Time Web escrita por Mabée


Capítulo 6
Capítulo 6 - Culpa


Notas iniciais do capítulo

Perdoem-me os erros, minhas mãos tremiam ao escrever.



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O garoto acordou com o celular tocando ao seu lado. O tom alto acabou por despertá-lo em um susto tão grande que quase perdeu o equilíbrio e caiu de onde se pendurava. Assim que Peter olhou para os dois lados, lembrou-se de onde estava e respirou fundo, ajeitando as pernas por mais conforto. A brisa fria matinal nova iorquina colidia contra suas bochechas quentes e seus olhos ainda estavam inchados pelo cansaço de ter permanecido a noite inteira acordado. Resmungou por ter perdido os únicos vinte minutos de descanso que teve e pegou o celular, vendo quem discava por seu número.

Tio Ben.

Peter apertou o botão de recusar novamente, como fizera nas milhares outras vezes anteriores, colocando o celular no bolso desta vez. Esticando os braços para espreguiçar-se, o garoto passou a ficar de pé e colocou apenas a máscara de seu uniforme para não ser visto como a identidade principal. Olhou para baixo, vendo as ruas já movimentadas tão cedo, sabendo que a grande Nova York nunca adormecia, ainda mais no Queens.

O moreno saltou do letreiro do grande edifício e disparou uma teia até o próximo, e seguiu na movimentação. Ele costumava gostar de lugares altos e vazios para poder ficar só e pensar nas noites mais difíceis. No dia em que descobriu que conseguia escalar paredes, ousou escalar a grande sede do Clarim Diário, e acabou se aconchegando no grande letreiro, demarcando o local como seu território de pensamentos, e tornou um hábito. Mas essa fora a primeira vez em que ele passou a noite inteira fora, e sabia que seus tios deveriam estar loucos de desespero atrás dele, que não mandou um único recado sobre sua estadia.

Inclusive, não se deu o trabalho de voltar para casa. Pousou em um beco vazio e retirou sua máscara, colocando na mochila que já estava em suas costas, junto com o restante de seu uniforme e disparadores de teia. Caçando algumas moedas nos bolsos, parou em uma pequena cafeteria e pegou o produto mais forte para sobreviver às aulas do dia, e então, seguiu o caminho até a escola a pé, por preguiça de pegar o metrô e para ter mais tempo para pensar.

Ele já não estava com tanta raiva, talvez fosse o sono dominando seu sistema por completo, mas Peter sentia-se mais calmo. Ainda triste, pois não estava de acordo com as palavras que saíram pela boca de seu tio e o torturaram a noite toda. Ele não tinha ideia do porquê de seus pais terem o deixado tão cedo, sumindo sem qualquer explicação concreta e o deixando na base de teorias que jamais seriam provadas. Crescer sabendo que os dois que ele amava talvez não o amassem tanto era uma dor profunda da qual ele tinha de conviver todos os dias.

E então, seu tio, uma das pessoas que ele mais confiava no mundo todo, trouxe o assunto e ainda fez questão de colocar uma comparação envolvida. Peter não soube lidar, e até pode ter exagerado um tanto, mas ele estava doído, machucado. Seu peito pesado e a cabeça em bagunça. Não fez patrulha, sequer, apenas pegou o uniforme para não ser um garoto aleatório se equilibrando em teias pela cidade.

Chegando aos portões da escola, ignorou todos ao seu redor e fixou os olhos ao chão, tentando manter-se acordado com o pouco de cafeína que havia ingerido. Passando pelos armários, não se deu conta de que Flash o provocava, ou que Liz conversava com Betty apenas alguns metros de distância, ou Ned, que teve de lhe chamar no mínimo três vezes, assim recebendo um olhar irritado de Peter, que seguiu o caminho.

Vendo que estava cedo demais para suas aulas, decidiu que daria tempo de tirar um cochilo. A questão era onde, já que todas as salas eram utilizadas e ele não tinha acesso aos clubes de manhã… ou tinha?

Em sua mente, brotou o clube do jornal da escola, e lembrou-se que logo cedo Betty e Jason apresentavam os anúncios diários, então soube que a sala estaria aberta, e ele conseguiria tirar alguns minutos debruçado sobre a mesa que seria seu maior conforto no momento. Então virou a esquina e seguiu com passos apressados, não vendo a hora de deitar a cabeça nos braços e dormir como nunca.

Logo que chegou, percebeu que a salinha de vidro com o balcão já estava ocupada, e Betty parecia gritar com Jason — para variar — enquanto ele assentia, recluso e afundando em sua cadeira. O garoto desviou o olhar e parou na sala do fundo, avistando, pelo vidro, Peony sentada com os olhos totalmente focados em algo que ela escrevia. Naquele momento, Peter não pôde revirar os olhos com mais força porque o cansaço o dominava, mas acredite, ele faria. Não soube dizer o porquê de ter se aborrecido com a vista da garota, entretanto, seus pensamentos eram apenas sobre coisas odiosas voltadas a ela.

"Que desnecessário chegar mais cedo na escola só para escrever"

"Quanta ignorância ficar sentada 24h por dia naquela cadeira"

"Que merda ter que ver essa garota correndo atrás do jornal da escola todo dia"

"Ninguém merece"

A garota levantou o olhar, como se soubesse que ele estava a encarando e o garoto mudou de expressão no mesmo instante, já sentindo dor por franzir o cenho com tanta força. Ela, então, abriu um curto sorriso e voltou a fazer o que estava fazendo.

"Fingida", pensou ele antes de sentar-se em uma das cadeiras giratórias.

Peter jogou a mochila sobre a escrivaninha na intenção de fazê-la mais confortável e encostou a cabeça, fechando os olhos e apagando no mesmo momento, como se o café que havia tomado não tivesse feito efeito algum, apenas servido como bebida quente. Ele apenas acordou quando sentiu uma leve agulhada na nuca, sabendo que estava sendo observado, e então levantou o rosto enquanto grunhia lentamente, já não tendo mais o cabelo no lugar e seus olhos inchados de sono.

               — Alguém dormiu mal — comentou Peony com um leve sorriso estampado no rosto.

"Não é da sua conta."

               — É… — respondeu ele enquanto esfregava o rosto com as mãos.

               — Se você quiser, eu tenho um sofá em minha sala — ela apontou com o polegar para trás de si.

               — Eu não posso mais matar aula — disse ele quase que em um sussurro.

               — Se esse é o caso, passe na enfermaria e diga que você está com dor de cabeça ou enjoo. A Sra. Dolan sempre deixa dormir nas macas durante um período — prosseguiu a garota.

               — Por que você está me ajudando? — Disparou ele.

Peony apenas puxou o canto da boca e pareceu tentar formar um sorriso, mas foi em vão. Em seguida, ela deu de ombros e desviou o olhar, passando a mão pela trança que caía em suas costas e trazendo-a para a lateral de seu rosto, caindo logo acima da camiseta branca.

               — Eu sei como é virar as noites — disse ela enquanto cruzava os braços. — Nenhuma cafeína parece fazer efeito.

Ele franziu o cenho novamente, confuso.

               — Como você sabe que eu tomei café?

               — Escorreu nos cantos de sua boca — respondeu a garota, indicando com o dedo. — Bom, eu vou para a aula. Até.

Peter colocou o celular na câmera frontal e viu a pequena linha marrom-desbotado que estava marcada em sua pele, descendo do canto esquerdo da boca e sumindo no queixo. Ele lambeu a ponta do polegar e esfregou a sujeira, que saiu com facilidade. Bocejando, foi colocar o celular no bolso e caminhar para a aula, quando seus olhos bateram no visor que indicava 8:10.

O garoto saiu em disparada, mas já sabia que não teria tempo para chegar à aula com uma desculpa plausível. Por mais que odiasse a ideia de seguir o conselho de Peony, era sua única escapatória para a detenção, então apressou o passo e pegou as escadas de emergência para poder chegar à enfermaria.

[…]

Peter acordou com os tímpanos tremendo e uma pontada na nuca, o que indicava que seu sentido-aranha estava disparando. Levantou-se da maca e do travesseiro achatado em um impulso só, preocupando a Sra. Dolan, a enfermeira que tinha alguns séculos na escola. A mulher o encarou por cima dos óculos pendurados no nariz e torceu a boca.

               — Você precisa vomitar, Sr. Parker? — Questionou-o ao se aproximar.

               — N-Não… na verdade, eu…

               — O senhor dormiu por quase três períodos — comentou a mulher. — Já se sente melhor?

               — Hm… e-eu — Peter tentou dizer, mas a enfermeira logo o interrompeu.

               — Talvez eu deva te mandar para casa. Tudo bem por você, Sr. Parker? Consegue voltar sozinho? — Questionou a mulher.

O garoto permaneceu quieto, sem saber o que dizer, apenas colocou uma mão sobre o estômago para tornar mais real sua atuação sobre a dor. A mulher deixou a expressão séria cair e substituiu-a por uma de pena, que fez Peter sentir-se orgulhoso de si mesmo.

               — Deixe-me fazer sua dispensa — a mulher inclinou-se sobre sua escrivaninha branca e escreveu em uma folha de papel, destacando-a e entregando para o garoto. — Melhoras, Sr. Parker.

Peter agarrou a folha como se fosse seu bem mais precioso e saiu da escola, ignorando o sentido-aranha. Ele sabia que não era o melhor a se fazer, mas no momento, sentia-se tão sonolento, irritado e em estado deplorável que quase não conseguia manter-se de pé. Caminhar pelas ruas do Queens sempre era um perigo, então talvez não fosse nada. E se fosse, ele não queria pensar. Afinal, ele não precisava ser um herói o tempo todo, certo?!

O garoto sentiu o tremor novamente e forçou-se olhar para trás, no instinto de ver o que ocorria. Sua visão era clara; um banco havia acabado de ser assaltado, e um homem corria com dois sacos cheios jogados por cima do ombro. Peter olhou de relance, mas enxergou os fios loiros caindo do gorro e uma tatuagem de revólver no pescoço. A cena passou em câmera lenta enquanto o garoto seguia parado na calçada, vendo o bandido correr por ele e olhar para trás, verificando se havia alguém o perseguindo. Dois policiais saíram correndo, e uma viatura já estava com a sirene ligada, poluindo as audições de quem passeava por ali, junto do alarme do banco.

E então, o homem sumiu em um beco e os policiais seguiram atrás. Peter deu de ombros e sentiu um leve peso nas costas, como se ele não devesse ter ficado parado. Mas sua irritação com o mundo falou mais alto, e seu único objetivo era chegar em casa e se jogar na cama. Bocejando, o jovem seguiu o caminho para o trem sem pensar em mais nada além do cansaço.

Peter não conseguia se lembrar de como havia chegado ao vagão, sequer do momento em que apagou por total, mas o susto que o acordou lhe deu a certeza de que havia dormido por longos minutos. Tanto tempo que já havia passado sua parada, estando pelo menos umas quatro a frente. Praguejando, olhou pela janela para procurar a origem do som estrondoso que o tirou do sono pesado, mas logo que avistou, sentiu uma sensação estranha, como o sentido aranha, mas passou em seguida, em questão de milésimos de segundos.

Ele viu a explosão em câmera lenta. Peter conhecia aquele colégio; uma vez participou de uma olimpíada de matemática nele, e acabou ganhando o troféu de primeiro lugar, além do ódio dos outros participantes. Winterville ficava longe de Forest Hills, o que explicava o lugar em que o garoto estava, e era uma das escolas mais conhecidas na cidade. Além de ser um colégio particular — e extremamente caro —, também era conhecido como ter uma ligação direta com Harvard, pois praticamente todos os alunos dali saíam para a tal universidade.

E agora a escola com as grandes colunas de madrepérola estava consumida pelas chamas e pedaços dos tijolos alaranjados que voavam para o alto, alguns fragmentos até batendo contra o vagão em que Peter se localizava. O trem parou por culpa da interferência das chamas em todo o lugar, aproximando-se da linha, devorando tudo pela frente. Os bombeiros já estavam chegando, várias sirenes no ar enquanto os alunos deixavam o local. Pela segunda vez no dia, Peter não pensou em ajudar.

E então ele reparou em algo que não havia notado antes, mas agora estava evidente: as chamas eram negras; e estas não eram comuns, todavia, ele já havia visto anteriormente. Ao vivo e em cores, além das bilhões de reportagens que mostravam a mesma coisa: colégios sofrendo explosões.

Sem que os bombeiros fizessem nada, as chamas cessaram e deixaram apenas os resquícios de Winterville em monumentos que mais pareciam de séculos atrás. Peter sentiu um grande aperto por não ter feito nada para ajudar, mas quando o trem voltou a funcionar, ele acabou ignorando o fato.

Logo, após uma volta inteira na linha do trem, chegou em sua parada e caminhou até o complexo de apartamentos em que residia. Ao chegar, destrancou a porta e adentrou o local, encontrando-o vazio. Sem muitos esforços para chamar seus tios, foi até seu quarto e ali deitou-se para poder cair em um sono sem qualquer tipo de interrupções. Para poder ajudá-lo, colocou o travesseiro na cabeça e virou-se para a parede, fechando os olhos lentamente.

Pela terceira vez naquele mesmo dia, Peter acordou em um susto com o travesseiro sendo removido calmamente do rosto, virando-se no mesmo instante. O problema da picada de aranha radioativa era sua hipersensibilidade para tudo. Peter mal conseguia montar um sanduíche em paz, pois se uma formiga subisse pelos seus dedos, ele derrubaria tudo, sentindo que os pequenos pés mais pareciam trituradoras sobre sua pele.

Ao olhar para cima, encontrou o rosto de sua tia preocupada. A mulher afastou-se ao ver o susto no jovem e mordeu o lábio inferior com nervosismo expresso nas linhas faciais. Peter ajeitou-se na cama, sentando-se e esfregando os olhos com as palmas das mãos.

               — Desculpe — disse a mulher. — Por que não está na escola?

               — A enfermeira me liberou — o garoto espreguiçou-se.

               — Ah, certo… — May posicionou as mãos abraçando o próprio corpo. — Eu vou depositar dinheiro mais tarde e talvez não dê tempo de pegar comida, então fique à vontade para pedir algo, se quiser. Seu tio chegará tarde.

Peter torceu a boca, mas assentiu lentamente. A mulher parecia ter muita coisa na cabeça, mas mesmo assim, deixou de perguntar, sabendo que o garoto precisava de seu espaço.

               — Eu te amo, ok, Peter?

Novamente, o jovem assentiu com a cabeça, sentindo-se culpado por ter jogado parte da culpa de toda a briga da noite anterior sobre a tia. Com aquilo, a mulher deixou o quarto e Peter espreguiçou-se novamente, sentindo-se recuperado da noite mal dormida. Tomando coragem, levantou-se da cama e decidiu que tentaria melhorar os disparadores de teia.

Sentando-se na escrivaninha, colocou os mecanismos que havia criado anteriormente e puxou sua gaveta de pequenas ferramentas para poder colocar o trabalho em prática. Estalando os dedos, pegou a pequena chave de fenda e começou a retirar alguns dos parafusos para mexer nos sistemas dentro.

Só percebeu que estava ali há horas quando o céu começou a escurecer e ele precisou ligar a luminária velha que havia ganhado no aniversário de dez anos. O problema da luminária era que a lâmpada sempre parecia queimar, e ficava acendendo e apagando em questão de segundos, mas era o suficiente para ser incômodo. Peter respirou fundo, batucando os dedos contra a superfície de vidro para poder estabilizar, nem que por alguns segundos.

               — Eu já deveria ter consertado essa luminária há tempos — soou uma voz masculina atrás de si e Peter se virou para ver quem falava.

Avistando seu tio com apenas metade do corpo para dentro do quarto, chacoalhou a cabeça e voltou sua atenção para a luminária. O homem seguiu adentrando o local, não percebendo — ou ignorando — o incômodo do jovem.

               — É só trocar a lâmpada — afirmou Peter, pousando os dedos no botão de ligar e desligar.

               — Devo ter algumas guardadas, vou buscá-las para poder trocar agora mesmo — avisou o homem, mas antes que pudesse deixar o quarto, Peter ralhou:

               — Eu consigo trocar a porra de uma lâmpada — virou-se diretamente para o tio em sua cadeira giratória, cruzando os braços acima do peito e não fazendo esforço algum para esconder a cara de desgosto.

               — Isso não é só sobre a lâmpada — murmurou o homem, mais para si mesmo do que para o garoto.

Seu tio Ben umedeceu os lábios finos e aproximou-se do garoto, parecendo querer colocar a mão sobre o ombro do jovem, que se afastou no mesmo instante. Com a rejeição, o tio respirou fundo e sentou-se na beirada da cama do sobrinho, afofando a colcha amassada.

               — Eu fui injusto com você ontem — pronunciou-se o tio, ainda mantendo a calma e dizendo cada palavra a seu tempo. — Seu pai era um homem de grande coração, uma das pessoas mais inspiradoras e persistentes que já conheci, além da genialidade única, e agora não tão única, pois se tem algo que você é, é igual ao seu pai.

Tio Ben olhou para baixo com a dor evidente na expressão. Quando Peter pensava na morte de seus pais, ele via como uma memória terrível de seu passado, mas algo que o tornou quem ele é nos dias atuais. Porém, nunca parou para pensar em como o acidente pudesse ter atingido seu tio, que naquele dia, perdeu seu melhor amigo, seu irmão, parte de si, e agora sua expressão revelava parte daquele sofrimento. Tudo isso acordou certa dor dentro do garoto, mas ele procurou esconder pelo orgulho que falava mais alto.

               — Mas todos esses dons que você herdou tem um preço, Peter — o homem levantou o olhar após um longo suspiro, ajeitando os óculos velhos sobre a ponte do nariz —, seu pai sempre dizia que com grandes poderes, vem grandes responsabilidades. É preciso saber domá-los para não caírem de suas mãos.

Peter baixou o rosto e sentiu as lágrimas formando-se nos cantos dos olhos. Quando uma delas escorreu pela bochecha do jovem, o tio aproximou-se para prestar apoio, mas Peter recuou novamente, fugindo do toque. O garoto levantou-se da cadeira rapidamente, saindo do quarto e seguindo para fora do apartamento com pressa, lágrimas já escorrendo contra o rosto.

Ao entrar no elevador, avistou o tio saindo do apartamento, mas não chegando antes das portas se fecharem. Encostando-se ao espelho, Peter respirou fundo e olhou para cima, na intenção de cessar as lágrimas, sem muito sucesso. Assim que o elevador chegou, o garoto saiu em disparada para fora do prédio, sem nada nos bolsos, sem dinheiro ou sem o celular.

Nem com o uniforme estava, ou apenas os disparadores, que deixou abertos sobre sua escrivaninha. Não tinha para onde ir, ou o que fazer, mas precisava sair dali, correr para longe. No fundo, Peter sabia que estava agindo como uma criança birrenta, ou trazendo toda a imaturidade presente em si para a situação, mas não conseguia evitar. Toda sua vida, guardou tudo para si, e agora era seu momento de evacuar os sentimentos da prisão que tinha dentro do peito. Tirar todo o peso de suas costas e se libertar daquilo que o prendia no passado, por mais que lhe fosse impossível.

Peter seguiu rua abaixo até encontrar um pequeno parque que nunca havia notado antes, mas era próximo de onde morava. Ele não queria ficar parado, mas precisava de um lugar calmo para poder chorar em paz, sem quaisquer interrupções ou pessoas tentando o consolar. Ele só não aguentaria companhia no momento, pois aí desabaria de verdade.

O garoto apoiou os cotovelos sobre os joelhos e inclinou o corpo para frente, cobrindo o rosto com as mãos enquanto deixava os soluços saírem pelos lábios entreabertos e as costas tremerem de acordo com o choro doído. Ele ficou na posição por alguns bons minutos, talvez até uma hora, ou próximo disso, quando escutou algo que fez seu corpo tremer mais que o normal. Um tiro.

Com grandes poderes, vem grandes responsabilidades.

A frase não saía de sua cabeça. O garoto congelou por alguns segundos enquanto refletia. Apenas naquele dia ele acabou perdendo a chance de defender duas situações que aconteceram logo em sua frente, e essa não seria a terceira. Com o sentido-aranha estalando na nuca, Peter levantou-se com rapidez e seguiu o barulho. Atravessando a rua, avistou uma figura escura na calçada, e chegando mais perto percebeu que não era uma figura qualquer, era um corpo.

Os fios da nuca se arrepiaram e o garoto terminou de enxugar as lágrimas com as mangas do suéter enquanto seguia para o outro lado da rua. Antes de pisar na calçada, encontrou um par de óculos conhecidos, fazendo seu corpo gelar e tirando todas suas possíveis reações da lista. Ele não sabia o que fazer, sentindo seus músculos rígidos enquanto sua mente parecia silenciosa, apenas uma voz lhe dizendo para não levantar o rosto.

O garoto agachou-se para pegar os óculos e passou os dedos pelo arranjo marrom, vendo o arranhão logo na lente esquerda, e deixou o item cair das mãos, sua respiração falhando. E então, com toda a coragem que tinha dentro de si, mais o impulso, levantou o olhar e encontrou o corpo sangrando no chão.

Quando Peter pensava na morte, ele associava com caixões e flores, roupas pretas e choros desconhecidos em uma tarde chuvosa. Foi assim que ele imaginava que veria seus pais, mas nunca encontraram seus corpos. Por consolo, ele trazia essa imagem na cabeça, mesmo sabendo que a morte pudesse ter-lhes arrancado alguns membros e desfigurado suas faces. E, mesmo afastando os pensamentos, ele desejava que todas as próximas mortes que visse fossem caixões fechados com flores ao redor.

E ali estava seu tio Ben, caído sobre o asfalto sujo e frio das noites da grande cidade. Seu sangue pintando o cinza, sua camisa azul-marinho ensopada do líquido que vazava do buraco no peito. Peter não queria se agachar, mas os joelhos falharam e ele caiu de frente para o homem, suas calças manchando no vermelho. A respiração falhava, brincando com os pulmões do garoto, e sua mente estava mais silenciosa do que nunca. Ele só desejava que vários pensamentos pudessem rodar por ali, mas não tinha nada mais. Seus olhos estavam fixos no corpo do tio.

Procurando pela mão do homem, Peter viu algumas de suas lágrimas desbotando o sangue no chão, e só então percebeu que aquilo era real. O choro queimava as bochechas, os pulmões doíam, o sangue já havia adentrado o tecido de suas calças e suas mãos estavam em vermelho-vivo, pingando como um tinteiro e adentrando os meios dos dedos. O garoto abriu a boca para tentar chamar o homem, mas nada saiu, e ele só conseguiu olhar para cima, deixando gemidos dolorosos escaparem pela garganta que secava a cada instante.

Naquele momento, Peter só queria que aquilo fosse um daqueles pesadelos que o fizesse acordar chorando, daqueles que ninguém deseja nunca, mas seria melhor do que aquela realidade. Sua mente parecia estar lhe preparando, reafirmando que ele jamais veria o tio novamente, que jamais levaria uma bronca novamente, que jamais tocaria nele novamente. E sua tia May ficaria devastada. Ela não aguentaria tudo aquilo, ouvir que o marido havia morrido ao sair para procurar pelo sobrinho. Tudo era culpa dele. Peter era o grande culpado.

Agora, o garoto só desejava que pudesse voltar no tempo para pedir desculpas e deixar tudo quieto, tudo bem, pois mesmo aquela tendo sido uma grande briga, poderia não ser a última. E agora era sua última. E seus óculos estavam caídos na sarjeta, abandonados, virados para a rua vazia. Ele não precisaria mais deles.

Não era justo. Não era justo. Não era justo. Apenas alguns instantes ele estava vivo, e agora, morto, sem qualquer sinal de vida presente em si. Para Peter, olhar para seu corpo não tinha sentido, não era justo, pois aquele não era seu tio. Aquele era um cadáver, algo que ele estava vendo agora, mas não veria depois, pois afundaria em um caixão. O garoto aproximou suas mãos do rosto do homem, tentando sentir o calor, apenas para ver as manchas de sangue causadas por seus dedos descendo o pescoço do tio que já não tinha mais a alma dentro de si. Estava apagado. Os olhos castanhos mirando o céu, vazios. Tudo por culpa dele. 


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Notas finais do capítulo

Foi mal pelo fim. Precisava acontecer.



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