperando a dona voltar para ligá-lo. Táne aproximou-se do homem, apoiando-se na cadeira que ele ocupara. — Do que precisa, Bast?

— Encontrar uma perturbação na mágica deste mundo. Uma notícia sobre desaparecimentos misteriosos, encontros estranhos ou algo desse tipo. — ele esclareceu, observando-a digitar rapidamente no cursor de pesquisa do computador.

— Aqui. — Katarin mostrou-lhe uma página em francês. — Nômades da região de Tamanrasset sumindo misteriosamente depois de ter visto uma árvore em chamas, mas que não queimava.

— Tamanrasset é muito longe? — Vento perguntou, a testa franzida em confusão. A florista riu, assentindo e alcançando as chaves de seu carro antes de levantar-se.

***

— Por favor, lembre-me de nunca mais subir em uma máquina mortífera dessas. — Táne pediu quando os dois desceram do carro, pálida e tremendo. Sebastian sorriu de lado para ela, como aquela brisa quente que parece zombar ao soprar e manter o calor ao invés de refrescar. Katarin riu, descendo do carro de rodas enormes junto com os dois.

— Fizemos esse percurso tão rápido quanto eu consegui. Não foi minha culpa. — ela deu de ombros, reparando que não havia ninguém naquele espaço desértico em que se encontravam e então tirando o haik branco que usava.

— Usar isso o tempo todo me parece aborrecedor. — Sebastian comentou, ao que a moça ruiva deu de ombros. Táne já estava examinando a água do lago à sua frente, sem prestar atenção na conversa.

— É bastante quente às vezes, mas é regra da sociedade daqui. Posso não seguir o islã, mas usar isso me garante um pouco de paz.

— Poderíamos ir para outro lugar... Quando eu retornar. — ele sugeriu — Não é em todo esse mundo que usam o haik, certo?

— Você vai voltar mesmo? — ela indagou, aproximando-se dele. — Tem certeza?

— Meu mundo já não precisa mais de mim. — ele olhou para a entidade mais jovem, que ainda parecia pálida com a viagem de carro. — E descobri dentro de mim anseios que meu mundo não conseguiria suprir. — voltou a encarar a pequena moça ruiva, rindo sugestivo. Ela corou, sorrindo também, e assentiu.

— Muito bem. Vou te esperar.

Sebastian então a puxou para um abraço, beijando-a na testa. Detestava ter que deixá-la novamente. Afastou-se levemente para olhá-la nos olhos e beijar-lhe os lábios, em um beijo tão triste quanto esperançoso. Ele sentiu uma solitária lágrima escorrer pelo próprio rosto durante o beijo, e afastou-se para enxugá-la com o polegar. Então Katarin voltou a sorrir, se afastando totalmente e empurrando-o levemente na direção de Táne.

— Consegue ver o portal? — Vento indagou, a voz ainda embargada, apontando para um reflexo na água do lago. A entidade mais jovem assentiu.

— Parece estar normal para mim. O que tem de errado?

— Vamos descobrir quando entrarmos. Venha. — e, sem dizer mais nada e nem olhar para trás, o homem adentrou o lago e caiu no portal, com a Filha do Fogo logo atrás. A dor que sentia em seu peito, por abandonar a dona de seu coração novamente, foi pouca comparada à que sentiu naquela viagem. Vento segurou o ombro de Táne como da última vez, tomando a dor dela para si com um gemido estrangulado. Parecia que infinitas pequenas adagas furavam sua pele, que se dissolvia com a sensação de ter seu corpo queimado. A entidade mais jovem agradeceu-o silenciosamente, segurando sua outra mão e relembrando tudo o que vira naquela viagem. Estava distraída, e só percebeu que o portal acabara quando o cheiro pútrido de sangue e carne em decomposição atingiu suas narinas.

— O que- — ela começou a falar, arregalando os olhos e se interrompendo com o choque. Estava sozinha em uma clareira da floresta onde nascera do fogo, mas... Ao seu redor, corpos morenos e desfigurados de seres humanos jaziam caídos na grama. Homens, mulheres, crianças... — Vento! Vento! Cadê você?! O que aconteceu?! — gritou, lágrimas já escorrendo de seus olhos amarelos — F-fui eu quem fez isso?

— Sim, foi você. — ela ouviu o sussurro do Vento, preocupado e agitado como os ventos de uma tempestade de verão — Esses são os danos do seu primeiro portal.

— C-como eu conserto isso? — quando não obteve resposta, gritou enquanto corria para por uma criança, uma pequena menina, no colo — ME RESPONDE! COMO EU CONSERTO ISSO?

— Eu estou pensando, criança. Acalme-se. — foi a resposta irritada da entidade mais velha. — Podemos...

Mas Táne já não o ouvia. Ela respirara fundo, fechando os olhos e concentrando-se no corpo da menina. Acessou o dano que sua mágica tinha feito nela e projetou a própria mente, como Vento tinha lhe ensinado. Subitamente, uma lembrança voltou a ela.

— Vento! — ela abriu os olhos, buscando em vão a figura alta a que quase se acostumara. — A tinta negra que controlava os portais... Onde está? Como encontrá-la?

— Ela está dentro de você. É o seu sangue. — a voz do Vento respondeu-lhe, em um sussurro muito preocupado como o silêncio que se consegue ao estar no olho de um tornado. — Tome cuidado.

Táne assentiu, olhando em volta para encontrar algo que pudesse usar. Achou uma faca no cinto de um homem que tinha uma perna faltando e cujo rosto de contorcera em uma eterna expressão de agonia, e voltou-se para o próprio braço. Tremeu levemente antes de passar a lâmina sobre seu antebraço, gemendo de dor enquanto via sangue, seu próprio sangue, escorrer em um filete. Tinha o punho cerrado, e voltou a se colocar perto da garotinha.

— O-o que faço agora, Vento? — ao invés de ouvir uma resposta, ela sentiu a mão invisível pressionar levemente seu ferimento e então desenhar um padrão que ela desconhecia em seu próprio rosto. Ele usava seu sangue como tinta, a tinta negra da tristeza.

— Tente agora. É a tinta que a permite controlar seus poderes, inclusive os portais. — Vento disse, depois de alguns segundos desenhando com sangue em toda a extensão de seu rosto, pescoço e braços. — Concentre-se.

E a Filha do Fogo respirou fundo, voltando a fechar os olhos e concentrar-se em como ajudar a garotinha. Ignorou a mão invisível que voltava a pressionar seu ferimento, agora para estancar-lhe o sangue, e então ouviu o pio de um pássaro. Sorriu, abrindo os olhos amarelos que brilhavam com determinação.

Passou a mão sobre o braço desfigurado da menina, acessando os ferimentos e pensando em asas. Depois tocou-lhe os pés, construindo a imagem de garras de pássaro. Só então, quando a menininha abriu os olhos sem entender, mais viva do que nunca, foi que Táne entendeu em completude o significado das primeiras palavras que o Vento lhe dissera. Sorriu e então deixou a pequena aos cuidados da entidade mais velha para correr até o próximo corpo, transfigurando e transformando para curar.

“Você é Filha do Fogo. A Entidade das Transformações e dos Portais.”


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

E é isso. Espero que tenham gostado! Qualquer dúvida, inquietação ou crítica (construtiva sempre, tá amiguinhos?), só comentar que eu respondo ♥

Beeeijos!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Filha do Fogo" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.