Dia cinza. Nuvens cinza. Humor cinza.

O caixão era marrom.

Contudo, sobre a tampa já tristemente fechada, jaziam dois enormes lírios brancos, os caules entrelaçados um no outro.

Um homem muito branco espiava por trás da árvore. Talvez não fosse muito branco, mas as roupas totalmente negras realçavam ainda mais o tom pálido de sua pele. Seu nariz adunco e seus cabelos oleosos também eram características marcantes naquele homem de corpo magro e andar encurvado.

I may not always love you
(Eu posso não te amar pra sempre)
But long as there are stars above you

(Mas tanto tempo quanto houver estrelas sobre você)

Severus Snape estava em lágrimas. Mais do que em lágrimas, o homem abandonara todo o fingimento, toda a máscara de indiferença que sustentara em seus anos de juventude. Chorava, chorava, como uma criança sem sua mãe. Suas pernas tremiam enquanto ele tentava, ainda atrás da árvore, encontrar um lugar melhor para observar a cerimônia. Já estava quase no fim, o enterro, e ele dava graças. Não achava que suportaria muito mais.

(Você não precisa duvidar disso)
Ill make you so sure about it

(Eu vou fazer você ter certeza disso)

Snape secou o rosto, com esforço descomunal. Uma última lágrima abandonou a ponta de seu nariz pronunciado e molhou a grama abaixo de seus pés. Era o fim de Lily Potter.  O fim do grande amor da sua vida. O fim da vida de Severo Snape.

Tinha uma dívida eterrna com Lílian Evans.

God only knows what I'd be without you
(Só Deus sabe o que seria de mim sem você)

Lily fora sempre quem lhe dera forças pra continuar. Ela se importava com ele, gostava dele, o considerava um amigo. Mas não, ele tinha que estragar tudo! "Seus amiguinhos Comensais da Morte", ela dizia... Snape podia enxergar o desprezo de Lily por entre aqueles olhos verdes... e ela tinha razão, eles eram desprezíveis, mas ela não compreendia... Voldemort gostava dele, elogiava seus talentos mágicos. Ninguém nunca o elogiara antes. Ninguém nunca lhe atribuiu o valor que merecia. Ele merecia... não merecia?

If you should ever leave me
(Se você algum dia você me abandonar)
Though life would still go on believe me
(A vida vai continuar, acredite)

A vida ia continuar. Ele tinha o Lorde a servir, tinha planos como Comensal. A vida já continuava desde o casamento de Lílian e aquele Potter... mesmo que essa vida fosse nada mais que uma pseudo-existência, Snape tinha que admitir... como sofrera antes, e como sofria agora... a vida era só sofrer, ele pensava, e essa dor vai passar, como qualquer outra... 

"Mas Lílian está morta, como pode haver mais na vida...?"

The world could show nothing to me
(O mundo não pode me mostrar nada)
So what good would living do me?
(Então que bem me faria viver?)

Então não havia mais pelo que viver... não havia. Não havia mais uma pálida esperança de que, um dia, Lily o perdoasse... e ele sentisse seus cabelos ruivos e fartos em seu pescoço, num abraço comovido de perdão... Tiago, o idiota, observaria tudo de longe, ao fundo, percebendo que naquele abraço, talvez, houvesse algo mais do que a felicidade de um casal de amigos que enfim se perdoa depois de um grave distanciamento...

"Não", pensou Snape, repreendendo-se silenciosamente. Estava tudo acabado, inclusive seus sonhos. E naquele momento, enquanto os caixões de Lílian e Tiago desciam em covas lado-a-lado, Severus desejou ardentemente que fosse o seu corpo a descer, ali, na terra quente... daria tudo para trocar de lugar com ela... tudo para aquela dor terrível passar...

God only knows what I'd be without you
(Só Deus sabe o que seria de mim sem você)

Subitamente, percebeu que não podia livrar-se de si mesmo. Era um homem amaldiçoado, aquela tatuagem no braço confirmava tudo. Não era merecedor de Lily, não era merecedor sequer da morte, o alívio certeiro para seu sofrimento... merecia sofrer... sofrer mais do que Lílian... sofrer até mais do que Potter, por todas as mortes que ele, Snape, podia ter causado... sofrer por tudo...

If you should ever leave me
(Se você algum dia você me abandonar)
Though life would still go on believe me
(A vida vai continuar, acredite)
The world could show nothing to me
(O mundo não pode me mostrar nada)
So what good would living do me?
(Então que bem me faria viver?)

Viver dali pra frente não seria nada fácil. Mas, também, nunca fora fácil. Se queria parar de sofrer, se queria merecer ao menos a lembrança bonita que Lily fora em sua vida, tinha que mudar. Tinha que contrariar tudo o que a ruiva abominara antes, e que até ele mesmo abominava em si mesmo. Tinha que parar de matar, antes que acabasse como Voldemort, um terrorista sem coração. Sim, Snape tinha consciência de que o Lord era um homem genial, o melhor bruxo de todos. Mas ele não compreendera como seu mais brilhante Comensal da Morte podia estar apaixonado por uma... uma... sangue-ru...

Severo Snape sabia que tinha que recomeçar. Tinha que encontrar Dumbledore. Talvez ele soubesse um meio.... um meio de desfazer tudo aquilo. Aquele terrível mal-entendido.

O cortejo de Lílian e Tiago terminara. Aliás, toda a cerimônia terminara agora, e os parentes e amigos se distanciavam sempre mais, um pequeno grupo cabisbaixo e desesperançoso. Aproveitando a movimentação, Snape esgueirou-se, discreto como um morcego, até o túmulo onde enterraram seu coração.

"Eu vou tentar merecer o nosso pequeno passado, agora, Lily", ele pensou, os pés sujos de terra encostando em um enorme buquê de lírios brancos. Sem pensar, apanhou uma das flores, branca e grande, e guardou-a dentro da capa, no porta-varinha.

E partiu para seu começo.

God only knows what Id be without you
(Só Deus sabe o que seria de mim sem você)
God only knows what Id be without you
(Só Deus sabe o que seria de mim sem você)
God only knows
(Só Deus sabe)