Encontros, Acasos e Amores escrita por Bell Fraser, Sany, Gabriella Oliveira, Ester, Yasmin, Paty Everllark, IsabelaThorntonDarcyMellark, RêEvansDarcy, deboradb, Ellen Freitas, Cupcake de Brigadeiro, DiandrabyDi


Capítulo 9
Coração de Gelo


Notas iniciais do capítulo

Hello, pípols!! Como é que vocês estão?
Chegou o momento que eu tanto esperava!! Estava muito ansiosa para mostrar essa one para vocês, espero que gostem.

Devo dizer que quando as meninas, na pessoa da Bel, me procuraram para participar do projeto, fiquei muito animada. Sempre gostei de desafios, e ser desafiada a criar através da escrita? Tem como ser melhor?

Para a one dessa semana, a Isabela ThorntonDarcyMellark me desafiou a escrever sobre SUPERAÇÃO. Confesso que foi um pouco difícil, vocês verão que nossa protagonista e narradora não é uma pessoa fácil de lidar, mas espero que essa história sirva para vocês como serviu para mim.

Boa leitura!! Até as notas finais!! Bjs*



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― Peeta, vai embora. ― Ele se afastou com a testa franzida e um sorriso de lado brincando em seus lábios.

― Tem razão, já é meio tarde. Se tem uma coisa que não quero, é confusão com seus pais. ― Peeta ficou de pé, procurando o celular que havia deixado em algum lugar sobre minha cama. ― Eles já me amam, vamos deixar assim.

― Você não me entendeu, quero que vá embora ― repeti, tentando dar mais ênfase à frase e me fazendo entender. ― Isso não vai dar certo. Nós dois. ― Dessa vez o sorriso dele saiu sem graça e meio incrédulo.

― Faça sentido, Kat ― pediu, tentando esconder o nervosismo.

― Eu até que estava me esforçando pra gostar de você, mas não consigo, sinto muito. ― Respirei fundo, eu não poderia chorar, mesmo que o que eu diria a seguir, partiria meu coração junto com o dele. ― Você é muito meloso e carente. Não tenho saco pra isso.

― Você está mentindo. Nosso beijo...

― Eu acabei de beijar você, grande coisa. ― Dei de ombros. ― Sabe quantos eu beijei antes? E você não será o último, acredite.

― Por que está falando essas coisas? ― Os olhos azuis dele brilhavam das lágrimas que não caíram. Minhas palavras tiveram o efeito que eu queria, e o Peeta confiante tinha dado lugar ao sensível. ― Você não é assim! Seu coração não é mais de gelo!

― Peeta, vai embora e me deixa em paz, faz favor?

― É o que você quer? Mesmo? ― apelou. ― Você sabe que se eu sair... Katniss, essa é a terceira vez, eu não passarei por isso uma quarta. Se eu sair, não vou voltar.

― Preciso descansar, então... ― Indiquei a porta.

Ele fungou o nariz e passou a mão pelos olhos, tentando se recuperar do choro iminente. O loiro me deu uma última olhada, e quase me senti tentada a encenar um sorriso e dizer que tudo não passou de uma brincadeira sem graça da minha parte. Mas eu não podia, ele merecia o melhor.

Quando a porta de fechou, desabei a chorar. Mas eu havia sido egoísta minha vida toda, eu precisava de pelo menos uma atitude boa pra compensar meus constantes atos de filha-da-putice. Peeta não entenderia no momento, mas a longo prazo, ele veria que seria o melhor.

― Você matou o coelhinho de estimação do seu não-namorado? ― Johanna entrou sem convite no meu quarto. ― Ok, o que rolou aqui? ― O sorriso dela desmanchou quando viu minhas lágrimas. ― Não, Kat, você não fez isso!

― Ele merece alguém completo, alguém que não o prenda. Peeta tem 18 anos, é a melhor pessoa que conheço, e merece o melhor.

― Novamente te digo, eu achava que ele era burro e você esperta ― comentou rolando olhos. ― Isso é besteira, Katniss. Você sabe que ele ama você, não sabe?

E eu o amo. Mais do que qualquer um imaginaria, mais do que eu sabia que amava. Agora finalmente conseguia admitir.

― Jo, preciso ficar sozinha.

Quando minha prima saiu, chorei mais e mais. Eu queria me jogar em meu travesseiro e me desmanchar em lágrimas como aconteceu quando levei meu primeiro fora. Mas a diferença, é que dessa vez, não tinha sido um simples fora, ou um simples término. Eu poderia estar exagerando, mas com Peeta era diferente. Ele era diferente.

Sem nem pensar exatamente sobre, tentei me mover para o outro lado da cama para pegar um travesseiro, foi quando senti. Um pequeno movimento no meu pé direito e uma fisgada que ia até a coxa. E aquilo foi a primeira sensação abaixo da cintura depois de quase um ano.

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*||*||*

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# Quase um ano atrás...

― Eu te amo, sabia? ― Peguei o pacote pardo das mãos de Peeta antes mesmo que ele sentasse, já começando a comer o sanduíche.

― Você come demais pra uma cheerleader ― respondeu sorrindo, enquanto sentava e mexia na própria salada de frutas.

― Eu gasto muita energia nos treinos, anjo. ― Dei de ombros. ― Mas me fala, deu certo? ― Sorri do modo constrangido como ele corou e abaixou a cabeça, encarando o próprio lanche.

― Não precisamos falar disso.

― Claro que precisamos! Me diz, você já é um homenzinho? ― questionei ansiosa, e ele bufou.

― Sim, rolou, e não quero falar sobre isso. ― Dei um soco no ar em comemoração, e até tentei não comentar mais sobre o caso, mas foi impossível.

― Quando você e a Madinha vão fazer de novo? Estão namorando ou coisa assim?

― Não e não. Foi coisa de uma só vez.

― Para tudo pra ver se eu entendi direito. ― Ergui meu indicador no ar. ― Peeta Mellark usando as garotas apenas para sexo? ― Abri minha boca encenando choque. Mas eu estava de fato muito surpresa, ele sempre foi mais o tipo “príncipe encantado”. ― Já 'tá ficando cafajeste?

― Cafajestagem maior seria ficar com ela. Madge é legal.

― Então namora ela, oras!

― Namorar quem? ― Johanna chegou à mesa roubando minhas batatas. ― Ei, nerd.

― Tudo bem, Jo?! ― ele cumprimentou de volta.

Johanna Mason era a prima que tinha vindo para agitar minha vida. Antes da chegada dela, eu era quieta, mais na minha, bem no estilo Peeta de ser. Mas a garota era totalmente pirada, começou a me levar para festas, me entrosar com o time e a torcida. Peeta era a última amizade daquela época, e só ainda éramos levemente próximos porque ele me trazia comida, fazia minhas vontades e não largava do meu pé.

― Peeta já é um rapazinho! ― comentei orgulhosa e ele me olhou querendo me matar.

― Finalmente! Com a Madge?

― Sim, e agora ele quer dispensá-la, dá pra acreditar?

― Já disse, ela não é a escolhida.

― E quem é? Me diz um nome que eu faço acontecer.

Observei por minha visão periférica quando Johanna ergueu uma sobrancelha e encaixou o rosto entre as mãos, olhando para ele e esperando a resposta com um sorriso no canto da boca. Estranho.

― Não é ninguém ― desviou da pergunta, já ficando em pé. ― Até mais, tenho aula.

― Peeta ‘tá esquisito. ― Fiz uma careta ainda olhando as costas dele se afastarem.

No último ano, ele havia crescido bastante, e os dezessete anos revelaram que ele poderia ir além do nerd desastrado. Muitas garotas agora tentavam conquistá-lo, mas tinham seus planos frustrados. Ao contrário dos outros meninos da nossa idade, Peeta não namorava, e nunca tinha feito sexo. Até ontem.

Quanto a mim, não posso me queixar da minha vida social. Ter Johanna ao meu lado e ser a melhor acrobata e dançarina das líderes de torcida tem elevado minha popularidade a cada dia. Por isso queria o namoro de Peeta com Madge. Ela era a co-capitã do time, era gente boa e popular. Ele precisava disso, e eu precisava de um amigo que não fosse o nerd da escola.

― E você não sabe o porquê? Jura, prima?

― Você sabe? ― ela rolou olhos, em um gesto de impaciência.

― E eu achando que você era esperta e ele o lerdo ― comentou. ― Mas deixando a nada interessante vida amorosa do seu amigo de lado, quero saber de uma coisa: posso dizer pro Gale que você vai na festa da Cash?

― Que dia? ― Voltei minha atenção ao sanduíche.

― Semana que vem, ela ainda vai avisar. Mas vou te dizer, o cara ‘tá louco pra sair com você de novo. ‘Tá fazendo o bom e velho cu doce pra enrolar o boy, garota?

― Mas é claro, porque puritana você sabe que não sou. Está sendo difícil segurar, oh moreno gostoso, vou te dizer! Talvez até compense sossegar só com ele.

― Katniss Everdeen apaixonada? Vivi pra ver isso!

― Não exagera, prima. Mas tenho que admitir que o cara vale à pena.

― E o que Peeta acha disso? ― Não entendi por que Jo colocou ele de volta na conversa.

― Eu não vou comentar minha vida sexual com uma pessoa que mal é minha amiga. Ele é legalzinho, mas não entende muito desse nosso mundinho mais liberal. O garoto é das antigas.

― Talvez eu pegue ele, se você não se importa. Peeta, quero dizer. Ele ‘tá ficando gostosinho, e agora que já passou o desastre e constrangimento que é a primeira vez, posso ensinar umas coisinhas pro loiro.

― Se eu fosse você, nem tentava ― dispensei o interesse de Jo. ― Mas vai lá, fica à vontade.

― Depois não venha me chorar as pitangas ou querer me esfolar de ciúmes se eu quebrar o coraçãozinho nerd dele.

― Jo, não enche o saco! E pode dizer pro Gale que eu vou sim.

A festa foi marcada para uma quarta feira, porque ninguém estava mesmo se importando se teria aula no dia seguinte ou não. Talvez a maioria nem aparecesse na escola.

Naquela noite, entrei no meu carro ao som dos trovões da chuva que cairia, o céu sendo iluminado pelos raios que mostravam parcialmente as pesadas nuvens chocando-se umas com as outras. Parecia que metade do céu cairia mais tarde, e seria meio perigoso dirigir no temporal que se formava, mas não eu perderia aquela festa por nada. Então sem que meus pais soubessem, saí em direção à casa da Cashmere.

― Ei, vadia! ― Johanna, que tinha vindo mais cedo, me cumprimentou logo que entrei. ― ‘Tá parecendo uma puta de luxo, hein?! Gale não vai resistir dois minutos com o zíper fechado.

Eu ri e analisei novamente minha roupa. Uma mini saia de couro preta, uma blusa frente única soltinha com pedrarias nas costas, e saltos altos. Meu corpo definido dos treinos da torcida e da academia vestia perfeitamente as peças, e o olhar dos caras sobre mim, mostrava que eu não estava fazendo feio. E pra ainda continuar na onda do preto, carreguei minha maquiagem em tons bem escuros, que destacassem meus raros olhos cinzas.

― Esse é o plano.

― Quando lembrei que dia era hoje, pensei que você não viesse ― comentou banalmente começando a andar por entre as pessoas que já estavam no local.

― Que dia é hoje? ― questionei. Não lembrava de ser nada especial.

― Não é dia 24 de julho que aquele seu amigo faz aniversário e vocês passam a noite vendo filmes bobos e não transando?

Ai. Meu. Deus.

Peeta! Esqueci completamente.

― Você esqueceu, não foi? ― minha prima deu voz aos meus pensamentos. – Achei que iam até fazer algo mais especial, ele disse isso quando me dispensou hoje de manhã quando o convidei para vir à festa. Disse que tinha que “resolver de vez um assunto hoje”. Mas se vocês desmarcaram, talvez seja assunto com outra pessoa.

― Quer saber o pior? Não desmarcamos e o coitado deve estar batendo na minha porta agora. O que eu faço, Jo?

― Aí vai depender do quanto você gosta do Peeta, Kat.

Eu sei que deveria pegar o carro e voltar pra casa, mas, na real, eu não queria. Eu tinha que adiantar as coisas com Gale essa noite, Peeta entenderia. Ele sempre entendeu todas as vezes que desmarquei com ele. Tudo bem que nenhuma das vezes havia sido o aniversário, mas essa era tradição boba de dois pré-adolescentes isolados. Poderíamos ver Star Wars outro dia, ninguém ia morrer por isso.

― Eu não queria ir embora ― reclamei.

― E não vai mesmo, morena. ― Assustei um pouco quando Gale chegou me agarrando por trás e beijando meu pescoço. ― A festa nem começou ainda ― ele sussurrou ao meu ouvido, me fazendo soltar um gemidinho.

― Parece que sobrei aqui ― Jo comentou fingindo desgosto. ― Não se preocupa, Kat, se seu amigo aparecer por aqui, pode deixar que eu distraio ele enquanto você está ocupada ― ela falou já se afastando de nós.

― Que amigo, Catnip? ― Sorri diante do apelido fofo e me virei pra ficar de frente àqueles quase dois metros de pura beleza e perdição.

― Johanna é doida ― desconversei. ― Mas então, o que tem de bom pra fazer nessa festa?

― Eu diria uma dezena de coisas, mas com você vestida assim, só penso em te arrastar pro primeiro quarto vago ― ele sussurrou ao meu ouvido, descendo a mão que estava nas minhas costas para minha bunda.

― Calma, calma. Qual a pressa?

― Você não vai me enrolar de novo não, não é, garota?

― Você acha que alguém sem sutiã e usando fio dental ‘tá a fim de enrolar alguém? ― Um sorriso malicioso enorme desenhou-se nos lábios de Gale, os olhos brilhando em expectativa. ― Agora vai buscar uma bebida pra mim, estou morrendo de sede.

Pouco tempo depois, quando nossos beijos e carícias já estavam fazendo vergonha até pra os adolescentes depravados da festa, Gale me puxou em direção ao lado de fora. Ok, eu preferia um quarto, mas vai servir. Quando chegamos à garagem vazia, ele já foi me prensando contra a primeira parede.

― Se você for tão boa quanto parece... ― ele falou com a boca em meu pescoço, enquanto sugava a pele sobre minha jugular, já se mostrando excitado.

― O que você acha? ― Levei uma de suas mãos apenas próximo da minha intimidade úmida. Não tinha como esconder como eu também queria aquilo. E logo.

― É pra já, morena.

A camisa dele voou pelos ares, logo antes dele me erguer pelos quadris e me apoiar sentada em um dos balcões dali. A minha saia que já era curta, virou nada mais do que um cinto, quando ele a subiu, se colocando em pé entre minhas pernas.

As mãos habilidosas de Gale já estavam dentro da minha blusa, baixando as alças e o tecido junto, e aproveitei para desafivelar seu cinto e agilizar as coisas. Sorri diante do gemido que o moreno soltou quando aumentei o atrito dos nossos corpos ao envolver e apertar minhas pernas em torno da cintura dele.

― Você é um demônio, garota.

Sua boca mais uma vez estava na minha, nossas línguas se encontrando sem pudor algum, com selvageria e força, mandando aquela mensagem pro meu cérebro que eu logo teria o melhor sexo da vida. Droga, eu queria namorar esse cara!

― Qual é, nerd, gosta de assistir? ― percebi que ele falava com outra pessoa quando se afastou de mim. ― Vai procurar um pornô, não tem nada pra você aqui.

Eu, que estava me escondendo parcialmente atrás de Gale, olhei por cima do ombro do meu acompanhante para ver quem era o pervertido que estava espiando meus peitos, foi quando percebi de quem se tratava.

Peeta estava congelado, encarando diretamente meus olhos. O loiro tremia um pouco e estava todo molhado do temporal que eu nem percebia que já havia começado lá fora. Sua expressão de tristeza e decepção fez meu estômago afundar, e mordi o lábio com força.

Droga! Eu não queria que ele visse isso.

― Desculpe incomodar ― ele falou para Gale já entrando de volta na chuva.

― Peeta, espera! ― gritei saltando da mesa que estava e afastando Gale enquanto vestia a blusa e arrumava a saia de volta ao seu lugar.

― Fala sério, Katniss, você não vai atrás dele, vai? Quem é esse menino?

― Foi mal, Gale, a gente remarca. ― Lhe dei um beijo rápido antes de sair. Ele estava puto de raiva, melhor nem ficar ali mais tempo. ― Peeta! ― tentei correr, mas com os saltos e o chão molhado era mais difícil. ― Peeta!

― Me deixa, não quero olhar na sua cara! ― ele retrucou procurando as chaves do utilitário velho dos seus pais nos bolsos.

― Você não precisava ver isso.

― Sim, eu precisava. Eu precisava porque era o único jeito de mostrar pra minha mente que minha amiga divertida e inteligente tinha virado uma puta adolescente que dorme com todo o colégio, abrindo as pernas numa garagem suja pra qualquer um.

― Ei! ― exclamei. ― As coisas não são assim, fala direito comigo!

― As coisas são exatamente assim, Katniss. você não tem coração, ou melhor, tem um congelado no lugar! Ilusão minha achar que você ainda é aquela menina legal, que eu sonhei em namorar a vida toda. Que eu ainda... ― Peeta respirou fundo, ao contrário de mim, que prendi a respiração. ― Você é burra ou o quê? Eu gosto de você! Droga, Katniss, como não pôde ver?

Era isso? Ele estava se declarando?

― Peeta, eu não sabia.

― Esquece. Eu mereço mais do que alguém que só me usa pra fazer suas vontades e só me liga quando precisa de algo. Que esquece meu aniversário pra transar com o bonitão do time. Eu mereço alguém melhor que você ― dizendo isso, ele entrou no carro, pisando fundo.

Mas eu não ia deixar as coisas assim, não mesmo. Como assim, Peeta estava a fim de mim? Agora todas as indiretas de Johanna faziam sentido. Mas eu precisava colocar tudo em pratos limpos, e nunca gostei de deixar pra amanhã, a treta que você pode resolver hoje. Corri para dentro da casa e peguei minha bolsa, já indo em direção ao meu carro. Eu não fazia ideia para onde Peeta ia, então rumei ao local do meu primeiro palpite, que seria a casa dele.

A chuva ainda caía intensa e eu mal via a estrada à minha frente, muito menos algum sinal do carro dele, mas eu conhecia o caminho muito bem, poderia dirigir de olhos fechados. O que eu não poderia era prever que dirigir em alta velocidade e não parar no cruzamento faria com que eu não visse o ônibus derrapando na água, que atingiu o carro e fez tudo ficar escuro.

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*||*||*

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Abri meus olhos para a claridade cegante, para fechar logo em seguida.

― Ela está voltando. ― Ouvi uma voz anunciar às demais, o barulho da sirene fazendo minha cabeça doer ainda mais. ― Jovem, você sabe o que aconteceu?

Eu não conseguia emitir um som sequer, minha garganta estava fechada e meus olhos cerrados. Como tudo doía, eu nem sabia precisar onde era de fato a dor.

― Katniss Everdeen, é o nome na carteira de motorista. Vamos ligar para sua família, não se preocupe.

― Pee... Peeta.

Nem sei o motivo daquele nome ser o primeiro que saiu da minha boca, talvez seja porque tudo aconteceu quando eu estava numa corrida desenfreada atrás do garoto quando meu carro foi atingido.

Isso, meu carro foi atingido por um ônibus! Me envolvi em um acidente e agora parecia estar a caminho do hospital. Meus pais não sabiam que eu estava na festa. Nem Johanna, Peeta ou Gale, ou qualquer outra pessoa me viu sair. Tradução, eu estava muito ferrada. E eu nem sabia que o pior ainda estava por vir.

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*||*||*

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― Katniss, bom dia. ― Ouvir a voz da enfermeira me fez fechar os olhos com ainda mais vigor. Eu não estava dormindo bem há dias, mas ela não precisava saber. Eu não estava mesmo a fim de falar com qualquer pessoa, por mais falsamente simpática que ela possa parecer. ― Eu sei que você está acordada, querida ― atestou, mas ainda não abri os olhos. ― Tudo bem se não quiser conversar comigo, mas terá mesmo que falar com seus pais alguma hora.

Mantive meu tratamento de silêncio, então logo ela desistiu. Finalmente!

Eu já estava me acostumando com esses procedimentos do hospital, afinal, já fazia quase uma semana que eu havia acordado na UTI. Ela silencioso, vazio, quase todos os pacientes estavam mais mortos do que vivos, ou seja, não tinha ninguém me enchendo o saco. Meus pais tinham direito a uma hora diária de visita, mas quando ele estavam aqui, com aquela cara de piedade e me dizendo que tudo ia ficar bem, eu apenas os ignorava.

Nada ia ficar bem, nunca mais. Não depois da notícia que eu recebi logo que acordei. Eu não poderia mais caminhar, ou sequer me sustentar em pé. Alguns neurologistas e fisioterapeutas mais otimistas diziam que sim, mas eu não iria por eles. Me iludir seria pior.

― O médico vem te avaliar hoje, talvez até o fim do dia já esteja em um quarto, Katniss ― ela falou quando já estava saindo. ― Se não quer falar com seus pais, deveria pelo menos receber seu namorado. O menino não sai da sala de espera há quase uma semana, ele toma banho e come por aqui, me implorando para te ver.

Peraí, namorado? Gale estava aí fora?

Ele era o único cara que estava tendo uma espécie de “lance” antes do acidente, mas isso não deixava de ser infinitamente surpreendente. O moreno nunca pareceu ser do tipo sentimental ou cuidadoso, mas esse tipo de situações pode mudar pessoas, certo?

Aquele foi o pensamento que me corroeu durante o resto do dia, mas não o suficiente para solicitar uma visita. De fato, eu fui transferida a um quarto e a partir daí fui obrigada a ter a companhia do meu pai ou da minha mãe, ou pior, dos dois ao mesmo tempo.

― Filha, vou tomar um café, volto em alguns minutos. ― Continuei fitando os azulejos brancos que eu já havia contado uma dezena de vezes, quando recebi um beijo na testa e mamãe saía.

Aquele era o primeiro momento que eu ficava inteiramente só desde o acidente. E eu sabia que as coisas só iriam piorar quando fosse para casa em dois dias. Peguei meu celular que estava na mesinha de cabeceira e comecei a zapear pela internet, na falta de coisa melhor pra fazer. Haviam algumas mensagens de pessoas da escola, os avisos gritados em áudio de Johanna avisando que me visitaria mais tarde, muita falação em grupos de Whatsapp. Nada  realmente importante. A vida de todo mundo parecia seguir bem sem mim.

― Pensei que seus pais não dariam um minutinho de folga. ― A presença de outra pessoa no quarto fez meu coração dar um salto de susto, e eu praticamente joguei meu celular pra cima, e coitado saiu quicando na cama até cair no chão.

― Merda!

― Desculpa. ― Peeta se assustou com meu susto, colocando a mão no peito, e logo depois de abaixou pra pegar meu telefone no chão. ― Olha, ele está bem ― falou me devolvendo o aparelho.

― Quem te deixou entrar, eu disse que não queria ver ninguém!⁠⁠⁠⁠ ― Era só o que me faltava, essa sombra me seguindo até aqui.

― Eu só precisava te ver, Kat. Me perdoa.

Por que diabos eles estava se desculpando? Ele era o motorista imprudente do ônibus que bateu em mim?

― Quê?

― Se eu não tivesse saído daquele jeito... ― Peeta se interrompeu, parecendo que ia chorar a qualquer momento. ― Olha, eu estou aqui por você, ok? Você é forte, vai superar isso e eu vou estar...

― Não! Pode parar, eu não preciso ouvir isso, não de novo! ― Ele não pareceu entender minha revolta.

― Mas, Kat...

― Eu não vou superar, eu não sou forte, e estou cansada de todo mundo dizer isso!

Quando dei por mim, estava chorando muito. E eu ainda não havia chorado depois do acidente, nem uma vez sequer. Ouvi a notícia calada, a amargura em pensar como meu futuro estava arruinado me atingiu como um tiro de canhão, mas apenas acenei para o médico e fingi que voltei a dormir. Meus pais iniciaram essa conversa um par de vezes, mas eu não estava mesmo disposta.

Mas de algum modo, aquilo finalmente extravasou.

― Droga, eu nunca vou ser nada! ― Eu passava minhas mãos pelo rosto em um gesto desesperado. Era como se eu estivesse sufocando com a realidade. ― Acabaram todas as minhas chances. Eu nunca vou ser nada!

― Não fala assim, você só tem dezessete anos.

― Sai daqui, Peeta, é melhor para você!

― Eu não vou sair, Katn...

― Sai daqui! ― gritei com ele, as lágrimas se misturando banhando toda minha face.

Mas ao contrário do que eu mandei que ele fizesse, o garoto apenas me abraçou, forte, apertado. Ainda tentei lutar contra seus braços por um tempo, mas logo me rendi, aceitando o carinho enquanto chorava ainda mais em seu peito, sentindo seus dedos afagarem meus cabelos.

E ficamos assim por muito tempo.

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*||*||*

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― Peeta! Devagar! Cuidado, cuidado! Vai devagar, devagar, devagar! ― Ele parou bruscamente e me direcionou um olhar sorridente.

― Não entendi, quer que eu vá devagar? ― ele perguntou com um sorriso agora também nos lábios, apenas ironizando minhas reclamações, que se estendiam desde o momento que eu saímos do carro e ele fez questão de me levar no colo até em casa.

― Você ‘tá caminhando como se estivesse levando um pacote de batatas ― reclamei. ― Sou uma pessoa!

― Um pacote de batatas não reclamaria tanto, meu bem. ― Meu pai passou por nós, levando toda minha bagagem que se acumulou dos dias que passei no hospital. ― Boa sorte com ela, garoto. Vou guardar suas coisas e avisar à sua mãe que chegamos. Almoça com a gente, Peeta?

― Claro, senhor Everdeen.

― Ele não está merecendo, é um péssimo carregador! ― Ouvi a risada do meu pai quando ele já entrava na cozinha.

― Para onde você quer que esse péssimo carregador te leve? Quarto ou sala?

― Quarto. ― Quando ele começou a subir as escadas rápido demais, recomecei a bater nele. ― Devagar, meu anjinho! Eu vou cair.

― Você sabe que tenho treinado, Kat. Seu peso não é nada perto dos meus alteres.

― Tudo bem, garoto no pain no gain, mas eu não sou seus pesinhos de academia. Cama. ― Indiquei o móvel, que ele me depositou com cuidado.

― Relaxe, não te deixaria cair. Posso te conseguir mais alguma coisa? ― perguntou solícito.

― Meu celular ficou na minha bolsa lá em baixo, pode pegar? Tenho que avisar Johanna que já cheguei.

― ‘Tá, eu pego. Volto já.

Desde aquele dia no hospital, Peeta tem se autodenominado meu acompanhante. Com exceção dos horários que ele está na escola, a qual forcei ele voltar a frequentar, o resto de seu tempo ele passa comigo. E não tem sido de todo ruim. Ele me conta do que está acontecendo no colégio, me passa o dever de casa, ou simplesmente fazemos maratona de filmes ou séries.

Meus pais parecem bem mais aliviados por me ver conversando com outro ser humano, então tratam Peeta como filho, muitas vezes melhor até que o tratamento que eles dispensam a mim. Meu amigo tem uma paciência sem fim, então é o único que tem suportado todos meus estresses e dramas.

Hoje finamente recebi alta do hospital.

Meu neurologista recomendou que eu continuasse o acompanhamento com ele, fisioterapeuta e psicólogo, mas na boa? Eu não estava disposta. Meus pais tinham esperança, Peeta também, mas já havia desistido de tentar reverter meu quadro. Se eu fosse voltar a andar deveria sentir pelo menos uma dorzinha na unha do pé, mas tudo estava completamente dormente. Ficar perdendo tempo com terapias que não dariam certo seria como plantar esperanças vazias em um solo seco.

― Aqui. ― Ele logo chegou com meu telefone. ― Também te trouxe isso, estava lá embaixo. Seus pais comparam. ― Como se tivesse receio da minha reação, ele foi devagar até o corredor e arrastou uma cadeira de rodas para dentro do meu quarto.

Não pude negar que lágrimas vieram aos meus olhos. Aceitar minha triste e permanente condição era coisa. Outra bem diferente era ter que encarar o objeto dos meus pesadelos das últimas semanas.

― Ei, isso é provisório, acredite. ― Peeta sentou-se ao meu lado na cama, tomando minhas mãos entre as suas. ― Estou aqui, ‘tá bom? ― Ele me puxou para eu colo, em um abraço carinhoso, como os dele sempre eram. ― E podemos colocar uns pompons, umas florzinhas e um revestimento cor de rosa.

― Eca, odeio rosa!

― Pode ser caveiras ou franjas, você que sabe. ― Consegui dar um sorriso mínimo, que já foi suficiente para deixá-lo mais feliz. ― Diga o que quer, eu arrumo.

― Quero não pensar nisso por enquanto, ‘tá bom?

― Perfeito! Então, o que faremos essa tarde? Tem um filme de terror que estreou na Netflix, ‘tá a fim de ver? ― Peeta sentou-se na cadeira e começou a brincar com ela, como se não fosse nada demais. Percebi que ele não estava menosprezando minha situação, mas tentando me mostrar que a cadeira não era o monstro que eu achava.

― Sua família já percebeu que você quase não mora mais lá? ― brinquei.

― Nem adianta tentar me expulsar, sua mãe está fazendo lasanha. Você sabe que eu amo lasanha.

― Vai ficar gordo.

― Acha que eu estou fora de forma? ― Peeta flexionou o braço, sorrindo enquanto exibia seus músculos do braço. Quando esse garoto ficou forte?

― Ninguém gosta de um exibido, Peeta.

― Ninguém gosta de uma má humorada, mas aqui estou do seu lado, princesa. Agora você pode escolher o filme ou vamos ver o que eu disse?

Ele apenas deitou-se ao meu lado na cama e já pegou o controle remoto da TV na mesinha, começando a selecionar o tal filme. Tudo bem então.

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*||*||*

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Peeta parou o carro na calçada da entrada da escola, abriu o porta malas, tirou minha cadeira e desdobrou na frente da porta do carona.

― Pronta?

― Claro que não. Me leva de volta, Peeta! Já está todo mundo olhando! ― Puxei a porta de volta logo que ele a abriu.

― E daí? ― Peeta voltou a abrir a porta.

― E daí que vai ser a maior humilhação da minha vida. Eu odeio essa cadeira.

― Você não é menos bonita ou menos capaz por causa dela. E se não enfrentar isso hoje, vai ter que fazer isso em algum momento.

― Você não entende, garoto! Não tem como entender!

― Ei! ― Peeta se agachou à frente da porta, e pegou minhas mãos. ― Eu nunca vou saber o que você está sentindo, nenhum dos idiotas dessa escola vai. Eles vão te olhar estranho, podem rir e até fazer alguma piada maldosa, mas você é maior que tudo isso, minha linda. E estarei aqui com você, como sempre estive. ― Ele beijou o dorso de minhas mãos, seus olhos azuis brilhando em minha direção com muita doçura e sinceridade.

― ‘Tá bom! Você é chato pra caralho, já te disseram isso?

― Você, um par de vezes. ― Ele riu pra mim, se erguendo. ― Me deixa te ajudar aqui. ― O garoto me pegou o colo e me depositou na cadeira. ― Agora levanta esse seu narizinho, Katniss Everdeen, e vamos enfrentar a escola. Estou bem aqui atrás de você. ― Senti um beijo em meus cabelos e abri um sorriso mínimo, que Peeta nem chegou a ver.

E tudo foi ainda pior do que previ.

Sabe quando aquele cara super lindo e desconhecido ou a menina mais gostosa da escola chega e todo mundo olha meio impressionado? Todo mundo olhou meio impressionado para mim, mas não pelos motivos citados. Alguns me olhavam com aquela cara de estranheza como se eu fosse algum tipo de E.T. Outros optaram por ignorar, sendo que maioria dos que fizeram isso, eram os meus “amigos”. Então a pior categoria, os que olhavam com pena.

― Katniss, você voltou! ― Madge pipocou animada na nossa frente. ― Ei, Peeta.

― Mad ― Peeta beijou o rosto dela, que o abraçou de lado. Eca! Apenas não se peguem na minha frente! Peraí, eles estão se pegando? ― Desculpa, acabei dormindo, não consegui te responder ontem ― ele se justificou. Alguém me tira daqui! Eles vão se pegar mesmo!

― Sem problemas, já era tarde. ― A loirinha riu para ele, então se virou para mim. ― E você, Kat, como vai? Fez uma falta danada por aqui. A torcida está um caos, Glimmer quer ficar mandando, mas todo mundo sabe como ela é péssima em criar movimentos. Sabe a sequência 3B? Ela trocou os passos três e sete e ainda adicionou uma pegada e uma dancinha muito bléh! A Cash quase deu na cara dela treino passado. E ainda teve a coreografia da música da Beyoncé que ela...

― Mad, Mad. ― Peeta fez com que ela parasse de falar a segurando pelos ombros. ― Deixa ela respirar um pouco antes de despejar tudo. ― Peeta piscou para Madge num gesto amistoso, que riu constrangida.

― E ainda tem o problema óbvio que você está ignorando, garota. ― Encarei minhas pernas. ― Peeta, você pode me levar pra minha aula agora?

― Claro. ― Ele se apressou em me tirar dali, sussurrando um “tenha paciência com ela” para a outra que ficou com cara de choro por minha resposta nada delicada. Me poupe, né? Cresce, menina! ― Precisava falar assim com ela?

― Se está achando sua namoradinha tão injustiçada, vai lá com ela, vai!

Sim, eu estava irritada. Melhor, eu estava puta da vida.

Eu não precisava que ninguém ficasse com pena, mas fingir que nada tinha acontecido também não era nada bom. E eu sabia que toda aquela animação de Madge era fingida, apenas porque ela queria ficar com Peeta de novo, e ele estava passando muito tempo comigo.

― Você tem sorte que sou muito paciente. ― Chegamos na sala, ele me colocou em frente à uma das mesas e sentou-se ao meu lado.

― Não enche o saco você também, garoto.

― Você não pode dar patadas nas pessoas assim, Mad estava sendo legal contigo. A única aqui que me perguntava de você e que te tratou igualzinho a antes. Não era isso que você queria?

― O que eu queria era poder dar uma cambalhota e não ficar ouvindo sobre movimentos e passos que não vou mais conseguir fazer ― esbravejei. ― Então, não. Não vou ficar sorrindo, acenando e batendo palminhas para sua querida Mad ou pra ninguém como uma foca adestrada.

Dessa vez ele se calou e ficou na dele o resto da aula. E aquele era só o primeiro dia de volta.

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*||*||*

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Já fazia quase dois meses que eu havia voltado, e tudo nem estava tão ruim, pelo menos estava aceitável. As pessoas naquela escola não precisaram de mais de uma semana para arrumar outra fofoca melhor para fazer, e me esquecerem em meu canto.

Melhor.

Agora eu tinha apenas Johanna, quando ela resolvia ficar em casa (fato raro) à noite e Peeta. Esse último tinha se autodenominado meu motorista, enfermeiro, monitor, crítico de cinema e televisão, e psicólogo particular. Esse tinha aprendido a lidar com todos meus estresses, respondendo a cada um deles com uma risada e uma piada ruim.

― Isso é um ultraje, uma ofensa ― reclamei, e ouvi a risada de Peeta às minhas costas, enquanto empurrava minha cadeira naquela manhã.

― Não ria, é humilhante! Eu teria que ser poupada da educação física sim! Que merda eu vou fazer lá?

― Você sempre amou a educação física, Kat ― ele ainda tentava me convencer. ― E pode ficar observando e rindo da minha completa falta de coordenação.

― Aquele professor me odeia só porque eu não quis dormir com ele ― eu ainda me queixava, então Peeta apenas me deixou quieta com minhas lamúrias.

― Eu vou me trocar, você vai ficar bem aqui? ― ele se agachou na frente da cadeira, logo após me posicionar perto das arquibancadas. ― Posso falar com o professor pra me dispensar do vôlei hoje e te fazer companhia, se quiser.

― Não, Peeta, pode ir. Me deixa aqui sozinha, lembrando do que eu nunca mais vou ser. ― Ele fez uma cara de compaixão, antes de dar um sorriso triste e beijar minha testa, indo em direção aos vestiários.

Eu absolutamente detestava quando ele me olhava daquele jeito, como se soubesse o que eu estava passando. Ninguém sabia, e mesmo os que ainda tinham interesse em tentar, nunca conseguiriam chegar nem perto de entender.

E se eu achava que estar ali era ruim, eu não sabia o que estava por vir.

Quando minhas antigas amigas da torcida, mais os meus ex peguetes do time entraram no ginásio, senti o peso do olhar de cada um em mim. Eles não riam, mas eu sentia como estavam achando ridículo o fato da aleijada da escola frequentar o jogo de vôlei. Eu me sentia ainda mais inválida, até sair dali sem ajuda seria difícil, e não pude evitar quando as lágrimas invadiram meus olhos.

Nunca havia chorado na frente dos meus colegas e agora eu apenas me debulhava em água e mais água. ⁠⁠Até vi por minha visão embaçada Peeta tentar se aproximar, mas neguei fortemente com a cabeça para que ele me deixasse.

O jogo começou agitado, e finalmente eles me deixaram em paz. Eu contava os minutos pra acabar aquela tortura, já que, além de ficar ali sem fazer nada, ainda sentia uma saudade imensa de jogar. Sempre fui boa em esportes, e aquela limitação estava me matando.

― Eu preciso de alguém pro time azul! ― o treinador gritou.

― A única pessoa livre é a Kat, mas não vai rolar, não é mesmo?! ― a voz de uma das meninas da torcida sobressaiu sobre as demais.

Porra! Agora foi maldade. Pura e cristalina maldade.

― Quem disse que não? ― dessa vez, a voz mais alta foi de Peeta. O que esse garoto acha que está fazendo? O loiro saiu do seu lugar no centro da quadra e correu até o professor, conversou com ele por apenas alguns segundos, depois veio até mim. ― Vamo, Katniss?

― Vamos pra onde, criatura? O que você pensa que 'tá fazendo?

― Não sei em que universo você acha que vou te deixar aqui, sofrendo calada. Você é melhor que isso.

― Palavras bonitas, mas você não acha mesmo que vou entrar na quadra nessa cadeira, acha?! É impossível!

― Como diria o sábio, o impossível é questão de perspectiva. ― Ele virou de costas e se abaixou na minha frente. ― Sobe nas minhas costas, serei suas pernas nesse jogo, Kat.

― Que ideia mais sem rumo, anjo.

― Você não é uma boa atleta apenas por causa das suas pernas. Você tem estratégia, raciocínio rápido e uma excelente visão. Se me guiar, podemos ganhar esse jogo sim, eu confio em você. ― Ele deu dois tapinhas nos próprios ombros, e acabei cedendo, passando os braços por eles e me erguendo para ficar agarrada em suas costas como um filhote de macaco.

― Só vou fazer isso pra provar que você é maluco.

― Você me diz quem é maluco quando ganharmos isso.

Então o que achei impossível realmente aconteceu. Eu e Peeta jogamos dois sets como uma só pessoa, e conseguimos vencer, mesmo que o cansaço e esforço tenha sido dobrado para ambos. Por algumas vezes, pensei que ele não fosse aguentar meu peso por mais um segundo sequer, mas do nada ele tirava uma força não sei de onde para continuarmos.

Ao final, até o professor estava realmente impressionado, eu tinha conquistado um pouco do respeito dos colegas de volta, enquanto Peeta atraía ainda mais os olhares femininos. Bando de cobras traidoras, um dia estão fazendo festas do pijama comigo, e no seguinte tentam me humilhar e pegar meu amigo. Garotas mais sem noção!

― Uau, nunca pensei que fosse me cansar tanto! Meus braços estão queimando! ― Ele sentou-se no chão na frente da cadeira, suor escorrendo profusamente do seu rosto. ― Mas valeu a pena, não valeu?

― E como valeu, Peeta! Você viu, eu consegui!

― Eu disse que conseguiria. ― Sorriu orgulhoso, a respiração ainda muito ofegante.

― E você viu a cara daquelas vacas, tiveram que engolir o veneno! Cuidado com elas, Peeta, posso jurar que elas fizeram uma aposta pra te pegar.

― Não se preocupe quanto a isso.

― E os meninos? Ficaram de queixo caído. A Katzinha aqui ainda manda bem! ― Comemorei com uma dancinha esquisita, jogando as mãos para o ar, e não entendi quando Peeta não ficou feliz comigo.

― Acho que você não entendeu nada, Katniss. ― O humor dele caiu sem motivos. ― Isso não deveria ser sobre você superar os outros, mas sim os próprios limites.

― Não seja um chato, Peeta, vai me dizer que não gostou da cara de desgosto das pessoas que nos diminuíram?

― Honestamente? Minha atenção estava só em você. ― Ele se ergueu do chão de um salto. ― Eu vou tomar uma ducha rápida, me espera um pouco aqui que já volto.

Não entendi o porquê do tom de mágoa na voz dele, mas os dramas e melosidades de Peeta não afetariam meu bom humor. Pela primeira vez em muito tempo, eu não me sentia uma completa inútil.

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*||*||*

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― ‘Tá me ignorando ― reclamei.

Peeta tinha que parar com essa coisa de ficar tristinho e não me dizer nada sobre. Primeiro, eu não sabia nem qual o motivo do estresse, na minha cabeça não havia feito nada que justificasse. Mas desde o jogo, ele estava mais calado que o normal, e já estava me irritando.

― Não estou.

― Claro que está ― mantive minha posição teimosa.

― Não, eu não estou. Droga, Katniss, como posso te ignorar se estou bem aqui, como sempre? ― Ok, alguém aqui está de TPM.

― Só estou estranhando seu silêncio.

― Às vezes a gente precisa ficar em silêncio para ponderar melhor as coisas ― comentou subjetivo.

― Que tipo de coisa? ― Silêncio. ― Que coisa, Peeta? ― Mais silêncio. ― Peeta!

― Nada, Katniss, não é nada. Chegamos ― anunciou quando estacionamos em frente da minha casa, e ele me ajudou a entrar. ― Amanhã te busco para irmos à escola.

― Não vai ficar e se aproveitar da comida da minha casa? ― questionei em tom de brincadeira, mas muito surpresa. Nossas tardes já haviam virado tradição.

― Não hoje, tenho dever de casa.

― Mas sempre fazemos juntos.

― Não hoje ― repetiu e já foi saindo. ― Até mais, senhor Everdeen ― Peeta se despediu do meu pai, que eu ainda nem havia notado estar conosco na sala.

― E ele não vai ficar hoje?

― Esse garoto ‘tá estranho. ― Franzi o olhar para o carro saindo, e logo meu pai veio fechar a porta, que o loiro nem se deu ao trabalho de encostar.

― Me diz, o que você fez com ele?

― Eu? ― E não é maravilhoso quando seus pais preferem seus amigos a você? ― Nada, é óbvio. Ele que ficou estressadinho depois da educação física de hoje.

― Você foi à educação física?

― Eu fui, e foi incrível, pai! ― Meu pai empurrou a cadeira até perto do sofá e sentou-se na pontinha, pronto para ouvir meu relato. ― No início não, o pessoal ficou com aquelas caras, mas depois eu joguei, dá pra acreditar? ― contei animada.

― Me explica isso direito, filha.

― Peeta me levou nas costas e ganhamos. Todo mundo ficou babando com minha superação, aquelas vacas da torcida morrendo de inveja. Foi maravilhoso passar na cara de todo mundo que eu não sou a inútil que eles pensam!

― Espera um segundo. Peeta jogou uma partida de vôlei com você nas costas?

― Foi, mas o senhor não está pegando a melhor parte. Eu superei todo mundo, até o professor ficou impressionado!

― Por favor, filha, me diz que você não falou essas coisas pro coitado do Peeta.

― O que é que tem? Ele ainda veio com uma de “você tem que superar os próprios limites e não os outros”, besteira de Peeta. ― Abanei com as mãos dando pouca importância ao fato. ― E quando eu fui mostrar para ele como era bom superar os outros, o garoto só ficou dizendo que não estava nem aí, que só estava atento a mim. Me diz se tem alguém mais dramático que ele?

― Ah, filha... Como que eu vou te dizer isso? ― Ele juntou as duas mãos na frente do rosto, parecendo ponderar sobre o modo de falar algo. ― Peeta é apaixonado por você. ― Abri a boca surpresa.

Ele havia se declarado na festa da Cash, mas foi entre gritos e brigas, e depois do acidente, o assunto não havia mais sido tocado. E já faziam meses, ele havia superado. Ou não?

― Pai, eu não vou falar disso com você.

― Nem precisa, também prefiro não saber o que você faz com esses garotos por aí. ― Ele fez uma cara de nojo, que me fez rir. ― Só escuta uma coisa: você despreza esse garoto, trata ele pior que qualquer um, enquanto ele faz tudo por você, passou semanas de plantão no hospital te vendo apenas por uma janelinha de vidro, tem sido suas pernas há meses.

― Onde está querendo chegar, pai?

― Não estou dizendo para você namorar ele, mas ofereça algo de volta, carinho, atenção, sua amizade. Você gosta pelo menos um pouco dele, não ficariam nesse grude. Por favor, perceba que eu não estou falando de nada sexual aqui.

― Eca, vamos mudar de assunto? Podemos, por favor?

― Claro. Só uma última coisa: ele está se cansando. Faça algo, ou vai perdê-lo.

― Anotado.

― Ótimo, agora podemos voltar ao assunto de como minha filhinha virou campeã de vôlei do colegial?

Sorri e voltei a contar minha história.

Era tão bom conversar com ele, mas minha mente já estava em outra coisa. Não fazia muito sentido na minha cabeça as coisas que meu pai falou sobre Peeta, mas talvez ele estivesse certo. E no fim das contas, estava até sendo legal passar tempo com meu amigo, e eu não estava mesmo afim de perdê-lo.

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*||*||*

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Katniss, aconteceu alguma coisa? ― a voz de Peeta do outro lado da linha saiu alarmada. ― Você ‘tá bem?

― Estou, anjo, por que a pergunta?

Meu Deus, Katniss, são três da manhã! Volta a dormir, boa noite.

― Garoto, não desliga! Tenho que falar um negócio com você.

Não pode ser amanhã? Daqui a pouco eu passo na sua casa pra gente ir para o colégio, daí você fala.

― Quer sair? Tipo, agora? ― joguei a pergunta antes que ele desligasse, mas não houve resposta nos segundos seguintes. ― Peeta, você dormiu?

Por quê?

― Não posso querer sair com meu amigo?

Não estou te entendendo, Kat.

― Vem aqui, garoto! Deixei uma chave reserva debaixo do tapete, quando chegar pode subir direto, em silêncio. Ah, traz teu material da escola, vamos ficar direto. ― E desliguei, antes que ele argumentasse. Meu pai me disse para ser amiga, não quis dizer uma amiga normal.

Não demorou mais de meia hora e já ouvi a porta da frente sendo aberta, e logo depois a do meu quarto, Peeta entrando com a maior cara de sono.

― O que deu em você?

― Acho que merecemos um passeio, oras. ― Ele ainda me olhava sem dar o mínimo crédito. ― Qual é, Peeta, se anima!

― ‘Tá, onde quer ir?

― Eu não vou te dizer, ou você não vai.

― Mais um motivo para eu saber ― falou desconfiado.

― Confia em mim, ok? Não vamos ser presos se você fizer as coisas direitinho.

― Pres... Como assim, Katniss?

― Fala baixo, criatura! Vem, me ajuda a ir pra cadeira.

Ainda demorou alguns minutos para convencê-lo, mas logo estávamos no carro, seguindo pelo caminho que eu indicava. Já eram quase quatro da manhã quando paramos em frente à escola.

― Se tivesse dito que apenas queria estudar mais, teríamos arrumado outro horário, Kat.

― Quem aqui ‘tá falando em estudar, meu anjo? ― Quase ri da cara confusa que ele fez. ― Vamos invadir essa escola!

― Não sei se isso é bom. Podemos fazer uma coisa menos ilegal? ― sugeriu com uma careta.

― Deixa de bobeira, Peeta, vai ser divertido! Pega. ― Joguei pra ele um molho de chaves. ― Consegui isso ano passado, roubei do zelador e fiz umas cópias. Usava para festinhas com a galera.

― Sou um cúmplice agora.

― Deixa de drama, e vamos logo! Daqui a pouco amanhece.

Ele até estava tenso no início, mas logo relaxou. Todo mundo tem uma veia criminosa, no fim das contas. Foi divertido passear pelos corredores vazios, trocar e bagunçar papeis dos professores chatos, até arriscar algumas cestas no basquete na quadra completamente vazia. Sobre esse último item, eu mais assisti Peeta brincar do que fiz qualquer coisa, já que ele era surpreendentemente bom, e deveria mesmo estar no time.

― Você tem que entrar no time sim! ― insisti mais uma vez.

― Aqueles garotos não gostam de mim, Kat. Não estou a fim de estresse.

― Eles que perdem. ― Dei de ombros. ― Quer parar um minuto e descansar?

― Não, estou bem.

Peeta me carregava nas costas enquanto subíamos as escadas que davam para o telhado, nos deparando com as luzes róseas e azuis clarinho que já mostravam o início daquele dia. Mas já?! Passou mais rápido que calculei, deveria ter acordado Peeta mais cedo.

― Ali, me ajuda a sentar na borda.

― Você não vai se jogar ou coisa assim, vai? ― Sorri.

― Claro que não, garoto. Tem cada ideia.

Assim que eu já estava bem posicionada, ele sentou-se ao meu lado, fitando algum ponto distante no horizonte. Olhei para ele demoradamente pela primeira vez.

O ventinho frio da manhã fez eu me aconchegar nele, abraçando seu braço, observando seus cabelos loiros ondularem com a brisa e os olhos azuis parecerem ainda mais claros, um azul cristalino que eu ainda não tinha visto em ninguém, circundados pelos longos e claros cílios.

Meu Deus, Peeta era lindo!

― Essa sua ideia foi divertida, apesar de meio... ― Ele virou o rosto para mim de repente e me pegou o encarando. ― ...ilegal. ― Peeta franziu a testa e piscou três vezes seguidas, e eu me vi corando de vergonha. Há quanto tempo eu não corava de vergonha por qualquer coisa?!

― Er, é bom ser meio doido às vezes ― justifiquei com um sorriso pequeno.

― Por que ‘tá fazendo isso? ― a pergunta dele saiu em um sussurro, e mordi o lábio percebendo que ele estava perto demais.

Não, Kat, não vá por esse caminho. Não com ele.

Desviei o olhar para o horizonte, que Peeta encarava anteriormente.

― Ah, sei lá. É bom estar com você. ― De fato, era verdade.

― Só por isso? ― Senti um arrepio percorrer minha coluna, quando ouvi a pergunta, mas não tive coragem de olhá-lo. E aquilo já estava começando a ficar estranho.

― Quer saber, eu trouxe café da manhã! ― cortei totalmente o clima, tentando soar animada, vendo em seus olhos a leve decepção. ― Está na minha mochila. Um brinde? ― Levantei o potinho de iogurte que tinha nas mãos, entregando outro a ele.

― Claro. A que quer brindar? ― O loiro voltou ao seu modo sempre feliz.

― À nossa amizade. Obrigada por ela e por cuidar de mim, anjo. Esse apelido que te dei na terceira série nunca fez tanto sentido ― Não posso negar que eu até eu me surpreendi com minhas palavras. Eu nunca fui muito de dizer obrigados.

― Não precisa agradecer, Kat. ― Comecei a tomar o primeiro gole. ― Tenho certeza que Johanna também seria uma ótima enfermeira, não? ― Meu sorriso escapou sem aviso e acabei cuspindo parte do iogurte que tinha na boca, o líquido cor de rosa escorrendo pelo meu rosto.

― Olha o que você fez. ― A intenção era brigar com ele, mas eu continuava a rir.

― Foi mal, eu te ajudo. ― Peeta virou-se para ficar em frente a mim e passou o polegar pelo meu queixo. ― Deixa eu só... ― Prendi a respiração quando senti seus lábios em minha bochecha.

Não era primeira vez que ele beijava meu rosto, mas nunca foi tão perto da boca. E com certeza, eu nunca havia sentido aquilo antes, nem sabia que o coração podia acelerar tanto, em tão poucos segundos.

― Morango ― ele disse quando se afastou apenas alguns centímetros, e seus olhos passeavam dos meus para minha boca, eu completamente hipnotizada com a língua dele passando pelos próprios lábios.

― Hm hum ― murmurei.

Jesus amado, o que está acontecendo aqui?

Peeta buscou um consentimento em minhas orbes cinzentas, mas eu apenas pisquei repetidas vezes, sem saber bem como reagir. Sua mão se ajustou melhor ao meu rosto e mais uma vez ele foi rompendo a distância que nos separava. Foi no último milésimo de segundo que criei forças para desviar e o beijo acabou atingindo novamente minha bochecha.

― Desculpa, eu não... Foi mal.

― Tudo bem. ― Dava para sentir que ele estava morrendo de vergonha, assim como eu. Ninguém sabe exatamente como chegamos naquela posição, mas era hora de voltar à realidade. ― Acho melhor descermos. O pessoal que trabalha aqui já deve estar chegando.

― Tem razão. Vamos?

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*||*||*

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Johanna gargalhava, e muito. Até tentei bater nela, mas a diaba saiu de perto de mim. Queria correr agora só para dar um belo de um chute no traseiro da minha prima.

― Já me arrependo de ter de contado, isso não é piada!

― Meu doce, você ficou com seu amigo nerd, alguém que não dava a mínima uns meses atrás. Essa é a piada do século! ― As risadas dela continuaram a ecoar pelo quarto.

― A gente não ficou, eu disse apenas que quase nos beijamos, é diferente.

― Só me ilumina mais um pouquinho sobre esse não-beijo. Foi iniciativa de quem? O garoto finalmente tomou uma atitude?

― Eu sei lá de quem foi a iniciativa! ― exclamei. ― Em um segundo tinha iogurte por toda minha cara e no seguinte já era a boca dele. Vai saber como ela foi parar lá. ― Ela fez um biquinho e começou a bater o indicador no queixo, como se analisasse algo. Lá vem bomba!

― Você está gostando dele, Kat, tipo apaixonada? Porque você sabe que ele está, e não é de hoje.

― Claro que eu gosto dele, mas não desse jeito. Somos amigos há muito tempo.

― Você não “quase beija” seus amigos. ― Fez sinal de aspas. ― Você beija seus peguetes, os caras que está a fim e até seus inimigos. Não os amigos.

― Isso não faz sentido, Jo.

― Pra mim faz bastante, o que é uma pena. Ainda queria pegar aquele garoto de jeito, mas com vocês tendo uma coisa, ficou mais complicado.

― Não estamos tendo uma coisa ― neguei.

― Vocês já conversaram sobre o que aconteceu?

― Deus me livre! Se ele gosta mesmo de mim, como todo mundo diz, não quero magoar o coitado. Ele é uma boa pessoa.

― Hm ― murmurou misteriosa.

― O quê? ― Eu odiava quando ela vinha com indiretas.

― Nada, Katniss, nada. Só toma cuidado pra não sair dessa magoada também, viu? Sou uma péssima conselheira amorosa, não vou saber lidar.

― ‘Tá bom, Jo. ― Consultei o relógio, já eram quase dez da noite. ― E sua festa?

― Eita, é mesmo! ― Ela ficou de pé, ajustando o vestido preto e curto. ― Tem certeza que não quer vir?

― Passo ― falei com uma careta. ― Peeta não vai nesses lugares, e ninguém mais tem paciência comigo e essa maldita cadeira.

― Hm.

― Johanna Mason, fala as coisas diretamente, pelo menos uma vez!

― Quer as coisas diretas? ― questionou já com a mão na maçaneta. ― Você nem percebeu, mas está se apaixonando. O garoto está sob sua pele, prima, não dá mais de tirar. Pronto, falei. Até mais.

Ela saiu me deixando boquiaberta. Uma coisa era Peeta, outra bem diferente era eu ter esses sentimentos. Mas agora sozinha, eu tinha que admitir eu quis beijá-lo naquele momento. E aquilo me assustou como o inferno.

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*||*||*

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Olhei para trás e para cima, tentando ler um pouco da expressão de Peeta, mas ele ainda estava bem sério, atento à frente enquanto empurrava a cadeira.

― Sorvete? ― ele perguntou quando me ajudava a entrar no carro.

― Hambúrguer e milk shake.

― Melhor ainda.

E foi o diálogo mais longo que tivemos desde o telhado, há quase uma semana.

Quer dizer, ainda não nos desgrudávamos, mas sem muito papo. E ainda estava constrangedor. Mas essa conversa não passaria de hoje.

― Obrigada ― agradeci, entregando o cardápio à garçonete. ― Tem certeza que só vai querer o chocolate quente? Não vou dividir minha batata.

― Talvez eu roube uma ou duas. ― Peeta piscou para mim em tom de brincadeira e acabei rindo constrangida, sentindo meu rosto pinicar.

Isso tinha que parar! Circulação idiota!

― Precisamos conversar, anjo.

― Eu já me desculpei, Katniss ― ele falou baixinho, também corando um pouco. ― Mas, na boa... Não me arrependo.

― Peeta, não podemos.

― Por que não? Você sabe como eu me sinto sobre você, princesa.

― É complicado.

― Você é a líder de torcida e eu seu amigo nerd trouxa, certo? ― Ele pegou minhas mãos entre as dele. ― Katniss, as coisas mudaram muito, nós dois mudamos.

― Sim, mudaram. E o que te faz ainda querer algo comigo, garoto? Depois de tudo que eu fiz, do que você viu aquela noite, do modo como eu venho te tratando! ― O semblante dele ficou pesado, e Peeta comprimiu os lábios numa linha fina.

― O que está em questão aqui são os seus sentimentos, não os meus.

― Não há... Essa possibilidade não é... ― gaguejei.

― Você quis me beijar naquele telhado, não quis? ― Prendi o ar. Merda, como eu quis! ― Fala, Kat! Você quis tanto quanto eu, sua cara diz isso.

― Eu só...

― Os pedidos de vocês, crianças. ― A simpática garçonete quarentona, chegou com nossa comida, me salvando de uma resposta.

Comemos em silêncio, trocando um ou outro olhar esquisito. Ao final, Peeta pagou a conta, e enquanto esperávamos o troco, ele saiu de seu lugar à minha frente, sentando-se ao meu lado no banco.

― Só pensa um pouco sobre.

― Peeta, já disse... ― Não era o que minha boca falava, mas um sim foi como meu corpo reagiu ao seu toque de sua mão em meu rosto. Como as coisas viraram tão ao avesso em apenas uma semana? ― Viu? Você reage a mim, Kat!

― Você é bonito, é legal e tem sido meu melhor amigo. Mas gosto de você demais para dar esperanças de algo que não sinto.

― Então é um não definitivo? ― a pergunta dele saiu triste, o que partiu meu coração. Mas que droga!

― Sinto muito.

― Tudo bem, você não é obrigada a nada. ― Peeta voltou ao ser local de origem, e logo seu troco chegou. Ele me colocou na cadeira e saiu empurrando para fora da lanchonete.

― Ei ― o chamei segurando em sua mão quando chegamos no carro. ― Não vou perder você, vou?

― Se quiser me perder, vai ter que ser bem mais enfática que isso, princesa. ― Peeta beijou meus cabelos. E por enquanto, ficamos assim.

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*||*||*

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― Para, cansei de jogar! ― Joguei meu celular para o lado e cruzei os braços fazendo birra, ouvindo a risada de Peeta ecoar pelo quarto.

― Você propôs o jogo, Kat ― ele argumentou.

― Eu sei, e estou despropondo. Sou péssima nisso!

― Que nada, deixa de coisa. Me dá esse telefone aqui!

Eu tinha encontrado um jogo de amizade na internet e achei que seria divertido fazer com Peeta. Eram feitas várias perguntas e as pessoas em questão diziam quem era o mais entre os dois. Acontece que aquilo só estava mostrando como ele era incrível.

Depois daquela tarde na lanchonete, as coisas voltaram ao normal, ou pelo menos foi o que eu achei. Ele lidou bem com o fora que havia levado e ainda era o melhor amigo do mundo. Só que esse comportamento não estava fazendo com que eu pensasse menos no assunto, ao contrário disso.

Por muitas vezes, me peguei tentando voltar atrás e simplesmente nos dar uma chance, mas então lembrava dos motivos que eu havia negado. Éramos ótimos amigos, mas seríamos um péssimo casal, não daria certo. Ponto final. Mas era inevitável não gostar de alguém tão apaixonante.

― Próxima pergunta: o mais paciente? ― ele começou.

― Você, é claro. ― Rolei olhos.

― Mais bem-humorado?

― Você.

― Mais gentil? Mais educado? Mais carinhoso?

― Você, você e você! ― retruquei. ― Tem certeza que quer continuar?

― Esse jogo está errado ― comentou com a testa franzida. ― Ah, aqui uma boa. Qual o mais divertido? Você, óbvio.

― Pelo menos isso.

― Mais ciumento? Você também, olha que coincidência ― o loiro brincou, e fiz uma careta em discordância. Tudo bem que não era fã das inúmeras filhas da mãe que se atiravam nele, mas eu só estava protegendo o mau agradecido.

― Mas nem fodendo, você é mais ciumento.

― Katniss, você olha feio para todo mundo que me tira dois segundos de perto de você, princesa. E não vamos nem falar do caso Mad.

― Aquela sua amiga é uma vadia toda querendo ser boa moça. Me poupe, anjo! ― Ele pareceu prestes a falar algo, então apenas negou com a cabeça parecendo desistir.

― Já falei que amo quando usa o “anjo” para diminuir o fato de que está brigando comigo sem motivos?

― HA HA HA. Engraçado ― ironizei.

― Ei, sem estresses. Estamos quase batendo nosso recorde sem brigas ou discussões, não vamos desistir agora! ― Era verdade, estávamos numa maré boa há semanas. ― E você é a divertida aqui.

― Tanto faz, mas odiei esse jogo do mesmo jeito. ― Peguei o celular de volta. ― Só provou que você é um príncipe encantado e eu sou um lixo humano.

― Ai, que exagero. Não perguntaram aqui, mas você é mais determinada, mais esperta e mais forte. E mais bonita também. ― É justamente disso que estou falando. Quando se dá um passo no caminho para o apaixonamento por Peeta Mellark, não se pode simplesmente voltar. ― Cadê meu sorriso de dois bilhões de dólares? ― Tentei manter a postura séria, apesar de não estar nem pouco chateada, mas como não ri, ele veio com a ideia estúpida, que logo li em seus olhos.

― Não.

― Sim. ― Ele se engatinhou até onde eu estava sentada, com as costas apoiadas na cabeceira da cama. ― Cócegas!

― Peeta, para! ― comecei a gritar em meio às risadas involuntárias. ― Sério, isso não tem graça, anjo! ― Revidei tentando fazer cócegas nele também, mas não tinha como ganhar do garoto que tinha o dobro da minha força.

― A mais divertida, como eu disse.

Sorri para ele, e foi quando percebi como acabamos parando depois da brincadeira. Eu totalmente deitada e descabelada, ele em cima de mim, apoiando o peso com um dos braços, e a apenas alguns centímetros de distância. Qualquer pessoa que me conheceu quase um ano atrás apontaria motivos completamente diferentes se me encontrasse naquela posição com qualquer garoto.

― Preciso te falar uma coisa, então vou aproveitar que seu humor subiu ― Peeta falou baixinho, tirando os cabelos que estavam em meu rosto. Oh, Deus, lá vem!

― Hm? ― O incentivei a continuar, meu coração indo a mil.

― Vou convidar Mad pra sair nesse fim de semana. ― Ele fez uma careta apreensiva e levou uns três segundos para que eu entendesse.

― O quê? ― Empurrei seu corpo para longe de mim, que se sentou à minha frente.

― A gente tem ficado essa semana, e bem... Você já me deu sua resposta. ― Oi? Muito informação, muita informação.

― E isso lá é justificativa pra sair pegando a primeira que te quer? Fala sério, Peeta, você merece melhor.

― Só estou te falando pra você não saber por outra pessoa ou me xingar porque não te conto as coisas. Não preciso de permissão, e não quero começar uma briga.

― Tarde demais, considere a briga começada.

― Droga, Katniss, não dá pra te entender! Você nos juntou!

― Foi quase em outra vida, as coisas mudaram ― me justifiquei.

― Não o bastante. ― Ele ficou de pé me encarando.

Observei seu semblante mudar e várias expressões passaram por seu rosto em questão de segundos. Primeiro ele estava revoltado, depois pensativo, então determinado.

― Quer saber, já que estamos brigando mesmo, pelo menos agora vou te dar um bom motivo.

Ele deu apenas dois passos e já estava com as mãos em meu rosto e os lábios nos meus. Sim, Peeta Mellark estava me beijando e eu congeladinha em choque. Não foi um beijo longo, ou intenso, mas foi bom, muito bom. Ele se afastou apenas um pouco e esquadrinhou todo meu rosto vermelho com o olhar, ainda com as mãos emoldurando minha face.

― Não vai brigar? ― me desafiou arqueando uma sobrancelha, e recebeu apenas meu silêncio e minha mania estúpida de morder o lábio. ― Ótimo.

Dessa vez o beijo foi tudo, menos calmo. Peeta tinha uma das mãos em minha cintura e a outra angulando meu pescoço para ele, e quando dei por mim já retribuía. Quem eu queria enganar? Peeta sempre esteve certo e eu queria aquilo tanto quanto ele, minha língua na boca do garoto provava isso para quem quisesse ver.

O cheiro dele nunca esteve tão presente, o gosto da boca dele era melhor do que jamais imaginei que seria, os braços dele me sustentando. Eu poderia ficar assim para sempre, e por mais idiota que pudesse parecer finalmente assumir, eu precisava de Peeta mais do que qualquer um. Eu jamais conseguiria passar por aquilo sem ele.

― Eu amo tanto você, princesa ― ele finalmente disse as palavras, com a boca quase colada na minha, seus lábios me fazendo cócegas gostosas pela proximidade.

Então acordei.

Existia um motivo para não estar com ele, e, diferente do que vivia afirmando para mim mesma, não era ele. Meu Deus, Peeta era perfeito para mim. O problema ali era eu.

Eu era a pessoa que não iria para a universidade, não conseguiria dirigir um carro que não fosse adaptado, nem caminhar até ele em um altar. Não conseguiria correr com nossos filhos, ou fazer um sexo satisfatório. Eu era a incompleta, a imperfeita, a que o atrasaria. E ver Peeta ter que abrir mão de coisas que ele merecia apenas para estar ao meu lado era egoísmo demais. E eu poderia ser egoísta com todos, menos com ele, o garoto merecia o melhor.

Foi aí que reuni forças e praticamente o expulsei do meu quarto. O foda de ter um melhor amigo e conhecê-lo tão bem, era que eu sabia exatamente o que dizer para machucá-lo ao ponto de fazê-lo desistir de mim. E no fim das contas, eu havia conseguido, apenas alguns minutos antes de conseguir sentir, nem que só um pouquinho, os músculos das minhas pernas.

Os médicos diziam que era possível, meus pais e Peeta viviam insistindo para que eu frequentasse a fisioterapia e o acompanhamento com a psicóloga. Até tentei por duas sessões, mas na minha cabeça era perda de tempo, negação e sofrimento desnecessário. Até hoje. E se eu poderia sentir um espasmo que seja nas pernas, poderia voltar a andar, e ser quem Peeta merecia que eu fosse. Só precisava consertar as coisas.

.

*||*||*

.

Eu estava ansiosa como há tempos não me sentia, enquanto Jo empurrava minha cadeira pela rampa principal de entrada.

Hoje eu veria Peeta depois de três dias. Desde que o mandei embora naquela noite, e voltei a sentir espasmos nos músculos das pernas, eu não o vi mais. Ele não atendia minhas ligações ou ia à minha casa, e eu estou tento minhas próprias ocupações refazendo os exames. Mas tenho certeza que, quando nos vermos hoje, será como se nenhum tempo houvesse passado, lhe contarei as novidades e nos beijaríamos. Eu não seria mais um fardo, voltaria a ser a Katniss que todo mundo, inclusive ele, sempre amou.

― Você precisa mesmo fazer as pazes com Peeta. Não tenho saco pra te dar carona todo dia ― Jo reclamou em tom de brincadeira.

― Relaxe, vou resolver isso hoje ― afirmei convicta.

A primeira sensação quando o vi, foi de pura alegria. Eu não fazia ideia o quanto ele era importante e me fez falta nos dias que estava longe. Talvez eu tenha me acostumado com o garoto loiro sempre andando atrás de mim, cumprindo minhas vontades. Mas mal pude calcular a surpresa que se seguiu, quando o vi, deitado em um dos bancos do pátio, no colo de Madge, recebendo um cafuné em seus cabelos.

― Que merda ‘tá acontecendo aqui? ― Não contive as palavras que saíram da minha boca diante da cena.

― Ah, eles podem ser só amigos. ― Foi apenas o tempo do Johanna terminar a sentença, que Madge já se inclinava sobre Peeta, os dois trocando um selinho demorado, o mais sem graça que já vi na vida. ― Ou não ― minha prima se corrigiu.

― Esse garoto só pode estar de brincadeira com a minha cara! ― Comecei eu mesma a arrastar a cadeira na direção deles.

― Que é isso, Peeta? Ficou doido? ― Ele tomou um pequeno susto com minha presença, mas logo em seguida, tirou o olhar de mim, fingindo que eu sequer estava ali.

― Hey, Kat ― Madge cumprimentou.

― Eu falo com você depois, vadia, meu papo agora é com esse traidor aqui. ― Apontei o dedo pra ela e depois pra ele.

― Madge, vamos sair daqui? Ela parece que vai fazer um escândalo.

― Claro que vou fazer escândalo! A gente tem uma coisa, e você fica se atracando com essa daí.

― Peeta, é melhor vocês conversarem.

― Isso, queridinha, vai saindo. Sabia que a gente deu o maior pega uns poucos dias atrás, e ele se declarou pra mim? De novo? ― A garota não pareceu se surpreender ou se incomodar nem um pouco com minhas palavras, apenas apertou a mão dele mais forte.

― Ela não vai sair, nós dois vamos. Não tenho nada pra falar com você, Katniss.

― Mas aconteceu uma coisa...

― Não me interessa! Nada sobre você me interessa mais, e nem vice-versa, você deixou bem claro da última vez que nos vimos. Então se me der licença, tenho que ir pra longe de você. Seu coração de gelo está me fazendo ficar com frio.⁠⁠⁠⁠ ― Ele saiu quase arrastando Madge para longe de mim, tomando um caminho pelas escadas que eu não podia segui-lo.

Ok, talvez eu tivesse falado besteira, mas estava mesmo tentando me corrigir aqui. Agora eu sabia que amava aquele garoto, mas talvez tenha sido tarde demais. Até o sempre tão paciente Peeta Mellark tinha enchido o saco e pelo jeito eu não tinha mais ninguém, além da minha família.

Agora havia a esperança de voltar a andar, mas agora havia perdido meu anjo. É, Kat, quando você acha que não pode se foder mais, a vida vem e mostra que sim.

.

*||*||*

.

Quem disse que o tempo era o melhor remédio, com certeza foi uma pessoa que se ferrou bastante em algum relacionamento, e tirou essa conclusão depois que as coisas foram melhorando após o sofrimento em questão.

Nunca fui bem adepta dessa teoria, eu era uma garota imediatista, apressada e nem um pouco paciente. Queria as coisas na hora, sem enrolação ou papinho furado, mas essa cadeira me ensinou que nem tudo era assim.

Então depois de levar gelo da pessoa que se tornou a minha favorita do mundo todo pelo resto da semana, eu tinha uma decisão a tomar. Ou voltaria para o quarto, choraria e entraria em depressão, ou ergueria minha cabeça, e daria os próximos passos, literalmente falando.

Apesar de estar bem mais maleável, eu ainda era uma pessoa teimosa, então, obviamente, escolhi a opção número dois. Sim, eu voltaria a frequentar a psicoterapia. Sim, eu me esforçaria ao máximo na reabilitação. Sim, eu seria a pessoa que Peeta merecia.

.

*||*||*

.

Meu coração parecia que ia sair pela minha boca a qualquer momento. Alisei novamente o tecido brilhante da saia do meu vestido, mexendo os pés nervosamente dentro das minhas sapatilhas.

― Tem certeza que não quer que eu fique com você, filha? ― meu pai perguntou, empurrando a cadeira em direção à rampa de entrada do ginásio.

― Pelo amor de Deus, pai. É meu baile de formatura do ensino médio, juro que não precisa!

― E se você precisar de ajuda?

― Jo está aqui.

― À disposição, tio ― minha prima ergueu os olhos do celular para fazer uma continência. ― Pode ir, eu cuido da Katizinha.

― Qualquer coisa me liga, princesa. ― Recebi um beijo na testa antes que ele voltasse em direção ao local onde havia deixado o carro.

― Você vai desaparecer logo que entrar naquela quadra, não vai?

― Me conhece tão bem. ― Ela riu. ― Ei, mas se precisar é só chamar. Eu vou ficar chateada se você me interromper meu último esquema do colégio? Claro que vou. Eu vou encher seu saco e ser a pior companhia do mundo? Claro! Mas é pra isso que servem as primas, não é?

― Por mais que eu te ame, prima, mas meu assunto essa noite é com outra pessoa. ‘Tá liberada.

― Você é a melhor! ― Antes que eu pelo menos pedisse que ela me levasse para dentro, a maluca já estava longe, gritando cumprimentos para alguns alunos que também chegavam. Johanna Mason era doida e nunca mudaria. Ou talvez mudasse, eu era a prova viva ali que as pessoas podiam sim se superar e virar algo bem melhor do que era antes.

Ignorei os olhares de pena sobre mim e segurei as rodas da cadeira. Teria que fazer isso sozinha, no fim das contas, se queria ver Peeta. Eu só não contava que seria tão difícil. Aquela escola precisava mesmo dar uma caprichada na questão da acessibilidade.

― Uma ajudinha? ― A voz soou atrás de mim, e eu quis me esconder no primeiro buraco. De todas as pessoas, justo essa?

Sorri amarelo para uma simpática Madge, que estava deslumbrante em um vestido branco. Mas ao contrário do que achei, ao seu lado não estava Peeta, mas um moreno muito bonito, um completo estranho.

Eu sabia que havia sido rude demais com a garota, sem razão. Peeta não era propriedade minha, e estar comigo ou com ela deveria ser uma escolha dele.

― Claro ― concordei com o auxílio, travando uma luta interna para não perguntar pelo meu amigo. Tudo bem que eu não vinha à escola há alguns meses, mas namorados ainda vinham ao baile juntos, certo? E as redes sociais me mostravam que os dois estavam juntos sim, firmes e felizes.

― Você está maravilhosa, Kat.

― Disse a rainha do baile ― retruquei sorrindo com o elogio. ― Ele é seu primo ou coisa assim? ― Não resisti à curiosidade e apontei a cabeça para o garoto que apenas nos acompanhava calado.

― Que falta de educação a minha. Thom, essa é a Katniss que te falei. ― Oi? Quando eu virei assunto nas rodas de conversa da família da Madge? ― Kat, Thom é meu namorado. Ele nunca estudou aqui, por isso você não conhece. Nos conhecemos numa feira interescolar de ciências e tecnologia.

Eu não mais prestava atenção nas explicações da loirinha, já que apenas a palavra “namorado” ficava se repetindo. Como assim? E Peeta?

― Amor, você dá uma licencinha? Preciso fofocar um pouquinho com a Katniss, a gente não se vê faz um tempão. ― Eles trocaram um beijo rápido, e ele entrou no salão de festa. ― Sinto que preciso explicar algo.

― Não, claro que não. Você não me deve satisfações da sua vida.

― Mas seu queixo caído meio que exige isso. ― Ela deu um riso solto. ― Eu nunca namorei Peeta.

― É sério, não precisa explicar nada.

― Eu e ele somos amigos, fomos os primeiros um do outro. E também fomos um bom estepe um para o outro por um tempo. ― Se meu queixo já estava aberto, agora ele foi ao chão. Estepe? ― Você acha que foi a única a se decepcionar com Gale esse ano? Depois do seu acidente, as coisas continuaram a acontecer por aqui.

― Você e Gale?

― Ele é um babaca, o rei deles, mas sabe como conquistar uma garota, você bem sabe. Mas ele também é muito bom em quebrar corações. Peeta, ao contrário, é bom em consertá-los. Até pensamos em tentar a coisa do romance, mas nossa amizade colorida não pôde ir além. Ele está com a cabeça em outra.

Outra?

Eu sabia que não ia demorar mais tanto tempo pra todo mundo descobrir o que eu levei a vida toda sem enxergar, mas que tinha visto e me apaixonado no último ano.

― Você deveria dizer a ele o que sente. Não somos amigas, eu sei, mas eu sou metida o bastante para arriscar te dar um conselho.

― Ele veio? ― Madge abriu um sorriso de “eu sabia”. De que adiantava negar qualquer coisa à essa altura do campeonato?

― Não queria. Mas um passarinho me contou que você estaria aqui, então dei meu jeitinho naquele cabeça dura. Obviamente, ele não sabe. O teimoso ia ficar meio puto por eu e sua prima agirmos pelas costas dele. ― Jo? Quando eu achava que não dava pra ficar mais estranho.

― Você pode me ajudar a entrar?

― Vai ser um prazer.

Devido ao meu pequeno atraso, o local já estava cheio e uma música muito alta já tocava. Esquadrinhei o local em busca de Peeta, mas não o vi. Estar sentada enquanto todos dançavam em pé dificultava ainda mais meu trabalho.

― Posso procurá-lo pra você ― Madge ofereceu.

― Não precisa, pode ir curtir a festa. Você precisa circular por aí, se quiser votos pra ser a rainha.

― Isso é bobagem, Katniss. Se quer ouvir minha opinião, você merece essa coroa bem mais. Ninguém teve maior superação nesse último ano que você.

― Mas superação não é critério. Beleza, gentileza e simpatia é, por isso você merece.

― Obrigada, significa muito vindo de você. ― Sorri pra ela. Como pude passar tanto tempo detestando aquela garota, a menina era adorável! Peeta merecia alguém exatamente como ela. Afastei o pensamento, ou daria meia volta e iria embora naquela hora mesmo.

― É sério, pode ir curtir sua festa e seu namorado. Também vou dar umas voltas por aí.

― Ok, então. A gente se fala mais tarde.

Depois de um aceno, ela se afastou, encontrando o tal de Thom logo à sua frente. De fato, tentei “dar uma circulada” pela festa, mas tudo era difícil com minhas limitações. Resolvi ficar parada mesmo perto da mesa dos docinhos. Peeta amava doce, eventualmente ele passaria por ali em algum momento da festa.

― Olha só, se não é a estrela cadente mais famosa dessa escola. ― Fechei os olhos com força. E essa festa só fica melhor e melhor, pensei ironicamente. ― Como vai, Catnip?

― Gale, não estou no clima. ― Nem me dei ao trabalho de olhá-lo para responder às piadinhas. A ciência de que ele havia magoado até Madge, me dava ainda mais raiva. Eu era uma vadia, provocava e aprontava, mas a loirinha era um poço de gentilezas e bondade.

― Qual é, morena?! Por que me odeia? ― Ele segurou a minha cadeira e a virou pra ele.

― Você é um babaca bem fácil de odiar.

Ouch! Assim você me magoa. ― Encenou com a mão no coração.

― Gale, estou indo. ― Tentei me afastar, mas ele colocou o pé no caminho, para impedir que eu saísse. ― Porra, garoto, sai da frente!

― Só me tira uma dúvida, Catnip. Esse seu estado é permanente? Não me leve a mal, mas você não está menos gostosa a cada dia que passa, e essa cadeira é meio sexy.

Comprimi os lábios com força. Que pessoa mais estúpida, nem acredito que um dia gostei dele, que quis namorá-lo. Parecia outra vida. Agora tinha que ouvir essas cantadas absurdas e sem noção? Não, eu não tinha!

Estalei um tapa em seu rosto o surpreendendo, fazendo o moreno recuar e chamando a atenção de muitas pessoas ao nosso redor. Uma pessoa, inclusive, que eu não sabia que observava a cena.

Não pude evitar sorrir quando nossos olhares se encontraram. Eu estava com tanta saudade, a vontade de abraçá-lo, de beijá-lo era tão grande que doía. Mas não foi como nas cenas finais de livros ou filmes. Ele não correu ao meu encontro. E se ele não correu, com certeza eu não correria, por mais que quisesse.

― Perdeu, Gale!

― Deixa a menina, Gale.

Ainda demoraram alguns segundos para que eu tomasse ciência do que acontecia ao meu redor. Meu tapa em Gale tinha conseguido uma certa repercussão, e chamado a atenção de pessoas além de Peeta, que agora vaiavam e criticavam o cara que por um bom tempo foi meu objeto de desejo. Sem poder mais encher meu saco, ele se retirou, cuspindo fogo e amaldiçoando toda minha família e amigos.

Peeta ainda me olhava estático, poderia ser facilmente confundido com uma estátua muito bem feita, colocada no meio do salão. Abri novamente meu sorriso, era tão bom vê-lo, mesmo que à alguns metros de distância. Seria bem mais legal se ele fizesse alguma coisa, sorrisse de volta, me tomasse nos braços e me beijasse.

Então resolvi fazer o que vinha me preparando há meses. O motivo que deixei a escola e me dediquei intensamente à fisioterapia, todos os dias da semana, três horas por dia. Coloquei meus pés do chão e segurei firme os lados da cadeira, canalizando toda a força que eu tinha para meus braços conseguirem levantar meu peso.

Sentia meus músculos tremerem, quando me pus em pé. Peeta abriu a boca e soltou uma respiração pela boca em completo choque, seus olhos azuis crescendo um par. Mordi o lábio quando todo o esforço agora estava em minhas pernas, coragem me faltando de soltar as mãos, mas a vontade de fazer ele se aproximar de mim novamente era maior.

Fingi que não sentia toda aquela dor, e sorri convidativa para ele, ignorando todo o burburinho que aumentou ao meu redor. Eu estava recebendo em poucos minutos, quase toda a atenção que recebi em todo o ensino médio, e olha que eu tinha muita.

― Vai ficar só olhando? ― perguntei diretamente para ele. Peeta piscou repetidas vezes, sem saber exatamente o que fazer. ― Vou ter que ir aí, então?

Ok, aquilo era loucura.

Meu pai me mataria, meu fisioterapeuta me mataria, meu médico me mataria. Até Johanna, se estivesse por perto, me empurraria de volta para a cadeira. Ficar em pé era uma coisa, já havia feito isso centenas de vezes na reabilitação, mas dar pequenos passos? Nunca tinha conseguido. Meu fisioterapeuta dizia que meu corpo estava pronto, e minha mente estava me impedindo. Mas esse conselho não significava que ele apoiava o fato que eu tentasse novos movimentos sem supervisão.

Respirei fundo e levantei o pé direito. Sempre pelo pé direito, é o que dizia a tradição. Vacilei quando pisei no chão, então abri os braços para melhorar o equilíbrio, uma técnica que aprendi na torcida. Dessa vez, foi Peeta que não controlou a própria reação, quando praticamente correu em meu socorro.

― Calma, eu consigo mais um. ― Impedi que ele me segurasse, começando a mover o pé esquerdo.

Uma vez foi sorte, quase um milagre, mas a segunda...

Para minha felicidade e do meu nariz que não quebraria com uma queda quase certa, ele me alcançou antes que eu caísse, apoiando as mãos em minha cintura e prolongando a ajuda em um abraço caloroso. Sim, ele também sentia minha falta!

― Como? Quando isso aconteceu? ― perguntou ao meu ouvido.

― Eu precisava arrumar um jeito de chamar sua atenção, Peeta Mellark ― respondi simplesmente, sorrindo de orelha a orelha, quando ele me ajudou a sentar na cadeira, e se agachou na minha frente.

― Mas como... Eu não, não entendo.

― Isso realmente não importa agora, meu anjo. Eu entendi. Entendi tudo, Peeta.

― Do que você ‘tá falando?

― Entendi como eu passei os últimos anos sendo a pior pessoa do universo. E não apenas a pior pessoa, mas tratando a melhor pessoa como se ela fosse a pior. Você é meu farol, Peeta, sempre foi. Sua amizade me impediu e não ir tão fundo e quando isso aconteceu... ― Apontei para minhas pernas, lágrimas cintilando em meus olhos. ― Droga, eu precisei perder minhas pernas para encontrar o amor. Encontrar você.

― Katniss, eu...

― Você me ajudou a superar isso. Até nesses meses que ficamos longe, eu pensava em caminhar até você, em abraçar você. Eu falei aqueles absurdos porque achava que você merecia alguém melhor que eu. Ainda acho, mas quero ser essa pessoa. Quero que você me ajude a ser essa pessoa. Amo você.

― Kat... Superar sua deficiência não foi seu maior mérito, superar quem você era sim. ― Ele fez carinho no meu rosto, olhando com atenção pra cada detalhe dele.

― Então você me perdoa?

A resposta dele não foi o “sim” que eu esperava, foi melhor, muito melhor.

Com as duas mãos emoldurando meu rosto, Peeta alcançou meus lábios com os dele, me dando, de longe, o melhor beijo da minha vida. Me apoiei em seus ombros tentando chegar mais perto, eu sentada e ele de cócoras não era uma posição que favorecia, mas isso não impediu que nosso carinho se aprofundasse, eu podendo dizer com alegria que sentia minhas pernas bambas.

Ele me fazia sentir, não apenas movimentos abaixo da cintura, mas aquele calorzinho no coração quando a gente ama outras pessoas. Ele fez eu me abrir para me permitir sentir algo além de orgulho, vaidade e amor próprio.

― Isso foi ainda melhor que os primeiros.

Percebi que meus pensamentos haviam saído em voz alta quando senti sua boca se esticar em um sorriso, a apenas alguns milímetros da minha.

― Você ainda vai me enlouquecer, Katniss ― sussurrou apenas para que eu ouvisse.

― Vai com tudo, Peeta!

― Dobra ela de jeito!

Não me irritei nem um pouco com o alvoroço que a turma do último ano estava fazendo ao nosso redor, e nem ele, na verdade. Nós rimos, e muito, então o loiro me abraçou com força, onde eu podia até sentir seu coração disparado em contato com o meu.

― Eu senti tanto sua falta, pensei em você todos os dias ― confessou. ― Desculpa minha teimosia.

― Desculpa a minha. A gente precisa trabalhar nisso.

― Teremos tempo. ― Ele sorriu e ficou em pé, me estendendo a mão. ― Dança comigo?

― Foram três meses de fisioterapia pra ficar em pé, Peeta. Acho que dançar ainda está longe das minhas possibilidades.

― Minha linda... Se conseguimos jogar quase uma partida completa de vôlei, uma dança não será problema, não acha? Eu te sustento.

E ali, abraçada à ele, eu sabia que podia tudo. Peeta não era um superherói, mas era meu herói. Com ele, eu sabia que poderia ultrapassar limites, quebrar barreiras e ir além, bem mais além. E, por mais ridículo que possa parecer, foi uma cadeira de rodas que me mostrou isso.


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Notas finais do capítulo

E então? Gostaram? Oh garotinha difícil essa Katniss, vou te dizer!! Mas quem não queria um "anjo" desses na vida, estou certa?!

A próxima história ficará por conta da Arabella MHSI, já estou ansiosa!! Mas por enquanto, nos vemos nos comentários!!
E se acham que o projeto merece, favoritem, indiquem para os amigos, recomendem!! Amamos esse feedback!!

Até os reviews!! Bjs*

p.s: A opinião de que a paraplegia limita e incapacita as pessoas era da Katniss e apenas dela. Não era minha, nem dos demais personagens, entendam. Mas nossa protagonista é uma adolescente ainda em crescimento, ela está aprendendo. Eu poderia tê-la deixado assim para sempre, e não o fiz não por concordar com essa vertente de pensamento limitada e retrógrada, mas apenas para seguir o plano já determinado da história. Muito obrigada pela compreensão!! ;)



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